26/02/2009

Câmera, morte, vida e vida - sobre Camera, de David Cronenberg

Photography is death. A fotografia , ao registrar um instante, registra a morte daquele instante. O rosto filmado de um ator é como uma máscara mortuária – o ator se transformará futuramente, e aquele rosto nunca mais vai existir senão em sua representação fotográfica. Atira-se (to shoot, em inglês, o mesmo termo usado para ‘filma-se’) em nome de quê? Da vida – ou do entretenimento. Não é assim mesmo?

O filme Câmera é um curta-metragem de pouco menos de sete minutos, escrito e dirigido por David Cronenberg e produzido em comemoração ao aniversário de 25 anos do Festival de Cinema de Toronto. Os diretores do Festival queriam ter um pequeno filme que falasse do cinema. Tiveram Câmera. Saíram no lucro.

Pode-se resumir a narrativa a um ensaio de um ator enquanto filmagens estão sendo preparadas à sua volta – e, quando começa a rodar o texto que estava sendo ensaiado, ele parece compreender e emocionar-se com o que disse até então. Esse é só o truque narrativo, porque há detalhes insólitos que terminam por justificar plenamente o estado de choque em que entra o ator quando vai repetir seu discurso. Para começar, quem nos fala é um senhor que parece tecer comentários sobre o que estamos vendo – um bando de crianças que, inexplicavelmente, estão preparando uma filmagem como autênticos profissionais de cinema. É assim que começa o filme, apresentando de cara esta situação – ouvimos a narração: "Um dia, as crianças trouxeram para casa uma velha câmera, não sei onde a encontraram, e ficaram terrivelmente excitadas. Resolveram fazer um filme...", enquanto vemos a cena bizarra de várias crianças pilotando uma câmera profissional numa grua dolly (com rodinhas).

Se esta cena é insólita, o depoimento por sua vez é o mais plausível que seu tom agônico permite. Depois de nos apresentar este estranho mundo do cinema das crianças, o narrador nos conta que era ator e que perdeu o interesse por câmeras e filmagens – afinal, como ele nos diz, fotografia é morte, e isso para um ator não é um tema abstrato. Ele não queria que aquele filme fosse adiante – crianças e morte são uma péssima combinação, como ele nos adverte. Conta-nos então de um pesadelo que teve, de estar presente numa sessão de um filme em uma sala de cinema e perceber que ele e todos os presentes estavam sendo envelhecidos rapidamente enquanto assistiam ao filme, como se da tela saísse uma "doença do filme" – pesadelo esse que o acordava apavorado. E, no entanto, agora o pesadelo era real. Conforme o tempo passou, assistindo aos seus filmes antigos, percebeu que o pesadelo se transformava em realidade – fotografia é morte – e nos convida a confirmar isso em seu rosto envelhecido.

Mas, enfim, não adianta ele chegar a todas essas conclusões, as crianças resolveram brincar a sério com a câmera, vão rodar um filme e ele vai ter que fazer parte disso – "as crianças, vocês sabem, quando teimam em fazer uma coisa...". Além disso, com o tempo, ele reconhece, ele já foi assimilando melhor as idéias, passando a ter uma relação não mais que "melancólica" com a câmera. Afinal de contas, a câmera também já está velha, já lhe parece uma conhecida de longa data. E é importante lembrar que as crianças estavam se divertindo, e tudo aquilo parecia ser ‘puro e inocente’ – "ainda que nada nesse caso possa ser considerado puro ou inocente".

