22/07/2008

Entrevista com Edgard Navarro


Encontramo-nos com Edgard Navarro no encerramento do Festival do Rio, no cine Odeon. Dali fomos para um bar vizinho, fugindo da movimentada festa que começava a tomar conta do saguão do cinema. A conversa durou um pouco mais de uma hora e começou quando, antes da primeira rodada de chopes, Edgard nos falava da reação de Caetano Veloso a sua obra-prima, Superoutro.

EN: Até hoje ele faz umas sessões privadas na casa dele, mostra às pessoas. É maravilhoso... Mas eu pensei que minha carreira fosse deslanchar ali, achei que eu ia poder continuar fazendo cinema. Não fiz mais nada até hoje, já são doze anos.

RG: Mas por quê? Mudanças na produção, Lei do Audiovisual?

EN: Collor entra em março, isto aconteceu em janeiro de 1990. Aí Collor vem e fecha. Na Bahia, nós temos uma oligarquia que se perpetua no poder e que pelo audiovisual não tem feito praticamente nada durante estes trinta anos. Quase nada. Para não dizer que não faz nada, faz um concursozinho para curtas de cinco em cinco anos, uma produção muito rala. Alguns destes filmes foram feitos com dinheiro do Pólo Cinematográfico da Bahia, que foi praticamente uma ficção. Tudo por conta dessa oligarquia, dessa forma de poder na Bahia que é das mais perversas. Perversa, inclusive, porque não é antipática; o povão adora isso, assim como adora Silvio Santos. Antonio Carlos Magalhães é o grande godfather da história. Ele é um semideus lá, um cara que todo mundo adora. Você falar mal de ACM lá é um absurdo. Mas eu acho que isso é reflexo já de uma coisa mais antiga, da própria falta de cultura, da falta de educação, da formação do povo, que acha que esse paternalismo dele -- que é uma coisa fascista, mafiosa -- algo de muito bom, indiscutível. Ele vai ao Senhor do Bonfim, é um cara bem povão. Isso é só um aparte para dizer que dentre outras culturas do Brasil que também não produziram tanto cinema quanto gostaríamos que produzissem, a Bahia foi das mais retrógradas. Ultimamente, muito recentemente, é que o governo da Bahia, ainda sob o patrocínio de ACM -- porque ele não saiu do governo na verdade, ele colocou o Paulo Souto depois o César Borges -- agora é que eles começaram a colocar o concurso de curtas, devido a esse hiato na produção de muitos anos. O que para mim é uma coisa ridícula, irrisória, não é nada. Mas é o que se tem. Vamos ver se agora a gente desata esse nó.

Estou produzindo três curtas e um longa-metragem. Mas nós temos lá uma demanda muito maior, com vários roteiros de longa-metragem prontos e muito bons. Felizmente eu ganhei dessa vez o concurso, ou melhor, dessa primeira vez, para fazer o longa-metragem que estou rodando no verão, em fevereiro devo estar rodando. É um filme que vai se chamar Eu me Lembro. É um resgate da infância...

RG: Uma outra citação de Fellini, já que no Superoutro você tem a lembrança do Amarcord.

DC: "eu quero uma mulher!"...

EN: Com certeza! É o meu grande inspirador, um dos grandes cineastas de todos os tempos para mim é Fellini, junto com Bergman, Pasolini e Buñuel. São os quatro pilares da minha formação como cineasta.

RG: Pelos filmes que vimos, pelo lado da anarquia e desse olhar desautorizando tudo, acho que Buñuel é o que exerce maior influência...

EN: Eu não sei qual deles exerce maior influência, mas Buñuel foi determinante para que eu comprasse uma câmera de super-8. Quando eu vi O Fantasma da Liberdade, foi assim o que faltava... Eu assistia àquelas sessões de neo-realismo, aquela formação do cinema de arte.

DC: Como foi a sua formação de cinéfilo, como você viu esses filmes? Como era essa cultura de cinefilia na Bahia?

EN: Eu assistia a tudo. Na adolescência, na infância eu era fascinado por cinema. Eu via chanchadas da Atlântida, eu via Tarzan, eu via Os Dez Mandamentos, A Vida de Cristo... Na infância eu penso em todos esses filmes de Hollywood. Ben Hur e Os Dez Mandamentos dão muito a cara do cinema que eu via. A maior parte da produção vinha de Hollywood, os de terceira categoria, mas também os bons filmes produzidos em Hollywood: filmes policiais, thrillers. Eu conhecia o cinema brasileiro porque assistia às chanchadas da Atlântida: Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Zezé Macedo. Na adolescência eu via muita porcaria, porque eu era fascinado pelo cinema, a ponto de pegar uma sessão que ia das duas até, às vezes, às oito, dez da noite. Tinha uns cinemas de terceira categoria ou quinta categoria que passavam dois filmes e mais o seriado, uma coisa assim. Aí eu via dois filmes num cinema, saía de lá e ia ver mais dois em outro. Era um liquidificador, era tudo que você podia imaginar: Maciste, já ouviram falar em Maciste? Western macarrone, aqueles faroestes italianos que eram um fake do western americano. E muito filme bom também que me fazia chorar, uma coisa que me tocava muito emocionalmente. Um pouco brechtiano, isso, pouco inteligente. Mas eu acho que pela minha formação latina espanhola, eu tenho uma coisa espanhola no sangue. O cinema americano, quando eu tinha uns quatorze, quinze anos, o cinema tem essa coisa de fazer a cabeça. Então, toda a reflexão que eu pude fazer em cima de todo esse "mal" que o cinema me fazia, porque era muito sentimentalista, muito piegas, pegando essa coisa do patriotismo... Tipo um filme: A Rosa da Esperança, não sei se vocês conhecem esse filme, é um clássico... eu via aquele filme e chorava no final do filme, ficava absolutamente siderado com aquela aula de moral, de dignidade, de ética... Eu só vim entender que o americano era um calhorda e um canalha, e usava isso de uma forma canastrona, que era uma forma de vender o peixe; só vim entender isso muito tempo depois, quando eu pude fazer uma reflexão sobre esses filmes americanos, que era o que eu via. Para mim, cinema era isso, era os filmes americanos.

