17/07/2008

Surpresas de Botafogo

Antes de mais nada, acho que eu devia escrever algo por aqui pra agradecer a existência da A.R. Produções. Não apenas por fazerem a Curta Cinema, embora isso já fosse motivo suficiente. Mas o que tanto me alegra justamente foi possível graças à Curta Cinema. Lá, pude rever Pikoo, mesmo sem legendas - como já tinha visto com legendagem eletrônica, não teve galho. Pikoo é um curta-metragem dirigido por Satyajit Ray para uma rede de televisão indiana, em 1981, trata-se da história de uma tarde especial para uma criança, um garoto. Um grande pequeno filme, decerto, mas fiquei anda mais contente quando descobri que, além de Pikoo, a sessão apresentaria um filme que eu já assistira em outra ocasião, e que me parecia magnífico - eu só conhecia pelo título em inglês, Deliverance. Como na programação vinha escrito o título em indiano, Sadgati, tomei um susto quando descobri que já tinha visto o filme.

Mas esse é daqueles que merecem todas as revisões possíveis. São cinqüenta minutos para contar uma história tipicamente neo-realista sobre os sofrimentos das classes baixas e da insensibilidade dos ricos - só que tem o seguinte, isso se passa na Índia, a terra dos brâmanes e dos dalits (ou intocáveis). E o filme é uma paulada! Uma estória simples – um dalit que vai pedir uma gentileza a um brâmane e é por este colocado para trabalhar até a exaustão máxima – em que o narrador não tem pudores em criar as situações dramáticas mais intensas e inacreditáveis, decerto porque o mundo que descreve suporta aquele exagero dramático. E isso impressiona a valer, ver como está arraigada nas pessoas essa concepção social-religiosa desumanamente discriminatória que é o sistema de castas. Isso não é dito ou feito por um estrangeiro escandalizado. Foi feito por um indiano respeitado pelos seus pares, para ser exibido e visto na televisão nacional.

Por descolar um filme desses para a sua mostra, abençoada seja a A.R Produções. E abençoado seja esse ciclo que vai passar na tevê dos filmes do cara. O invencível e Charulata eu vou gravar, com certeza.

Saindo da A.R., dia desses, depois de ter visto um outro Ray das antigas, Two (um curta-metragem de ’65, o filme seguinte a Charulata, muito bonito, bastante aparentado com o posterior Pikoo), eu passei na frente de um cinema que fica ao lado de uma escola. Era, até alguns anos atrás, um cinema que tradicionalmente exibia filmes pornôs, mas, depois que a prefeitura proibiu a exibição de filmes do gênero em cinemas próximos a escolas, ele teve que mudar sua programação. Quando olhei, vi que o cartaz era bonito - por ele, descobri que o filme que estava sendo apresentado se chama Buffet froid, é dirigido pelo Bertrand Blier e é com Depardieu e Carole Bouquet, entre outros. Fui conversar com um dos bilheteiros (eram três), mas antes fiquei olhando um pouco os vários outros cartazes. Um exemplo de cartaz exposto? Que tal Les voleurs de la nuit, direção de Samuel Fuller, 1984, o filme seguinte a White dog e The big red one, com música de Ennio Morricone e "participation amicale" de Claude Chabrol? Perguntei: "mas vem cá, meu amigo, esses filmes estão sendo apresentados aqui? e não sai notícia no jornal?". E o cara me contou sobre a mudança de programação, e comentou que isso não faz muita diferença não, que a freqüência continua a mesma. "mas vocês estão passando filmes pornôs?". Não, não, eram aqueles filmes mesmo. Na verdade, a empresa exibidora (Splendor Filmes, parece) passa qualquer coisa quer tiver em seus arquivos - manda uma fita pra passar até se arrebentar toda. Aí escolhe outra. Às vezes arrebenta logo, às vezes a película resiste e o mesmo filme fica em cartaz meses a fio. Os pagantes habituais não se importam em ter sempre os mesmo filmes sendo apresentados, segundo ele.

É isso aí, e a pauta da Contracampo 34 foi preservação, restauração e difusão... E viva a cinefilia carioca!

Crônica publicada em janeiro de 2002