Então, tudo pronto, hora de rodar – a imagem que víamos até então era feita em vídeo digital. A criança que representa o diretor-autor do grupo dá o sinal: "ação!", e então surge para nós o plano filmado – o único feito em película em Câmera. Nosso narrador, maquiado e bem-iluminado como não esteve em nenhum outro momento, começa seu discurso: "Um dia, as crianças trouxeram para casa uma velha câmera, não sei onde a encontraram, e ficaram terrivelmente excitadas...". Ele repete a fala inicial. Neste momento entendemos que todo aquele depoimento emocionado era um "ensaio". Só então que isso fica claro – era um ator ensaiando o discurso feito por um ator. Mas aí algo acontece. Como dizem os paulistas, cai a ficha. Não há mais para o ator distância entre ele e o personagem – a câmera o desnudou. Nessa hora, o discurso ensaiado já foi dito, e basta o silêncio – do qual somos cúmplices – e a tristeza que se abate por parecer saber o script de cor.

Se há cinema para as crianças, mal ou bem, todos podemos ser um pouco crianças – e que bom que as crianças sabem se divertir. A câmera pode matar o instante que registra, mas é ela que cria os instantes que por si só nunca existiriam – como o filme nos mostra, a câmera traz à tona o silêncio final e a vida transborda no filme. As crianças se divertem – e que bom que podemos participar, que bom que somos todos crianças. Se filma-se e atira-se por entretenimento, se a fotografia é morte de forma tão infantil, que a nossa melancolia nos conceda que, por vezes, isso pareça ‘puro e inocente’, ainda que ‘puro e inocente’ sejam termos que raramente podem ser aplicados nesses casos.

Cronenberg fez um filme de sete minutos que explicitou e denunciou a ‘doença da tela’ – mas que mal faz ela por si só? Não será que ela apenas nos espelha?

Ao olhar o cinema, é um filme que fala da velhice e da juventude, da morte, da vida, da vida que se renova e que produz, irresponsável e teimosa. Só que é um filme amargo, melancólico como só ele – em seus poucos instantes nós nos damos conta de como somos crianças empolgadas e como somos velhos melancólicos, e como uma coisa sucede a outra natural(e cruel?)mente.

Curto como é, no entanto é também, possivelmente, o maior filme do ano. Se, por um lado, retoma vários dos temas que sempre interessaram a Cronenberg (como a tal ‘doença do filme’ ou a transformação causada pelas estranhas relações com a tecnologia), esse filme se torna um marco em sua carreira pela melancolia definitiva (e até carinhosa) que dá tom ao filme, como a nenhum outro até então – além disso, há um sincero e revelador carinho pelos filmes que as crianças fazem.

É preciso acrescentar, finalmente, que a atuação de Leslie Carlson é de entrar para a história da velhice melancólica – que bom que uma câmera a registrou.



Texto publicado em dezembro de 2001

06/02/2009

Conhecer a si mesmo...

Quando penso em exemplos de revalorizações póstumas, é comum que eu lembre do caso de Nelson Rodrigues – cuja obra teatral teve razoável reconhecimento (ainda que bastante polêmico e bastante censurado na sua época), mas cuja obra literária de crônicas, contos e romances só recentemente ganhou maior relevância e permanência. Se vivo fosse, Nelson certamente estaria feliz com o reconhecimento que ganhou postumamente e talvez se divertisse fazendo paródias do seu querido Dostoievski. Afinal de contas, talvez tudo se resuma à perda da certeza divina: se Deus está morto, todos somos críticos. Mais ainda: se a ciência não pode ocupar o lugar de Deus, não há nada que dê base a nós como críticos. Cada um por si - e na hora a gente vê para que lado o rebanho seguiu.

A crítica estética se vê cercada por esta armadilha do subjetivismo desde que o filósofo Kant iniciou a sua Analítica do Belo, capítulo da Crítica da Faculdade do Juízo, com as seguintes palavras:

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação não pelo entendimento ao objeto em visto do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou de desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aqui cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo. Toda referência das representações, mesmo a das sensações, pode porém ser objetiva (e ela significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer ou desprazer, pelo qual não é designado nada no objeto, mas no qual o sujeito sente a si próprio no modo como ele é afetado pela sensação.