FV: A gente nota essa influência. Em especial no seu filme sobre o Lamarca [Porta de Fogo], o faroeste parece uma referência especial, os filmes de Anthony Mann, John Ford... Você filma o sertão da Bahia como uma paisagem de Western, lembrando o Monument Valley de Ford.

EN: Claro, perfeito. E Glauber, devo isso também a Glauber.

FV: Como foi o impacto do Cinema Novo na sua formação?

DC: E mais, como você descobriu o cinema brasileiro e depois o Cinema Novo?

EN: Eu acho que o cinema brasileiro bate quando eu tenho quatorze anos, justamente quando estou assistindo a essa salada, esse coquetel de filmes americanos, que era só o que tinha. Eu acho que assisti a um filme espanhol, que era Sarita Montiel... La Violetera. E eu chorava, claro. Mas era menino, eu tinha o que, oito ou dez anos. Eu só vou encontrar o cinema brasileiro fora da chanchada com Glauber Rocha e Deus e o Diabo na Terra do Sol.

DC: E Barravento?

EN: Não, não tinha assistido a Barravento. Tinham falado muito de Deus e o Diabo como uma grande coisa. Eu olhei, eu estranhei aquilo... eu achei longo, eu achei pesado, difícil. Não entendia porque elogiavam tanto aquele filme, mas ele me intrigava, me incomodava, eu não entendia direito. Eu acho que era o referencial estético, da gramática, da linguagem, que era diferente, né? O cara vinha com uma outra coisa e você fica incomodado e sem entender o que é aquilo. E aí -- eu tinha quatorze anos --, eu só tive essa reflexão mais arguta em relação a um cinema novo, com o neo-realismo italiano, com a Nouvelle Vague e depois com o Cinema Novo. Aí eu tinha já dezessete, dezoito anos. Eu digo: há um universo cinematográfico que reflete todo o cinema que eu assisti até hoje. Que vai para a rua, que não tem a mesma gramática, é uma gramática estranha... aí eu vou ver Deus e o Diabo com outros olhos e vou achar o filme esplendoroso. Eu acho que é um dos melhores filmes que existem em todos os tempos. Para mim, é uma aula de cinema e uma aula de história do Brasil, de antropologia, com poesia e com uma postura incrivelmente madura para um menino de 24 anos. Como é que ele pôde conceber aquilo, como ele pôde resistir à tentação de ser maniqueísta, né? Ele não é maniqueísta. Ele pega toda aquela porra de Bem e Mal, Deus e Diabo... que eu acho que o Lavoura Arcaica está colocando isso muito bem, eu gostei, adorei Lavoura Arcaica, um filme maravilhoso. Eu até brinquei com isso dizendo que Lavoura Arcaica é, para mim, o Deus e o Diabo na Terra do Cio. Vocês viram Lavoura Arcaica?

Todos: Não tivemos oportunidade.

EN: Vejam, é imperdível, é maravilhoso. Acho que pode ser um marco do cinema brasileiro do momento. Tô dando um salto enorme, mas já que mencionei Lavoura Arcaica, é bom dizer que tem que contextualizar o cineasta... Então, contextualizar o Lavoura Arcaica, contextualizar o cineasta, a formação dele que eu não sei qual é. Sei assim, de ouvir falar, a coisa da televisão e tal... do apoio que de todas as formas o Luiz Fernando tem encontrado na vida para fazer o cinema que faz, e ter as condições de fazer o cinema que faz que é diferente da minha trajetória. Eu acho que tenho uma contribuição a dar diferente da que o Luiz Fernando dá e acho bacana que a gente possa viver com a diversidade. A maior lição que eu aprendi com a maturidade talvez tenha sido essa coisa da tolerância e de conviver com as diferenças. Porque eu não posso me pretender ser o grande bambambã em uma determinada coisa, porque existem muitas contribuições de vários lados que podem vir. E eu tenho que estar atento a elas. Agora tenho que estar atento para que a minha contribuição, seja o máximo da minha reflexão, o máximo que eu posso dar é isso. Acho que por conta de toda a minha formação, até essa do cinema americano, acho que o Superoutro é talvez o meu primeiro filme capaz de refletir sobre essa anarquia visceral, essa anarquia dos super-oitos que eu fazia como uma coisa irreverente e rebelde sem causa, uma coisa de épater la bourgeoisie.

