15/07/2008

El Justicero (1967)

Imagina só: Todo mundo convencido, todo mundo se achando... “É preciso encontrar o Brasil”, “uma forma revolucionária para um cinema revolucionário”, cinema de autor, e coisa e tal... Cinema pra quê? Fala sério, revolução é o catete, vocês fazem isso aí pra ver se comem as atrizes. Ora, direis, comer estrelas...

Ou tenta imaginar então aquela galerinha Posto 9, Zepellin, Beatles e bossa nova. Imagina os gostos da galera. A maior parte curte muito os filmes europeus que estão aparecendo, tem gente que detesta Antonioni, tem uns que acham que o grande lance é Godard, tem uma turma que gosta mesmo é de filme de ação, policial, guerra, e tem uma turma que, falando sério, mil vezes pegar uma prainha que ir no cinema. Pro cinema, só ser for com o broto, só se for com uma gazelinha... Mas peraí, a galera é legal, e não é todo mundo que não tem consciência social! E esse papo de cinema novo divide o pessoal, mas todo mundo vai concordar que, afinal, até que enfim alguém estava fazendo cinema sério no Brasil. Quer dizer, quase todo mundo, porque tem alguns que confessam que acham os filmes chatíssimos...

Cara, imagina o que eles iam achar de El Justicero?

El Justicero é a grande jóia esquecida dos filmes de Nelson Pereira dos Santos.

Foi o longa-metragem seguinte a Vidas Secas, feito após um intervalo em que lançou seu mais conhecido filme, dirigiu três curta-metragens (Um moço de 74 anos, O Rio de Machado de Assis e Fala Brasília) e participou do início do curso de cinema da UNB, além de ter montado o curta de um amigo e co-produzido o documentário de outro (Maioria absoluta, de Leon Hirszman, e Opinião Pública, de Arnaldo Jabor).

Após Vidas Secas, o triste filme sobre o drama dos retirantes, nada mais oposto que fazer um novo longa que voltasse ao seu projeto Rio Zona Sul, abandonado justamente por um renorteamento de sua carreira que o levava ao Sertão e ao Brasil esquecido. Como então El Justicero, comédia irresponsável carioca?

Imagina a cara da nossa esquerda bem-humorada, vendo a jovem militantezinha gamar por um cafajeste que estava prestes a botar ela na roda pra uma curra entre amigos? E quando eles virem que, mesmo sendo salva pelo El Jus, ela prefere ficar com o canastrão? Imagina depois: o que eles vão achar desse filme cheio de piadas com os dramas burgueses?

Imagina então quem não tinha nada a ver com aquele universo. Como é que é o nome desse filme? É mexicano?

Imagina o milico que vai com sua senhora ver a quantas anda esse cinema nacional, feito por um bando de subversivos. Imagina a cara dele, diante do retrato de um general corrupto e molengão? Prendam esse filme!

E imagina eles descobrindo que o filme tinha passado pela censura, e que oficialmente não podiam fazer nada? E imagina resolvendo passar por cima desse lero-lero, apreender tudo, quer saber?, isso é filme de comunista safado...Putz, imagina eles entrando no laboratório, nos cinemas, apreendendo negativos originais e cópias em circuito, película e mais película... vai tudo virar vassoura...

O filme não tinha nada a ver com o projeto Rio Zona Sul, ao contrário do que alguns chegaram a suspeitar na época. A idéia abandonada de Rio Zona Sul, que fecharia a imaginada trilogia carioca iniciada por seus dois primeiros filmes, era de uma visita aos inferninhos de Copacabana através do drama de um filho com problemas com seu pai, que ligava para este dizendo ter tomado veneno e se perdia pela noite carioca. Essa mudança de rumo me parece dizer muito de Nelson Pereira.

Mas El Justicero é uma comédia rasgada, um falso besteirol que atira para todos os lados. E por que foi feito?