Neste parágrafo Kant indicou o problema eterno da crítica – a crise permanente que se tornara o estabelecimento de um ponto-de-vista estético na era moderna. Se não há mais uma verdade e um bem divinos a comprovar a qualidade e a grandeza das obras artísticas; se a pretensão que norteia uma obra artística não é mais, obrigatoriamente, estabelecer a verdade e o bem coletivo – então, qual será a base que manterá a perspectiva construída para fazer um juízo de valor artístico sobre uma obra? Em essência, a história da crítica - da melhor crítica - é a história da resposta a esta questão: para alguns, a partir da análise dos signos da obra em questão; para outros, através da percepção das reincidências históricas ou pessoais; com tentativas de legitimação a partir de pretensos consensos; ou mesmo a partir de uma estilização do impressionismo subjetivista a que Kant reduziu os gostos pessoais. Tantos caminhos levam a lugar nenhum: o poder da crítica, seja grande ou pequeno, não lhe garante a base sonhada da objetividade - a avaliação crítica traça juízos de valor sombreada por um questionamento sem fim sobre o seu grau de acerto. Não há solução - somos bilhões de críticos, tão mais convictos quanto percebemos os possíveis equívocos alheios.

Resta à crítica mostrar interesse pelas obras e tentar perceber o que elas apresentam de único e mais significativo. Provavelmente Kant não concordaria com essa idéia, mas me parece que é o interesse direto e a curiosidade apaixonada (e, portanto, parcial) que dão maior relevo ao papel da crítica. Como já disse um outro, o crítico mais valioso é aquele que chama a atenção de seus pares para obras significativas cujo valor estava passando despercebido. É interessante lembrar dos casos de alguns dos mais conhecidos críticos brasileiros de cinema: no caso de uma geração mais velha o interesse pela produção local só surgiu após muitos anos de cinefilia e escrita (como aconteceu com Alex Viany e Paulo Emilio Salles Gomes); poucos anos mais tarde, Walter Hugo Khouri e Rubem Biáfora seriam celebrados por ter apontado mais cedo dois autores relevantes de um certo “cinema de arte” europeu, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni; num momento seguinte, figuras como Jairo Ferreira e Jean-Claude Bernardet, cada um a seu modo, envolveram-se profundamente na valorização de certos filmes locais, em alguns casos, e de ataque a outros modelos. É interessante contrapor nestas gerações o interesse em se manifestar, seja a favor ou contrariamente. Khouri esteve mais preocupado em produzir seu cinema e em defender a relevância de novos estilos internacionais do que em se envolver teórica e praticamente nas questões e escolhas da crítica do cinema de seu tempo e lugar, enquanto Jairo e Bernardet sempre se caracterizaram por tomar posições, certas ou erradas, diante do panorama dos filmes brasileiros. Isto me faz lembrar do depoimento dado por João Moreira Salles para o filme Crítico, de Kleber Mendonça Filho. Ali, Salles afirma que a crítica depende da qualidade da produção de sua época e sugere, como exemplo, a dificuldade que teria um crítico de samba que morasse no Japão. Há nesta fala um curioso equívoco: a inversão do surgimento da produção artística e da crítica; por esta lógica, poderíamos crer como algo natural que existisse um crítico especializado em um ritmo musical desconhecido antes mesmo deste ritmo ser tocado pela primeira vez. Na verdade, se um japonês se decide a criticar sambas, cabe a ele entrar em contato com a produção de sambas e fazer suas avaliações; se daí elas serão irrelevantes, isso já é outra questão. Mas, certamente, ao “crítico de sambas japonês” sempre caberá a alternativa de procurar outras produções musicais mais presentes e vigorosas no lugar e no tempo em que ele vive. Talvez Khouri e Biáfora, sob essa ótica, tenham sido bons “críticos de sambas”, enquanto os que começaram depois procuraram descobrir o que havia de mais interessante na produção que lhes era próxima.