DC: Tem uma tristeza no filme todo, na própria vida dele que é bem diferente do Rei do Cagaço... é mais que revolta. Mais do que um personagem revoltado, você tem um personagem de fato. Me pareceu isso.

EN: É isso.

DC: Eu me lembrava muito no Superoutro da anarquia mas também da situação do personagem. Isso me saltou muito mais aos olhos nessa revisão.

EN: Suicida, né? Ele tem uma coisa suicida. Ele tenta o suicídio duas vezes na verdade. Ele cria uma metáfora, cria uma história para dizer que não é suicídio. Ele se joga na moto porque a moto é uma carruagem de luz que vai levar ele para o céu. É bíblico, inclusive. Ele tem uma coisa bíblica: "arrependei-vos, arrependei-vos!". Existe uma personagem bíblica que é arrebatada ao céu numa carruagem de fogo, num carro de fogo...

FV: É um profeta, né? Elias...

EN: É, acho que sim. Mas ele não fala Elias, fala Arcanjo Gabriel porque também mistura os signos todos. E no final, a coisa de se jogar para voar. Tem um momento que ele duvida disso, que ele engole em seco, parece que alguma coisa ali bate na certeza, parece que ele duvida.

DC: O Bertrand [Duarte] passa isso muito bem.

EN: Muito bem. Ele é maravilhoso. Então, eu acho que esse link da minha formação de cinema americano, eu no Superoutro inteiramente pego o ícone do colonizador, do cinema... Ele pega o ícone do colonizador e atualiza antropofagicamente colocando aquela coisa do super-homem, o libertador, de uma forma irônica pra caralho que é a coisa do pássaro da eternidade, "meu pai me traiu".

FV: Aproveitando a deixa da antropofagia, quando assisti àquele que você considera seu filme zen [Lin e Katazan], algumas imagens me lembraram muito Macunaíma, embora não pareça muito evidente numa primeira olhada...

EN: Legal, o corpo...

FV: ...aquela coisa de filmar o corpo negro na natureza, de como ele estabelece uma relação...

EN: Bacana isso, eu acho que você tem razão, porque um olhar atento, né... e eu não tive a intenção. Mas essas coisas da não-intenção também são maravilhosas, porque elas informam a mim, são o feedback necessário para que eu possa refletir também sobre essas coisas. Acho que você tem razão, sim. Porque há um fascínio meu por Macunaíma. Um fascínio pelo estranho, pelo bizarro, pelo mau-gosto talvez, mas um mau-gosto entre aspas.

RG: Quando a gente fala em antropofagia, quando a gente fala em retrabalhar o mau-gosto, tem duas coisas que vêm à cabeça de primeira. A primeira é Oswald de Andrade, que cunhou a expressão e depois o tropicalismo que readapta o mau-gosto e retoma Oswald. O seu filme Superoutro é também uma grande homenagem aos tropicalistas... toca o hino do Senhor do Bonfim que termina o disco Tropicália, Coração Materno...

FV: Superbacana, também, do Caetano...

EN: Bacana...

RG: ... e também uma homenagem ao Glauber, porque tem A Idade da Terra...

EN: "Meu pai me traiu. O pássaro da eternidade não existe". Falando sobre isso, eu sou absolutamente fã dessa coisa tropicalista de se apropriar do mau-gosto, de misturar as coisas, de botar um bolero que é um tango arrevesado falando de uma coisa escrota, mas com uma sutileza e uma ironia que promovem isso a uma condição que é inclassificável, entendeu? Porque está acima da intelligenzia, porque manda essa intelligenzia pro espaço, pras picas. E isso me interesssa de todo jeito. Eu digo: "porra, descobri uns baratos aqui, Silvio Santos! Vou usar Silvio Santos no meu filme!" "Porra, você é louco..." É uma cena muito clara para mim...

DC: Roletrando vira "rola entrando", né?

EN: É, isso mesmo. Então, pegar isso e trabalhar o signo subvertendo o tempo todo. Isso é que é o barato.

FV: Há várias sequências no Superoutro em que você parece ter colocado o Bertrand numa situação e escondido a câmera. Por exemplo, a cena que o Bertrand dança axé na calçada...

EN: Sim, aquela sim. Aquela é uma cena com a câmera oculta.

RG: Como você pediu permissão? Você avisou às pessoas que ia ter o cara lá, fazendo uma performance?

EN: Não, eu absolutamente me apropriei das imagens dessas pessoas com o risco de depois ser processado. (risos) Eu nem sabia nessa época...

RG: Mas como você conseguiu? Eles deixaram o Bertrand ficar lá na parada de 7 de setembro?

EN: Rapaz, nós vivíamos naquele momento um governo que se pretendia democrático, que foi o de Waldir Pires...

RG: Sim, aparece uma bandeira...

