15/07/2008

Conceição e outros babados - Ou então: A Mona Lisa sorri para você

Negócio seguinte: estou trabalhando num projeto chamado Conceição - Autor Bom é Autor Morto, que vem a ser um longa-metragem em fase de finalização, já rodado e parcialmente montado, sou um dos diretores (somos cinco), sou um dos roteiristas (somos dois, mas muito mais gente deu idéias para a estória) e sou, já há algum tempo, quem cuida da produção do filme, pelo menos naquilo que costuma se chamar "produção executiva", que consiste em cuidar justamente de possibilitar a feitura do projeto. Arrumar grana, enfim.

A primeira coisa que posso lhes contar sobre este projeto de longa-metragem é que, a princípio, não deveria ser um longa-metragem, deveria ser um curta dirigido por um aluno da UFF. Não tendo a disposição de colocarmos em votação diferentes projetos para que só um fosse contemplado, tratou a turma de tentar desenvolver um curta que pudesse ser dirigido coletivamente, mesmo que esta direção 'coletiva' se desse por alternância, e não por aglomeração - ou seja, que cada um dirigisse algumas seqüências, e não todos ao mesmo tempo. Com o desenvolvimento de todas as idéias, tornar o roteiro curto era cada vez mais difícil, até que resolvemos comprar a briga de tornar aquilo um longa-metragem, a ser feito coletivamente.

Foi a partir daí que nós - especialmente eu, que cuidei e cuido mais, como contei, da parte executiva da produção - descobrimos que nosso projeto não se enquadra muito no formato de produção em cinema estabelecido no Brasil. Sim, isso é bastante óbvio, já que não temos astros globais estrelando o filme (mas temos participação de, entre outros, Jards Macalé), nosso filme não terá inserções publicitárias no horário nobre das grandes redes de tevê, em suma, somos iniciantes desconhecidos. Ok, então vamos seguir o caminho dos iniciantes que fazem seus primeiros longas... Que caminho?

O caminho que há é mais ou menos o seguinte, o cinema brasileiro é 'autoral' no baixo clero e 'tecnicista' ou 'industrial' nas altas esferas. Não, não estou querendo dizer, com isso, que não há curta-metragistas com ambições de fazer filmes para as massas ou que não há tampouco sujeitos que merecem ser chamados de autores de cinema fazendo filmes com orçamento razoável. Há ambos, sem dúvida, mas o que pretendo notar aqui é que, no topo da pirâmide, exige-se boa experiência profissional, empresa já reconhecida no mercado e 'elenco compatível' para emplacar um projeto. Isso não é exigência apenas de empresas, é exigência do próprio Ministério da Cultura, através de suas leis e portarias. Do outro lado, na arraia-miúda, a separação em 'grupinhos' se acentua ainda mais, como se pode notar observando as diversas listas de premiados em concursos de roteiros de curta-metragem. O que temos então? É o seguinte, lá embaixo é cada um por si e Deus contra todos, cada um cuida de fazer seu filme, de fazer seus contatos, em suma, de se tornar 'respeitável'. Aí tenta mudar de escalão, presidir uma comissão... ops, perdão, fazer seu longa, emplacar uma carreira, enfim. Para chegar lá em cima, tem então que dar o pulo do gato, tem que ter o upgrade: tem que ter alto nível técnico. Ter capacidade de dialogar com o público, como diz a linguagem técnica do meio.

Essa nossa maneira terceiro-mundista de sintetizar dialeticamente a oposição entre as opções Autor versus Indústria deve ser divertida para quem assiste de longe: no térreo é todo mundo autor, na cobertura tem que saber se adequar à indústria. Há exceções, claro, como já notei. Mas nós, Conceição..., não somos só uma exceção, somos mesmo um caso excepcional, seja lá o que isso queira dizer, mas foi assim que se referiu a nós um dirigente de uma repartição pública da área. Conceição... não deixa de ser uma tentativa de resposta diante dessa situação que gera impasses e frustrações para centenas de projetos e carreiras promissores. Alguns dos meus textos aqui na Contracampo, decerto, também o serão.

Agora, esteticamente?... Bem, pra explicar até que ponto me parece que isso influencia meu olhar como redator aqui da Contracampo, eu teria que fazer uma ponte com outro trabalho em que estou envolvido: um documentário em vídeo sobre um filme, O Padre e a Moça, feito em 1965, com direção de Joaquim Pedro de Andrade, fotografia de Mário Carneiro, montagem de Eduardo Escorel, com Helena Ignez, Paulo José e Mário Lago no elenco e por aí vai. Resolvemos, eu e mais duas amigas, fazer este documentário por causa do fascínio que nos despertava esse filme já tão antigo - além da admiração que temos pelos envolvidos. No entanto, sendo nossa intenção mostrar o filme como um momento de ebulição em que trajetórias de figuras incríveis se cruzavam, acabamos por ter revelados para nós vários problemas e segredos de filmagem - que, já sendo ambiente propício para confusões, o era especialmente neste caso, em que a equipe se isolou por quatro meses num vilarejo escondido no meio das Minas Gerais.