Nelson Pereira dos Santos, mestre maior, costuma lembrar que a primeira crítica séria que um filme seu sofreu foi a do chefe de polícia. Por ocasião da estréia de Rio Quarenta Graus, o Delegado Municipal do então Distrito Federal resolveu proibir o filme porque este ofereceria uma visão “distorcida” sobre a realidade do Rio de Janeiro. Se não tiver poder de polícia, já disse Nelson mais de uma vez, a crítica pode ser livre para se manifestar como quiser, com maior ou menor dose de inteligência.

Isso pode parecer uma anedota singular, mas está longe de ser caso único. A pior crítica sofrida pelos poetas, cineastas e demais artistas soviéticos foi o patrulhamento stalinista. A mais violenta crítica escrita num texto não se compara a impedir fisicamente a veiculação da obra e mesmo a prender o artista (ou fazer coisa pior). A arte, qualquer arte, naturalmente se propõe a desafiar os parâmetros vigentes – e isso pode render reações contrárias bastante incivilizadas. Certamente, é preferível a grosseria escrita ao autoritarismo pleno...

E esta questão está presente desde o início das discussões sobre estética. Como se sabe, os primeiros textos da filosofia a discorrerem sobre o que é a beleza foram os de Platão – nos diálogos Fedro, O Banquete e, sobretudo, no livro X de A República. Neste, Platão, pelas palavras atribuídas a Sócrates, chega à conclusão de que os artistas deveriam ser expulsos da sociedade ideal – entre outros motivos, porque a beleza de suas obras poderia confundir a atenção diante daquilo que, para Platão, é o valor supremo: o conhecimento da verdade. A arte, que sempre é um duplo do universo, torna-se ameaçadora para o conhecimento deste universo em si. Isto poderia parecer apenas um discurso retórico, não fosse o caso de Eurípides, o criador de peças como Medéia e As Bacantes. Eurípides, que era acusado de fazer obras com personagens que continham as piores características dos homens, terminou sua vida exilado de Atenas – expulso da cidade onde apresentou seu trabalho por décadas. Ele, que séculos mais tarde, ironicamente, seria acusado por Nietzsche de ter trazido a filosofia socrática para os palcos onde até então predominava o espírito trágico e grandioso, foi expulso de Atenas quando Platão ainda era um jovem estudante. Se, após ter sido testemunha da condenação de Eurípides ao exílio, o filósofo mais tarde defenderia medidas parecidas para seu mundo ideal, não é tarefa muito fácil ignorar a carga de agressividade do discurso platônico ao questionar o papel da arte na sociedade ideal.

É bastante interessante lembrar de outros aspectos do caso de Eurípides ao pensar na importância da crítica e na pertinência dos seus julgamentos. Se Ésquilo e, mais do que ele, Sófocles colecionaram anualmente vitórias seguidas nos concursos anuais de peças trágicas, Eurípides venceu-as pouquíssimas vezes (com Medéia, com a segunda versão de Hipólito...). Ao fim da vida foi obrigado a exilar-se, depois de, entre outros desgostos, ter sido acusado por Aristófanes (em As Rãs) de trazer o pior do caráter humano para os textos trágicos. No entanto, das suas dezenas de peças, dezenove chegaram até os dias de hoje com o texto integral. Ou seja, a posteridade mostrou preferência pelo que ele criou - tanto de Sófocles quanto de Ésquilo restaram sete peças e nenhum texto integral dos demais poetas trágicos daquele tempo sobreviveu à passagem do tempo. A posteridade, que cumpre o papel de crítica definitiva, fez uma escolha diferente da proferida pelos cidadãos de Atenas. Ela reconheceu como qualidade nas obras de Eurípides aquilo que para seus detratores foi a sua falha - estas peças trouxeram para os palcos a obscuridade do espírito humano, as falhas de caráter e os sentimentos mesquinhos ou pretensamente imorais. A covardia de um pai ao aceitar o sacrifício da própria filha em Ifigênia em Áulis; a arrogância de um sujeito insolente diante de um deus na terra em As Bacantes; o desejo de uma mulher mais velha por seu enteado em Hipólito; o ressentimento assassino de uma mulher após ser trocada por outra pelo marido em Medéia: os exemplos se sucedem por toda a obra de Eurípides para indicar que Aristófanes e Nietzsche podem estar certos em suas percepções sobre as características deste teatro, mas certamente o juízo de valor que fizeram é inteiramente diferente do juízo coletivo de uma tradição, evidenciado pela memória dos povos do teatro.