EN: ... então, ali, acho que havia um certo pudor da polícia de reprimir. E além do mais a gente não pediu licença porque é assim que eu faço. Eu não peço licença, eu me torno invisível para entrar no lugar para fazer o que eu quero. É uma espécie de má-educação que tem sido bastante proveitosa para mim. Eu muitas vezes entro nos lugares, faço as coisas que preciso fazer, porque se eu pedir licença, não vai rolar. Tipo essa coisa de entrar filmando? Eu vou e entro filmando. Isso é minha ética. Eu sou anti-ético para você, companheiro, vá e me diga o que é ética, fale para mim. É uma coisa também guerrilheira, que é do meu espírito, uma guerrilha do possível para mim. Porque eu sempre fui franzino, nunca fui um homem muito corajoso. Sou muitas vezes, como diz Fernando Pessoa, pior do que um rato, um covarde. Aqui dentro. Para fora não, até que eu seguro bem, mas aqui dentro os medos que eu tenho são incofessáveis. Então minhas horas de coragem, de arrojo, são iguais às lágrimas que Caetano fala, né? "Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada". Esses momentos corajosos são para mim a fina flor do meu caráter. Eu projeto no Superoutro essa coragem que eu gostaria de ter. Ele é muito melhor do que eu. Se eu tivesse a coragem, a grandeza e a integridade daquele personagem, eu já teria me jogado e já teria voado. (risos)

DC: Naquela filmagem com o exército você teve que pedir autorização, não?

EN: Ah, sim. Não só autorização como cumplicidade. Houve uma produção que também tinha essa coisa de burlar a vigilância... O diretor de produção era o Alexandre Barroso, que eu conheci de última hora e entrou no filme de pára-quedas, e eu achei que as coisas iam desandar, mas ele foi muito produtivo. Foi muito bacana ter sido ele a pessoa. Eu vim a saber depois, numa conversa que tivemos depois das filmagens, que ele era o Mancha. E o Mancha era ninguém mais, ninguém menos que o maior pichador de Salvador naquela época. E não era pichação apenas de nomezinho, era uma pichação consequente que fazia espírito na cidade, trocava espírito com a gente. Eu via uma coisa de Mancha e dizia: "puxa, o Mancha disse isso"! Ele dizia coisas legais pra caralho. Tinha um discurso. Tem até um livro que ele publicou depois com as pichações que ele fez na cidade. E eu pichava pra caralho também nessa época, década de 70 até o início dos 80. Eu fiz umas pichações bem interessantes para a minha alma, poder colocar aquilo lá fora. Então era fã de um pichador que era consequente, que fazia um discurso e que eu queria botar no Superoutro. Pinta pouca coisa de pichação. Tinha uma que eu ainda vou usar no Eu me Lembro, eu acho. É do caralho, é assim: "Ser ou não ser gay eisenstein".

DC: Essa era sua ou do Mancha?

EN: Essa pichação? Não, não era do Mancha. Fui eu que criei. Porque eu estava discutindo essa coisa: "é maluco ou é viado, hein rapaz?" Essa coisa de pressão contra os viados. Eu era chamado de viado com uma frequência... eu estudei engenharia civil até os 22 anos, porque me disseram que eu ia ganhar dinheiro com engenharia, mas eu tinha uma vocação para música, eu compunha, queria ser um Caetano, um Gil, um Chico Buarque... participava de todos os festivais universitários, botava as canções que eu achava bacana; não tinha uma voz que era grande coisa, mas classificava as músicas que eram elaboradas e tal... minha vontade era toda na direção do palco. Aí eu só fiz dois anos de engenharia, porque não suportei. Fui de cabeça para o teatro, entrei para a escola de teatro. Mas na engenharia era uma coisa frequente: "venha cá, você é maluco ou é viado, hein rapaz?" (risos) Era uma coisa jocosa que me perguntavam, mas sacana. Era tudo em clima de brincadeira, mas tinha uma sacanagem no meio. E quem fazia essa pergunta para mim era um machão. E para mim, o homem está sobre este tripé: maluco, viado ou machão. Os três trocam uma energia escrota que nao é de um homem de verdade. Essa energia escrota, o foco dela é o machão. Porque o viado é viado, porra. É insustentável, indefensável a condição do viado no mundo nosso, como a gente aprendeu. Eu até coloco isso no Eu me Lembro, uma situação de menino que eu vivi com outro colega. Eu era um menino de cinco anos -- cinco anos, cara! --, e tinha um menino que eu adorava e ele me adorava. A gente se beijava no rosto. Como uma criança beija outra no rosto. E aí teve um momento que a gente sentiu que não podia beijar no rosto e nunca mais eu beijei ele no rosto. E até a adolescência e mais adiante eu nunca beijava homem no rosto, não podia. Essa coisa perversa do olhar adulto repressivo que vinha com essa história do é "maluco ou é viado?" Eu dizia: "eu não sei, eu acho que sou maluco. Se for escolher entre os três, eu não sou ainda um homem de verdade, não sou. Agora, não sou machão. Isso eu tenho o orgulho de não ser. Porque todo machão é um corno em potencial." (risos) Qual é o melhor dos três: maluco, viado ou corno?

Daí eu fui pro palco fazer teatro, aprender transa de ator... e depois de um tempo, porque não fiquei na escola de teatro -- eu fui expulso, eu era absolutamente insuportável --eu virei uma criança de treze anos. Acabou o recreio e eu não quero ir para a aula. Eu tinha 25 anos e não suportava o fato de não poder ficar em recreio permanente. Eu não quero ir para a aula! Eu era abusado, muito mais do que ainda sou um pouco. Eu era abusado assim de não deixar a aula acontecer. Arrogante, mas uma arrogância positiva, eu acho, porque era contra a caretice. Todo meu objetivo era provar que o rei estava nu. Eu sou criança, não sei porra nenhuma, agora não vem me dizer que sabe não! Você sabe isso, sabe aquilo, vamos brincar de escravos de jó? O que é que você quer? Vamos brincar, vamos fazer um recreio para ver se a gente chega a alguma coisa séria. Agora, aula? Você vem me falar de aula, um momento sério? Para um homem de 25 anos que está desencantado com tudo que a mãe, os pais e os professores disseram até hoje? Então era uma rebeldia que se colocava contra qualquer discurso até às vezes indelicadamente. Uma vez eu fui muito indelicado com José Carlos Avellar e disso me arrependo.