A exigente turma da crítica preferiu crer que foi um filme feito sem interesse, diante de um financiamento que caiu do céu e exigia pressa na feitura do produto, uma vez que foi bancado por uma rede de distribuição e exibição, a Condor Filmes. E que, sendo filme de encomenda, como suspeitou Alex Viany, não tinha razões para ser lembrado. Nessa opinião teve a companhia de Jean-Claude Bernardet, que considerou a obra “medíocre”, e mesmo Helena Salem, na biografia que escreveu de Nelson, deixa claro seu desapreço pelo filme, e traz para nós o testemunho de Hélio Silva e de Arduíno Colassanti, ambos relatando sua impressão de impaciência e mesmo desapreço de Nelson Pereira pelo projeto, ao longo das filmagens.

A própria Helena Salem, no entanto, levantou a opinião contrária de Maurício Gomes Leite, que viu no filme “um documentário de atualidades, imagens diretas do sol, sal, sul .(...) Chega, através da comédia ‘ligeira’, ao triste retrato de uma geração marcada pela tragédia”.

Mais recentemente, na entrevista feita pela revista Bundas com o cineasta, Ziraldo começou a conversa dizendo a Nelson Pereira que todos os seus filmes eram bons, com a exceção de... El Justicero!

Imagina o Ziraldo, a turma do Pasquim, todo mundo indo ver El Justicero tirar um sarro com a cara deles. Humor é bom, mas tem que sacanear os outros. Pô, tanta gente que tem que ser sacaneada... Mas e o país, e o país, meu Deus? Como diz El Jus, será que vocês não estão preocupados com o Vietnã?

Imagina a minha curiosidade em ver esse filme em vídeo, sem saber de nada disso, sabendo só que era o filme seguinte a Vidas Secas, o resto os letreiros me contavam. Começava logo com uma grande gozação com seu patrocinador. O emblema da Condor Filmes era um pássaro da espécie que ficava um tempo parado no alto de uma montanha, e depois voava para o filme se iniciar. Durante anos foi costume dos gaiatos dos cinemas gritar “xô, urubu”, enquanto o condor do filmete começava a alçar vôo. Bem , o filme começa com o símbolo da Condor Filmes, e o próprio filme traz o coro dos personagens, que o estão assistindo e enxotam o urubu por conta própria.

Imagina a minha cara e a dos camaradas que estavam vendo o filme comigo.

Gosto do palpite de Gomes Leite, acho que é mais ou menos aquilo ali mesmo, e não consigo não achar que o que tenha incomodado Ziraldo é que ele justamente fazia parte daquela turma retratada tão ironicamente.

Nesse período, toda a galera do cinema novo estava direcionando seu olhar para seu espaço próximo, naquilo que hoje chamam de “fase urbana” do movimento. Isso estaria sucedendo à fase de descoberta de um país escondido, e seria provocado sobretudo pelo filme de Saraceni, O Desafio, e seguido por muitos outros, como já comentei por aqui num texto escrito sobre um deles, Terra em Transe. Os cineastas brasileiros, não apenas os cinemanovistas (há também Domingos de Oliveira, Walter Hugo Khouri), estavam falando sobre o seu mundo, estavam olhando para si.

Nada menos Nelson Pereira dos Santos que olhar para si e fazer um filme sobre o mundo de que já faz parte. Se há nele alguma característica constante como autor, é a de sempre entrar em contato com um novo mundo, a cada filme.

Então dá pra se imaginar que não fazia sentido se identificar imediatamente com o protagonista aflito, como acontecia com outros grandes filmes dessa fase. Nossa identificação com o protagonista é entendendo-o entre o cafajeste, pelo jeito que lida com as mulheres, e o bom moço heróico, porque afinal El Jus é gente boa.

Imagina a cara do Nelson Pereira quando um aluno resolveu perguntar a ele sobre El Justicero, e foi logo dizendo que gostava demais do filme. Imagina ele trazendo uma cópia do filme em vídeo para a turma poder ver. Imagina que, dos quinze, doze nunca tinham visto nenhum filme dele. Imagina a cara deles. E a cara dele vendo eles gargalhando?