O que resta é a posteridade, e não há nada a garantir que seus julgamentos são infalíveis. As obras podem perecer, perder o seu sentido inicial, ou podem, em reverso, ganhar novos sentidos com o passar dos anos - se conseguirem sobreviver inteiras até lá. A crítica pode declarar afetos e apontar sentidos nas obras (ou mesmo ampliar os sentidos a partir de analogias), pode procurar decifrar os mecanismos destas “máquinas de produção de significados” que são os objetos artísticos. Mas o seu julgamento de valor sempre caminha sob a sombra dos equívocos que o tempo vai deixar evidente. Quando fala das obras, o crítico se baseia em valores da sua época e do seu lugar que rapidamente podem se tornar arcaicos. Por isso, prefiro acreditar que não há alternativa senão escolher o caminho sugerido por Eurípides e se filiar ao que há de mais humano nas obras; correr o risco do interesse e da aproximação, da percepção das falhas e do contexto - porque a crítica só faz sentido se está disposta a se manifestar sobre o mundo em que se encontra. E, sendo assim, o equívoco faz parte da regra do jogo: para quem tem o que dizer, é melhor correr o risco de se ver corrigido pelo decorrer dos anos do que manter-se em silêncio enquanto o tempo se vai. É deste risco que nasce a crítica de nossa época que mais me interessa.


Texto publicado na edição nº 3 da revista Reserva Cultural, em maio de 2008.

Os corpos e algo além (sobre os filmes de Nagisa Oshima)




A forte presença da comunidade japonesa, sobretudo em São Paulo, sempre permitiu que perspectivas e relações bastante interessantes fossem percebidas pelos olhares daqui. Para nós do extremo ocidente por vezes as aproximações com esta cultura bastante distante da nossa são capazes de provocar alguns saudáveis abalos nas convicções - afinal, se a perspectiva latino-americana surge como uma versão alternativa, desterrada, da cultura eurocêntrica, o lugar oriental traz a impressão de um distante e milenar caminho alternativo, como sendo “o outro de nosso outro”. Nesse sentido, é especialmente intrigante quando podemos observar certos movimentos acontecerem em relativa sincronia entre lugares e culturas tão marcadamente separados - é o que acontece quando nos deparamos com diversos objetos artísticos que, num mesmo momento histórico (ou ao menos parecendo incluir-se numa mesma trajetória de fatos), são criados com a intenção de confrontarem tabus de seu tempo, sejam da sociedade ou do próprio meio de expressão. Isto pode ser percebido em alguns filmes de várias partes do mundo realizados durante os anos 50 a 70, todos eles com imagens que traziam inovações de linguagem e geravam uma ampla revisão dos cânones sociais e estéticos (já bem conhecida e estudada), nisso que se convencionou chamar de cinema moderno.

Não é novidade que uma motivação constante para as obras de arte seja seu papel como agente do confronto com as normas - isto nunca foi novidade na tradição ocidental. Mas, como foi notado por diversos artistas e críticos em diversos momentos, desde o período do romantismo (de Victor Hugo a Baudelaire...), nos últimos séculos a provocação de mal-estar e a visão do proibido se tornaram cada vez mais constantes. A sensação de equilíbrio e harmonia buscada pela beleza clássica, pouco a pouco, perdeu sua força e presença diante de um movimento de obras dispostas a incomodar e desestabilizar as crenças e paixões de quem vê: o papel da arte é incomodar.