Eu estava apresentando meu terceiro filme. Porque depois que me expulsaram da escola de teatro eu fui ver O Fantasma da Liberdade e comprei uma câmera super-8.

RG: Isso com quantos anos?

EN: Vinte e cinco anos.

RG: Em que ano foi?

EN: Setenta e seis. Eu compro a super-8 em janeiro de setenta e seis, em Manaus. Aí volto, faço o curso de teatro, sou expulso e aí ...

FV: Como é que você fazia para exibir seus filmes em super-8? Eles circulavam de alguma maneira, você fazia exibições?

DC: Começa contando para a gente como você começa a fazer os filmes em super-8 e aí a gente chega lá.

EN: Comprei a câmera e aí comecei a fazer meu primeiro filme, Alice no País das Mil Novilhas. Eu tinha lido Chico Buarque, com aquela coisa do Fazenda Modelo, que vinha com aquele discurso da bosta, do gado e do cogumelo. A maconha para mim tinha sido uma dinamite, uma dinamite na mina de ouro.

DC: Você fuma maconha depois que sai da faculdade de engenharia...

EN: Ah, sim. Ainda não tinha entrado no teatro. Mas ela foi assim um divisor de águas na minha vida. Eu fui uma criança muitíssimo reprimida, cheia de medos e de fantasmas e de horrores, que eu não posso nem entender o alcance desses horrores que estão nas raízes da minha alma. Eu não sei o que é isso, se pode ser explicado como carma, eu não entendo o que é isso. Eu sei que quando eu tinha três anos de idade, por aí, eu tinha um horror de estar vivo, de saber que eu estava vivo, que aquilo não era uma brincadeira, que aquilo era sério! Não era visto como videogame. Isso me dava pânico. Não posso entender porque eu pensava desse jeito. Então a maconha reintroduz para mim uma neurose que estava fermentada. Ela deflagrou essa neurose com 21 anos. Pedi para ser internado. A coisa da loucura que está no Superoutro, ela tem para mim uma importância... Eu tenho uma irreverência em relação a tudo, mas tenho uma imensa reverência em relação à loucura, porque eu já estive lá. A ponto de ter a certeza de que eu tinha que ser internado, porque eu ia morrer; matar, não, porque não me dava vontade de matar as pessoas. Mas eu ia me matar. Eu não estava suportando a carga de tensões que eu estava vivendo. Eu passei a não dormir, eu me tremia todo... Eu vivi uma época da minha vida que eu fiquei impotente, sexualmente... Olha, é indescritível a soma de tensões. Parecia que era uma torquez expremendo meu coração e minha cabeça e meu espírito. Eu dizia, "isso não é vida, eu estou morrendo." Isso que hoje chamam de síndrome de pânico, eu acho que era fichinha para mim. Eu tinha isso e não sabia, não tinha uma terminologia ainda. E eu vivi muito tempo com isso.

DC: Isso foi deflagrado pelo uso da maconha?

EN: Não, isso é antes. A maconha vem abrir uma janela que vai distensionar...

RG: Foi terapêutico, então, na sua vida?

EN: Foi, mas não naquele momento. Naquele momento foi o olhar para a coisa da respiração, da alimentação natural e da ioga e de coisas desse tipo. Antes da maconha foi assim. A macrobiótica, a ginástica, acordar cedo, a respiração, a ligação com a paz da mente, meditação, Gandhi, e Gil falando da Refazenda... Refazenda foi um pouco depois, mas Gil já falava algumas coisas nesta direção. Aí aquilo me distensiona. Eu deixo de ter que tomar comprimidos tranquilizantes. Eu vivia tomando tranquilizantes para segurar a onda. Aí quando estou nessa fase, de uma loucura talvez mais trabalhada, mas de uma forma ainda intelectual, vem a maconha e explode minha personalidade. O efeito que tem sobre mim eu não posso comparar com nada.

DC: E nenhuma droga chegou perto?