Produzindo esse documentário, percebi com o olhar de fora aquilo que em Conceição... eu considerava instintivamente: - O que vale é o filme.

Isso, não tenho dúvidas, é referência constante em qualquer argumentação que eu desenvolva por aqui. Não é por acaso que tenho tentado pôr em discussão essa obsessão ‘autorista’ presente em textos sobre cinema das mais diversas procedências. Eu poderia contrapor à tendência ‘autorista’ a opção ‘tecnicista’, para cair nessa oposição clássica entre autor e indústria, mas não é isso que me interessa. O que me interessa, sobretudo, é que qualquer filme estabelecerá seu discurso e suas opções diante do seu público, não sendo, de fato, o mais relevante para a compreensão dele saber se quem teve as idéias ali expostas foi um autor personalista, uma equipe de profissionais ou mesmo apenas o caos de uma produção minimamente coletiva. O que vale é o filme.

Não que eu seja "contra a política dos autores", apenas tento dar um passo adiante dela. Porque essa dicotomia é limitada demais para o mundo que aprendi a ver - tanto a lógica tecnicista industrial, que pede apenas que um filme "cumpra seu papel dentro dos padrões exigidos", quanto a lógica autoral, que espera que um filme "apresente a visão de mundo de um artista", são ferramentas ainda fundamentais para que eu consiga decifrar à minha maneira os códigos de uma película - mas este "decifrar" não pode estar preso a somente estas propostas. A vida é maior e a arte cinematográfica, por sorte, é muito mais complexa. Alguns filmes são absolutamente ligados aos seus criadores, outros são absolutamente ligados ao seu modo de produção - mas, em muitos casos, tudo isso vira uma imensa confusão. Confusão essa que, para tentarmos entender, vez por outra nos arriscamos a decifrar através de mecanismos interpretativos que podem ser chamados, sem dó nem piedade, de reducionistas.

Isso eu vi em prática o tempo todo nesses seis anos (a serem completados em abril) dedicados ao projeto Conceição - Autor Bom é Autor Morto. Porque trata-se de um filme pensado coletivamente, tendo sempre em mente que seria o filme "de uma galera". Que eu, tendo sido roteirista e o criador da estória central que conduz o filme, tenha me desesperado diversas vezes para manter aquilo que me parecesse um 'discurso coerente' dentro da obra, isso me parece um vício muito natural, até saudável, talvez. Mas aconteceu que eu tive que lidar, na prática, com o fato de que idéias surgem, imprevistos acontecem, coincidências aparecem - e isso tudo transforma o filme, dá a ele novos e inesperados significados. Buscamos sempre dar ao filme uma linha narrativa que conseguisse dar conta de tudo isso e digerisse todas estas transformações de forma criativa e significativa – se conseguimos ou não ter sucesso na empreitada, eu não serei a pessoa mais apta para julgar, espero que outros tenham a chance de fazer isso – e logo.

Aí é que está o ponto: quem julga é quem vê. O artista é produtor, não é o dono da sua obra. Se a sua interpretação do que fez é diferente da de alguém que assiste, isso nem sempre se deve à incompetência do 'autor' ou à obtusidade de quem vê - numa imensa parte dos casos, isso se deve somente à ambigüidade que é própria deste meio de expressão. Entre um corte e outro, milhares de coisas podem ter acontecido, milhares de significados possíveis estão escondidos. Dessa forma, vale muito pouco para cada filme em si a 'intenção do autor', na verdade desconfio que o que vale de fato é o que parece ser a 'intenção do autor'. Haja ou não esta intenção, haja ou não este autor. De que importa se a idéia de Monsieur Verdoux era de Welles? Há algo ali que se pode dizer ser de Welles? De que importa se a imagem final do Planeta dos Macacos não é uma idéia de Tim Burton, e sim de Kevin Smith? Isso realmente muda alguma coisa nos filmes se apresentando para nós? Ou somos nós que estamos tentando enlaçar os filmes dentro de alguns conceitos correntes? Defendendo AI - Inteligência Artificial para alguns amigos, uma hora notei que simplesmente não entendia por quê essa obsessão de alguns em delinear, no filme, o que há de kubrickiano. Oras, isso lá é importante?! Claro que é, desde que sua intenção seja meramente de falar mal de Steven Spielberg - mas não o será, se tratarmos apenas de tentar compreender o filme, a despeito de quem quer que o tenha feito.

É como a Gioconda, caro leitor. Muito já se falou do seu sorriso disfarçado e enigmático. E o que queria Da Vinci com aquele sorriso? Ora, leitor, Da Vinci morreu já há alguns séculos. Descobrir quais seriam suas possíveis intenções não é mais que uma curiosidade, até um pouco mórbida, diga-se. Muito mais enriquecedor, tendo eu a acreditar, é imaginar o que nos diz aquele sorriso, o que nos transmite ele (se os turistas todos nos permitirem chegar perto da pintura). Simples assim: não importa tanto saber por quê sorri a Mona Lisa, caro leitor - importa, isso sim, lembrar que ela sorri para você.

Texto publicado originalmente em janeiro de 2002