Mas isto se deu no Ocidente europeu - pelo menos desde o momento que marca a modernidade, a Revolução Francesa, se lembrarmos dos escritos de Sade. Desde então, é constante o surgimento de obras que procuram gerar mal-estar para, assim, gerar uma alteração no humor de quem assiste para levar a um outro estado - o do contato com uma “verdade” que, se puder ser suportada, torna-o mais forte. No entanto, se essa constância na arte ocidental dos últimos séculos pode ser percebida e compreendida dentro de uma trajetória histórica do pensamento que procurou se libertar da tradição do idealismo e tratar das coisas próprias dos homens, o mesmo não valeria para as ressonâncias que essa trajetória despertou em outros lugares - como despertou dentro da história e da arte orientais.

Nesse sentido, parece-me realmente fascinante o incômodo que certos filmes de Nagisa Oshima buscam e conseguem causar nas suas platéias. Fascinante pelo grau de risco e entrega que estes filmes apresentam - e justamente devido a isso se tornam objetos de repulsa e proibição em diversos lugares do mundo. Essa simetria permite chegar a uma conclusão evidente - que o uso da arte como maneira de provocar transtornos na sensibilidade de quem vê não é uma característica apenas da modernidade européia e seus filhotes; que talvez seja uma atitude indiscernível da própria criação artística. Só que esta conclusão não diminui o efeito (que me parece ser inquietante até os dias de hoje, embora seja velhíssimo) de perceber a simultaneidade dos movimentos que ocorreram em vários países no mesmo período - uma simultaneidade indicando que, ainda que lugares como o Japão outro contexto cultural, inteiramente diverso, os efeitos da modernidade européia ressoaram mundo afora e obtiveram respostas ainda mais radicais do que as que nasciam internamente.

Certos filmes de Oshima atacam tabus acerca do que o cinema tem de mais duro e indomável - a visão dos próprios corpos - com uma radicalidade sem igual. É o caso de seu filme mais conhecido no Brasil, O Império dos Sentidos - que, como alguns de seus outros filmes (Max Mon Amour ou o mais recente Tabu, por exemplo), mostra os efeitos do desequilíbrio entre as relações causado pelo desejo. Mas O Império dos sentidos vai além: o filme mostra os corpos dos amantes se entregando a uma batalha interminável em busca do instante definitivo de amor, num movimento crescente de obsessão que por princípio não tem como ser apaziguado. Na história de entrega física do casal Kichizo e Sada, seus corpos se apresentam e se interpenetram diante dos nossos olhos sem pudores. Como disse, estes pudores se mostraram amplamente pelo mundo afora, sinalizando que os tabus de nudez e sexo explícito infringidos pelo filme são mais profundos do que a tradição cultural do lugar de onde vieram.