EN: Eu experimentei a maconha e não tive coragem de tomar o ácido. Quando eu tive coragem, ele caiu da minha mão na areia e não pude encontrar mais. (risos) No dia em que eu ia tomar o Santo Daime no Recreio dos Bandeirantes, aconteceu uma coisa interessante. Eu fui convidado por um amigo que disse: "olha, só pode entrar na festa quem for convidado, isso é um presente que você está recebendo no dia de Nossa Senhora da Conceição". Digo, "tudo bem". Mas eu estava numa dessas crises, porque volta e meia essas crises voltam. Uma crise de angústia, de ansiedade, uma pressão inexplicável... apenas o fardo de viver. Aí você pode dizer que é porque não estou produzindo e é -- os fatores externos são absolutamente consideráveis. Mas há fatores internos que eu também não posso negar. Eu sou muito maluco, muito mal formado. Talvez meu pai, minha mãe, toda a repressão pequeno-burguesa da minha família fez em cima de mim, eu não consegui lidar com isso de uma forma saudável. Talvez porque eu sou muito sensível, porque eu vi a hipocrisia muito cedo, a hipocrisia dos pais, dos irmãos e da humanidade toda. Aquilo que os padres me falavam -- eu estudei em colégio de padre --, me diziam que o mundo devia ser cristão, que a fraternidade, que não sei o que... eu via que tudo isso aí era da boca pra fora. Isso me dava um nó na cabeça. Eu chorava de dor, porque eles estavam mentindo para mim. A hóstia consagrada, aquilo é uma mentira! Tudo que a igreja fez na minha cabeça eu estou descontando num filme que foi dedicado à Igreja Católica chamado O Pecador. Esse eu vou fazer ainda. Eu vou ser excomungado. (risos) É a história da minha geração, mas pela ótica da minha sensibilidade. Por causa dessa sensibilidade, eu acho que fiquei atrofiado, alguma coisa em mim se perdeu, confiança, sei lá... Em alguns momentos, você não pode contar comigo, eu fico doente. E eu estava num desses dias, quando o cara me chamou para tomar o Santo Daime. Eu falei: "vou jogar o I-Ching". Aí o hexagrama disse: "qualquer movimento nessa direção será profundamente prejudicial, porque a noiva não está preparada para as núpcias." (risos) O que que eu fiz? Não tomei o Santo Daime. Eu tomei o Santo Daime lá em Lauro de Freitas, onde eu moro hoje, há dois anos atrás. As pessoas diziam que era completamente diferente da maconha, que eu ia encontrar o meu caminho. Meu amigo me levou, já encontrou o caminho dele, está iluminado, me levou e queria que eu fosse toda semana. Eu disse: "meu amigo, você vai me matar!" (risos) "Se eu fizer isso toda semana, eu não posso continuar vivendo a minha realidade, eu vou ser internado!" E não me deu nada diferente da maconha. Eu voltei à Rússia espiritual, só isso. Agora, quando eu fumava diariamente tinha uma coisa dentro de mim que era um desejo profundo de conhecer a minha verdade e enfrentar os meus fantasmas, os meus demônios. Eu tinha que pegar o touro com a unha, eu tinha que enfrentar, senão não era digno da vida. E todas as vezes eram surras homéricas, eu saía axurriadinho... mas depois tinha aquele alívio, aquela coisa maravilhosa. Eu dizia: "meu Deus do céu, que benesse, que maravilha, que dia lindo, que sol maravilhoso, que água maravilhosa..." Todas as coisas que vêm depois da rebordosa... Eu não sei como é com vocês, mas em mim vinha com uma amplitude...

DC: Você não fuma mais todo dia?

EN: Não, eu não posso fumar. Tem muito tempo que eu não fumo. Se eu fumo, eu entro num processo de dor tão grande, tão dilacerante, que é um dos meus tabus. Eu quero um dia me curar para poder fumar legal, e ter uma relação permeável com meu inconsciente. Não tenho. O que acontece com frequência é que quando eu fumo a dor me posiciona... eu não consigo mais falar, eu fico travado, começo a raciocinar que eu sou o culpado de Bin Laden ter jogado o avião... é um horror, uma paranóia, eu vou ter que ser internado! Porque a minha paranóia não tem limite. Então, quando eu comecei essa reflexão sobre a loucura, é que eu tenho uma reverência pela loucura que está além de qualquer coisa. E o meu tributo à loucura é o Superoutro, uma loucura que eu posso falar sobre ela, porque eu já estive lá; e falar sobre ela de forma a transcendê-la. Eu acho que o Superoutro tem o mérito de vencer a morte, de vencer a loucura.

RG: Uma loucura produtiva.

EN: É, tem a ver com o infantil... Então eu fiz um filme, Alice no País das Mil Novilhas, que era sobre o cogumelo que nasce na bosta do boi. É um filme oral, porque come-se o cogumelo. O segundo filme é O Rei do Cagaço que é o filme anal, obviamente. (risos) O terceiro é o filme fálico. Então é uma trilogia freudiana...

RG: Exposed?