Observando com ironia implacável todo esse pequeno mundo dos vidas-boas à sua volta, El Justicero acabou sendo a melhor comédia carioca do cinema brasileiro até hoje (pau a pau com os filmes de Domingos de Oliveira, ok). Com seu olhar gozador, o filme entendeu o mundinho Praia de Ipanema melhor do que qualquer outro. O filho de milico tem suíngue e simpatia para dar e vender, resolve os problemas necessários com presteza e rapidez, para no fim da tarde “meter uma praia”, vive rodeado por mulheres, só anda com carrão, mora sozinho (com empregado), aproveita do bem bom. Tão cheio de si que contrata um biógrafo , Lenine. A motivação inicial e ponto de chegada do filme é a idéia que Jorge “El Justicero” tem de contratar alguém para contar sua história. Seu biógrafo é um sub-marxista que trata de tentar anotar os melhores diálogos de El Jus para tentar dar conta de seu personagem idealizado. El Jus até se impacienta em determinada hora com seu biógrafo e pensa em despedi-lo, mas esse não desiste, e resolve então fazer um filme sobre El Jus, o filho do milico com consciência social, “uma mistura de James Bond com cérebro de Jean-Paul Sartre”.

As piadas atiram para vários lados, ironizam demais os preconceitos da jovem burguesia da época, o que pode ter atrapalhado um bocado a recepção do filme, uma vez que o público-alvo, essa própria juventude burguesa, era retratado com um sarcasmo tremendo. Tem gozação pra cima dos conquistadores ipanemenses, pra cima da esquerda festiva, pra cima da velha história de “tudo acabar em samba”, até pra cima da corrupção dos milicos graduados. Quando chega a uma festa e cumprimenta impacientemente a dona da casa, El Jus ouve dela a pergunta se seu pai está envolvido com a prospecção de petróleo na Bolívia. Ele responde algo como “Ah, a senhora fique certa de que onde houver tramóia e mamata meu pai estará metido”. Ela responde “Que gracinha, você é igual ao seu pai quando era jovem, ele também não dizia coisa com coisa...”.

Por conta dessas e outras, esse acabou sendo o filme de Nelson Pereira mais proibido pela ditadura militar, prova de que não entenderam nada. Implicaram com as gozações pra cima do pai de El Jus, El General, e por conta disso limaram parte do som dos diálogos. Depois resolveram apreender o filme, e levaram cópias e negativos, e o que se tem do filme, um contratipo e cópias, só foi possível graças a uma cópia em 16mm esquecida em Pesaro, por conta de um festival na época, e encontrada por David Neves, segundo conta o próprio Nelson na entrevista dessa edição.

É muito bonita e muito engraçada a parte em que El Jus se apaixona, quando então o gostosão fraqueja, toma porres, chora à toa, grita que ninguém se preocupa com o Vietnã... Depois, então, ainda há piadas com o tabu da virgindade e com os casamentos “modernos” da época...

Imagina o público do Centro Cultural Banco do Brasil, em pleno sabadão de fim de semana, aquela turma eclética, uma grande parte composta de admiradores, outra de curiosos. Imagina eles vendo aquele retrato de uma cidade e de uma época tão decantadas, aquele retrato gaiato e sacana. Imagina aquela turma que adorava ir ao CCBB ver Billy Wilder, ou aqueles que gostam das piadinhas das sitcoms ou do Casseta e Planeta zoando tudo e todos. Ou os que curtiam Jules et Jim e essa onda meio Nouvelle Vague. E eles vendo tudo isso e muito mais.

Pena que seu estado de conservação esteja tão precário, qualquer tentativa de conservação do filme já chega tardia, uma vez que já estamos lidando com contratipo, e não com negativo original. A fotografia já perdeu um pouco, o som também. Mas o que temos precisa ser preservado, e logo. De todo jeito, no momento ainda é um filme de acesso relativamente fácil, graças às edições em vídeo feitas pela Manchete Vídeo, nos anos oitenta, e pela Riofilme, mais recentemente.

Eu disse “jóia esquecida”? Esquecida nada, é só pegar em vídeo ou torcer pra passar de novo uma cópia num cinema.

Texto publicado em junho de 2001