O que me interessa notar é que essa explicitação da entrega de corpos entre os amantes (para além da beleza própria que o filme mostra ao apresentá-los com notável paixão em sua visualidade) torna explícito, por conseqüência, como a entrega ao amor não suporta se restringir aos corpos - e talvez seja esta uma razão tão ou mais forte que a visão dos corpos nus ou do ato sexual, para o filme despertar tamanho incômodo a uma certa moral apaziguante (e por isso ter sido censurado em tantos lugares). Em O Império dos Sentidos a satisfação sexual nunca é o bastante para a sensação de plena entrega - como se fosse preciso entregar uma parte do corpo que não está no corpo, e por isso eles precisam se envolver e se entregar cada vez mais a cada momento, precisam ir cada vez mais além do que podem suportar. Por essa razão é que surge a possessividade e pela mesma razão é que é preciso envolver no jogo de sexo qualquer figura que se aproxime; por essa razão a entrega plena dos corpos passa a ser o único caminho para realizar de forma definitiva o amor - e, assim, congelar o tempo. Se até certo momento Kichizo procura esconder de sua esposa a relação com a empregada Sada, logo precisa abdicar dessa posição. Os instantes em que os dois permanecem juntos têm tamanho valor que a entrega sexual não pode permitir que haja tempo para limpar os aposentos, nem tampouco para qualquer alimentação que vá além do mínimo para seguir adiante. Mas cedo ou tarde o caminho dos amantes acaba por se mostrar inescapável, porque na verdade não há outra alternativa: para tamanha e tão constante entrega física , a sombra do tempo eterno é a morte. Romântico até o limite, o destino de Sada indica a ironia: ela perde seu amante e, com ele, a razão. No entanto, como nos conta a narração, sua história tornou-lhe um personagem relativamente popular, como de fato acontece quando as pessoas tomam conhecimento de personagens reais de enredos fabulosamente românticos. Mas a popularidade de Sada guarda essa ironia, segundo nos mostra O Império dos Sentidos: ela se tornou conhecida entre as pessoas do seu tempo pelo grau de entrega e paixão de sua relação com Kichizo - no entanto, como vimos, essa entrega em nenhum momento foi satisfatória o bastante. As pessoas a admiravam por acreditarem que ela alcançou algo que, na verdade, nunca conseguiu deixar de perseguir.

Esta inquietação que surge da capacidade de sugerir uma entrega trangressivamente máxima e o desejo de ter ido além do que foi fisicamente possível parece ser parte da ambição do próprio filme. Investir contra os tabus é pouco para O Império dos Sentidos: mais do que isso, o filme parece ambicionar uma conciliação definitiva similar à de seus protagonistas: uma conciliação entre corpo e obra, entre vida e arte - e, assim, ele sintetiza diversas questões que caracterizavam a produção artística de um outro contexto cultural, este que acontecia no lado europeizado do mundo. A ironia em relatar a “estranha popularidade” que sua protagonista ganhou após os incidentes narrados indica que é um filme ciente de seus limites, mas confiante na sua capacidade de rompê-los e transtornar quem o assiste, com sua aposta numa entrega dos corpos imensamente superior a que estamos acostumados a suportar.


texto publicado na edição nº 4 da revista Reserva Cultural, em agosto de 2008.

Lugares e momentos (sobre os filmes de Alain Resnais)




Hoje, após Alain Resnais assinar a realização de vários filmes ao longo de décadas, talvez nós possamos dizer que há um elemento decisivo que divide a sua produção em dois momentos: é exatamente a perspectiva histórica que os primeiros apresentam. Para além da obviedade rasteira de apontar que nos primeiros anos de carreira Resnais assinou diversos documentários e posteriormente só fez filmes de ficção, o que quero dizer é que esta noção de perspectiva histórica também pode ser apontada em Hiroshima Mon Amour e mesmo em O Ano Passado em Marienbad – que, talvez justamente por isso, são seus filmes mais lembrados e citados. Não é por acaso: de certo modo, até Marienbad o cinema de Resnais encarou questões centrais do que chamamos de era moderna; a partir de Muriel, seus filmes apresentam relações e questões que, de certo modo, já se faziam presentes em Hiroshima e em Marienbad – mas, se até este ponto os filmes assinados por Resnais tratavam de questões explicitamente próprias de um determinado momento, a partir de então seus filmes seguem outro caminho. Não estão mais no ambiente da reflexão histórica, mas nos ambientes das relações entre casais, da encenação dos personagens, dos sentimentos que eles apresentam, da imaginação... entre dramas e divertimentos, seus filmes passam a usar elementos atemporais.