EN: Sim. Tem uma Jornada de Cinema na Bahia que é hoje um simulacro do que foi no passado. Era uma jornada muito concorrida, onde todos os curta-metragistas, abedistas e todos se reuniam para discutir a política de cinema, o curta-metragem, o cinema político, o cinema de guerrilha, o cinema alternativo, de esquerda, stalinista, trotskista... o festival mais engajado que existia, com uma grande assistência de todo o Brasil. Neste dia, eu estava exibindo o Exposed. Quem estava coordenando o debate era o José Carlos Avellar. Aí, rapaz, começou o debate. Quando passaram o microfone para mim, comecei a falar recitando um poema em francês: "Maintenant je vais à l'école / j'apprends chaque jour une leçon / et celle qui prends la main à mon épaule / dit que je suis un grand garçon / quand le maître parle je l'écoute / et je retiens ce qu'il me dit / et il est content de moi sans doute / car je vois bien qu'il me sourit -- dedico este poema a Jean-Claude Bernardet!" (risos) Foi aquele mal-estar! "O caralho, o filme é sobre o caralho, vou falar de caralho, de pica, de buceta, de cu, de porra, de muita porra". José Carlos Avellar: "Mas assim não é possível, seu Edgar! Vamos conversar." (risos) "Conversar o quê! Vamos conversar. Não precisa conversar com a boca, pode conversar com o cu, pode peidar! Você pode fazer assim, ó. Todo mundo assim comigo, isso é um exercício de ioga. Eu não vou falar, não vou conversar, eu vou dançar! Vou me exprimir com o corpo, pode?" "Pôxa, assim não dá, vamos continuar o debate!" (risos) "E você acha que não está havendo debate?" Foi nesse clima. Aí ele disse: "olha, se o senhor continuar assim, eu vou me retirar!" "Ah, o senhor não vai se retirar não, eu vou me retirar!" Eu me retirei da mesa e fui para a platéia, ali eu estava onde eu queria. Continuou o debate e eu comecei a fazer interferências cada vez mais ácidas e escandalosas: "o filme, Exposed, não é sobre pica? O filme não é sobre pica, é sobre nudez. Então eu vou tirar a roupa!" Antes disso, teve um negócio que ele falou que não me lembro o que foi... Era meio um acirramento, uma coisa assim. Ele disse um desaforo para mim. Eu disse: "olha, rapaz, você quer saber de uma coisa? Vá tomar dentro de seu cu!" (risos) Ele levantou e saiu. Aí, não teve mais jeito. Eu disse: "Não é isso que vocês queriam? O microfone está comigo, o microfone é uma pica, o microfone é potência. Eu agora tenho o poder. Então eu agora vou exercer o poder da porra sobre vocês. Vou fazer um círculo mágico aqui, ninguém mais sai desse lugar enquanto eu não contar a minha vida toda para vocês. (risos) Essa camisa está me incomodando, está fazendo calor, vou tirar..." Na seqüência, tirei a roupa toda. Comecei a lascar o cu, a bater a pica pra lá e pra cá, gritando e xingando... fiz um círculo... enquanto o pessoal gritava: "Vai, Edgar!" Virou uma baderna lá dentro. Gente se retirando, gente indignada. Chegou lá nos píncaros da glória, eu vi um movimento estranho, me deu aquele medo da porra, eu pensei: "porra, vão chamar a polícia. Vou me foder!" Era a ditadura militar. Aí, me sentei, baixou aquela onda, veio um amigo e disse: "Edgar, pegue a sua cueca, vista a sua roupa e saia como se nada tivesse acontecido" (risos) Peguei tudo, me vesti, peguei o ônibus e fui para casa. Só.

RG: Edgar, nós fazemos parte de uma geração que viu Superoutro em algum momento da formação de cinéfilo sempre em torno de uma aura de mistério, porque a gente corria nas revistas e era pouca a informação -- tem uma matéria na Cinemin, outra na Tabu... é um filme com o vigor de um Bandido da Luz Vermelha, de um filme iconoclasta e revoltado que mostra uma grande energia.

DC: o Superoutro é o mais marginal dos protagonistas do cinema brasileiro. Ele é louco, mendigo e suicida., quer dizer, é além do cinema marginal. Muito além do que Sganzerla, Bressane e qualquer um podiam imaginar. Você realmente encheu o cinema de merda e coragem...

EN: E era uma coragem suicida, né? Quando eu falo em kamikaze, é porque eu tinha a sensação de que o que eu estava passando em alguns momentos era tão doloroso e tão para além de qualquer tolerância... tolerância que eu digo é de você suportar o fardo. Eu era um pouco como o Brás Cubas. Alguém que já morreu. Eu não tinha mais porque ter medo de nada. É como alguém que vai morrer cedo. Eu devia ter morrido cedo, mais cedo, bem cedo. Já que não morri e sobrevivi, agora é difícil lidar com uma metáfora que você criou que não tem conciliação possível. Aí você tem que sobreviver, fazer negócios... por isso que eu digo que o Superoutro é muito melhor do que eu. Eu gostaria de já ter voado, de ter partido. Glauber, por exemplo, morreu cedo e acho que morrer cedo é confortável em certo sentido porque sobreviver é uma infâmia. Mas eu tive um bicho desse de orelha que me revelou em algum momento, por causa de maluquice -- esses sinais que a gente tem -- que em vez de morrer com a idade de Glauber, eu ia morrer com o dobro da idade de Glauber, eu ia morrer com 84 anos. Aí eu digo: "meu Deus do céu, mas eu vou ter que viver até lá?" Mas isso era um horror para mim. Hoje eu já não encaro com horror, muitas vezes eu encaro com muita alegria, poder viver com saúde e com alegria. Agora, isso foi revelado para mim como um carma, "você vai ter que suportar esse peso até velho, dor, doença, loucura, morte e tudo na sua vida você vai ter que aturar..." E o barato que eu saquei é que o cinema fez comigo uma grande magia, uma grande alquimia... dentro dessa linha que eu estava estudando da ioga e da alquimia e etc... hoje, eu tenho essa reflexão. Eu vou fazer um filme agora cuja metáfora é: "transformar dor em luz." E luz é a matéria-prima do cinema. Essa é a metáfora do Eu me Lembro. O filme termina quando a personagem diz que vai comprar a câmera de super-8, vai tentar mostrar isso fazendo um filme...

FV: Voltando ao Superoutro, um paralelo que é, para mim, quase impossível deixar de traçar -- até porque há referências visuais em seu filme, assim como temáticas, com essa coisa do herói do terceiro mundo -- é com O Profeta da Fome, de Maurice Capovilla.

EN: Eu não assisti a este filme. Me falaram dele. Eu quero ver esse filme.

DC: Com o Mojica dublado pelo Pereio...

EN: Quem me falou desse filme foi o Aleiques Eiterer, que está trabalhando numa tese sobre esse filme.

DC: Bem, voltando à questão do super-8...

RG: Depois dessa trilogia, o que você fez?

EN: Eu fiz um filme em super-8, que foi um ensaio do Lin e Katazan, esse de 35mm. É o mesmo filme com outros atores, um ensaio. Depois eu fiz Na Bahia Ninguém Fica em Pé, que é um documentário sobre o cinema baiano, pegando o depoimento de várias pessoas, falando dessa indigência do cinema baiano naquele momento -- como sempre, né? --, 1980. Depois eu fiz o Lamarca [Porta de Fogo] em 82 e o filme foi exibido em 85, porque foi finalizado em 84, mas ficou um ano sem poder ser visto, proibido pela ditadura, porque era "contra o regime democrático". Eu recebi um documento que ainda tenho. Aí foi exibido pela primeira vez em 85, ganhou ironicamente o prêmio de melhor filme de ficção na Jornada. Em Brasília, ganhou melhor filme e melhor roteiro. Foi quando conheci João Carlos Viegas, que estava concorrendo comigo com o filme A Última Canção do Beco, um filme bonito sobre Manuel Bandeira.

FV: Seus primeiros filmes em super-8 chegaram em outras partes do Brasil, num esquema de cineclubes?

EN: Foi para Aracaju, Recife, Alagoas, tinha um festival de cinema super-8 em Niterói... no circuito de super-8 eles todos circularam bastante.

DC: O Rei do Cagaço, inclusive?

EN: Sim. O Rei do Cagaço ganhou o prêmio de melhor filme de ficção no festival de Recife em 77. Eu circulei também nas universidades, mostrando em circuitos alternativos. Levava o próprio original, não tinha cópia do filme. Aliás, foi esse original que vocês viram telecinada. Felizmente não se perdeu muita coisa, porque alguns pedaços foram cortados na grifa, mas deu para preservar. A trilha sonora está sendo restaurada pelo Itaú Cultural que vai fazer uma mostra de todos os filmes representativos da década de 70 em novembro, em São Paulo.

RG: Uma última pergunta, relativa a seu período na década de 90. Eu acho que não foi só você, dos grandes iconoclastas e rebeldes do cinema brasileiro, que teve dificuldades em filmar. Ozualdo Candeias teve dificuldades, Rogério Sganzerla só conseguiu fazer um longa...

DC: Jairo Ferreira...

RG: ... eu queria que você falasse do seu percurso nos anos 90, e da dificuldade, se houve, de fazer cinema.

EN: Muitíssima dificuldade. Quando o Superoutro foi bem recebido em Gramado, eu achei que minha carreira ia deslanchar. E de lá para cá eu não consegui fazer nada, doze anos depois. É bem a cara do que aconteceu comigo. Durante esse tempo eu fiquei produzindo roteiros de longa-metragem; produzi já quatro roteiros e o quinto será filmado ano que vem, por ter ganho um concurso de roteiros lá na Bahia. Fiz também um documentário em longa-metragem em video, chamado Talento Demais, que dá conta desse muito talento que temos lá na Bahia, mas que tá muito lento, tá lento demais.

RG: De que ano é?

EN: É de 1995. O filme conta a história do cinema baiano de uma forma brincalhona, metalinguística, pegando cenas de filmes baianos e depoimentos das pessoas. Vai alinhavando aquilo e brincando com a própria dor. É rir da própria dor para não chorar. Bem, depois tem um outro filme pequenininho de seis minutos, que eu fiz em video, chamado O Papel das Flores, que conta a história de um fotógrafo que perdeu todo o acervo que ele tinha. Ele passou a vida toda em busca da fotografia perfeita, e quando ele perde aquilo, ele se dá conta de que pode superar, porque já perdeu o filho e superou. Ele vai ser capaz de superar toda a dor. Ele compreende uma coisa e decide ser jardineiro. Daí o título, O Papel das Flores, que é um jogo com o papel fotográfico e o papel das flores. Ele fotografava flores e paisagens, tentava eternizar as flores, e depois de tanto tempo em busca da luz perfeita, ele perde tudo num incêndio. Ele se dá conta que a efemeridade do momento, de produzir uma flor por dia, a eternidade está no efêmero. De repente ele se dá conta que não deve tentar capturar eternamente o momento, não precisa. Tudo o que ele busca está ali, se ele puder ter a delicadeza e a paciência para ser um jardineiro decente. Isso para mim foi muito melhor do que eu posso ser. Eu não consigo fazer nada de jardinagem, porque sou impaciente.

(Entrevista concedida a Daniel Caetano, Ruy Gardnier e Fernando Verissimo - 8 de outubro de 2001)

Publicada em outubro de 2001