Neste sentido, não é estranho que os primeiros projetos de Resnais tenham obtido maior ressonância. Ainda que eu tenha proposto a divisão mencionada no parágrafo anterior, é claro que qualquer filme – ou melhor, qualquer obra de arte – responde a seu tempo a partir das questões que escolhe para si – mas são raras, no entanto, as obras que refletem com tanta força sobre os aspectos críticos de seu tempo como estes filmes das primeiras décadas da carreira de Resnais. Me dei conta disso quando estava vendo o curta-metragem As Estátuas também morrem – que conjuga política e poesia, partindo da percepção do momento em que máscaras africanas se tornaram peças constantes de museus na Europa para refletir sobre etnocentrismo e racismo. É um pequeno filme impressionante sobre o papel social reservado ao negro na sociedade racista ocidental – feito em meados da década de 50. Este curta-metragem (co-assinado por Chris Marker) não é o único caso em que Resnais fez um filme que buscou refletir poeticamente sobre os aspectos e casos mais dramáticos do século XX – não é nem mesmo o primeiro: poucos anos antes, o curta Guernica partiu do célebre quadro de Picasso para tratar das feridas da guerra civil espanhola, que marcou a Europa pela violência dos combates e pela vitória do fascismo franquista; anos depois, ele assinou (com assistência do mesmo Marker) o impressionante Noite e Neblina, que apresentou os aspectos de planejamento e construção dos campos de extermínio nazistas e mostrou imagens documentadas no período de aprisionamento dos judeus pelo regime hitlerista; anos mais tarde, depois de já ter refletido sobre um dos dois grandes eventos trágicos que marcaram a metade do século XX – os campos de concentração nazistas -, Resnais realizou Hiroshima Mon Amour, um filme que refletiu sobre o outro evento trágico marcante daquele momento histórico, a explosão da bomba atômica. Como se sabe, além de, em sua primeira parte, exibir e relatar as conseqüências da bomba, o filme cria uma relação de amor entre uma francesa acusada de colaboracionismo com os nazistas e um japonês sobrevivente da guerra.

A idéia de que seria possível dividir os filmes da carreira de Resnais entre uma fase histórica e outra atemporal encontra o ponto de crise e virada no Ano Passado em Marienbad. Já é um filme ahistórico, até por ser um filme que confunde em forma de ficção as noções de tempo e memória. Mas, em meio a uma história de amor contada num interlúdio de tempo, Marienbad filia-se a um momento histórico do mesmo modo que Hiroshima, por conta de sua narrativa e do curto-circuito que ela provocava nas formas convencionais. Se, de certa forma, o interesse pelo ambiente das relações já guiava os dois filmes como guiaria os filmes seguintes de Resnais, Marienbad fez parte do seu tempo como os outros – cabe apontar a participação de Robbe-Grillet no projeto, em meio às suas defesas das inovações do Novo Romance e notar que o escritor (e mais tarde também cineasta) já havia trabalhado com narrativas enigmáticas em livros como La Jalousie.

Muito já se escreveu sobre a falência do projeto de modernidade europeu. No entanto, estes primeiros s filmes de Resnais podem oferecer uma síntese dos problemas que a corroeram: o racismo e a dominação étnica (As Estátuas também morrem), as conseqüências da guerra de bombardeios (Guernica) e, enfim, o uso do racionalismo científico para matar (Noite e Neblina) e destruir (Hiroshima mon amour); fez, em seguida, O Ano Passado em Marienbad: um filme sobre o que é narrar, o que é a memória, o que são personagens.

Daí em diante, a partir de Muriel, Resnais fez filmes que se apresentam como divertimentos (como A Vida é um romance, Quero voltar para casa e On connaît la chanson) e outros de tons mais graves. Seu cinema mergulhou nos mundos encenados destes personagens - e tanto Providence quanto o projeto Smoking/No Smoking tratam disso, de forma mais ou menos explícita (não por acaso, estão entre seus melhores momentos, junto com o belo Morrer de Amor).


texto publicado no catálogo da mostra Alain Resnais, ocorrida em agosto, setembro e outubro de 2008 nos CCBBs de Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília