07/02/2016

O pensamento e a prática

Agora estão se completando dez anos desde as primeiras exibições públicas do filme Serras da Desordem - e parece que muita coisa aconteceu desde então. Dez anos era o tempo estimado que, conforme retrata o filme, Carapiru esteve longe da sua comunidade, fugindo de uma matança promovida por invasores. Ao longo desta passagem de tempo desde sua estreia, o filme de Andrea Tonacci que registra Carapiru e sua trajetória acabou ganhando amplo reconhecimento entre críticos e cinéfilos, tornando-se uma das referências mais marcantes da produção cinematográfica brasileira deste período. Esta constatação tem um aspecto ao mesmo tempo irônico e complexo pelo necessário uso do termo “brasileiro”. Passados dez anos, ainda não sabemos se devemos considerar Carapiru um brasileiro, nem mesmo se quer ser considerado como tal. Talvez já tenhamos aprendido a desconfiar que ele correrá mais riscos e terá uma vida pior se assim o consideramos.

Ainda há várias coisas a vermos em Serras da desordem que podem nos ensinar um bocado sobre nós. Seja lá quem formos “nós”. Talvez já possamos observar que, se Carapiru conheceu um pouco do nosso povo e pôde retornar para junto aos seus ao fim daqueles dez anos, ele parece ter aprendido muito mais com esse percurso do que nós o fizemos ao longo desses dez anos que tivemos para compreender os sentidos da sua trajetória. A primeira constatação necessária a fazermos é que nós pouco aprendemos desde então. Talvez esses dez anos, no fim das contas, ainda não tenham sido o bastante para nos transformar significativamente - e assim continuamos como éramos antes, como já éramos desde que nos fizemos por aqui: violentos, pouco cuidadosos, mas cheios de tecnologia. Serras da Desordem é de um tempo anterior ao smartphone (em inglês: telefone inteligente), ao facebook (livro dos rostos) e ao instagram (que talvez possa ser traduzido para “instantegrama”). Nós, o povo da tecnologia, hoje temos mais equipamentos e condições para registrar imagens e conversar à distância, que é basicamente o que faz um filme. Hoje, enquanto o povo de Carapiru segue tendo que disputar suas terras e lutar para não perder a terra e as vidas para as armas dos brasileiros, nós brasileiros nos tornamos mais um povo com aparelhos celulares capazes de fazer um filme. Em muitos festivais de cinema há filmes com imagens registradas com estes aparelhos – talvez já nos seja mais usual ver imagens assim produzidas do que as feitas com película, como o foram boa parte daquelas usadas em Serras da desordem. O filme se constrói em seu próprio corpo visual como uma transição entre o tempo/espaço da película e o tempo/espaço da imagem digital – fazendo-se com as duas tecnologias, pode ter um pouco de cada percepção visual conforme isso lhe der força, do mesmo modo que pode recolher imagens históricas para nos indicar a dimensão dos seus propósitos - que ainda não aprendemos. Não aprendemos porque ainda somos o povo da Coroa, que leva a sabedoria, a paz e a democracia, nem que seja a bala. Somos o povo do emprego, da carteira de trabalho e do título de eleitor. Ao conhecer nosso povo, Carapiru teve que aprender a usar o vaso sanitário, como o filme nos mostra através do relato de Sidney Possuelo, ex-diretor da FUNAI. Nós, o povo do vaso sanitário, achamos que sabemos esconder as sujeiras que fazemos, enviando tudo para o mar através de emissários submarinos ou das águas de rios que vamos matando. Ainda não aprendemos.

Dez anos depois, o panorama da produção de filmes no Brasil mudou bastante. Aumentaram consideravelmente os filmes feitos com baixo orçamento, trazendo novos rostos aos cenários e permitindo inclusive que cineastas da geração de Tonacci ou mais velhos voltassem a produzir e a obter reconhecimento dos cinéfilos mais jovens (nas mais variadas condições, lançaram filmes nesse período Luiz Rosemberg, Maurice Capovilla, André Luiz de Oliveira, Saraceni, Ivan Cardoso, Alberto Salvá, entre vários outros, além daqueles que já vinham produzindo constantemente, como Bressane e Coutinho). Nós, brasileiros, talvez ainda possamos pretender ser reconhecidos como um povo de telas que mostram nossas imagens, mas continuamos tendo quase as telas ocupadas pelas mesmas imagens banais e monopolizadas. As telas luminosas mostram sugestões de produtos para consumo. Serras da desordem nos deixava evidente que qualquer construção visual e narrativa proposta numa tela exibe um mundo ao mesmo tempo que o invade. Consciente desse gesto, o filme nos mostrava como, sendo nós ainda o povo do padre Anchieta, podemos buscar uma nova relação com Carapiru – não apenas a de invasores etnocêntricos imbuídos de crenças e novas línguas, mas também a de observadores, aprendizes. Ele não precisa aprender a falar a nossa língua para dizer as coisas. Não aprendemos isso. Não compreendemos em que medida tanto a capacidade de Carapiru de produzir chamas quanto a capacidade de não se render ao nosso povo nos ensinam sobre nossos limites. Nós estamos presos à crença de que vamos dominar o mundo, vamos desenvolver tudo na marra e tudo vai dar certo; Serras da desordem encontrou e nos mostrou um homem livre. Ele não quis fazer parte do nosso povo - e ainda não aprendemos o muito que ainda podemos aprender com isso.

A mistura de etnias e culturas sempre foi um aspecto fundamental para a construção das imagens do nosso povo. Nossos primeiros propositores, aqueles que acreditavam poder encontrar conceitos definidores da nossa identidade, observaram as condições e consequências desse convívio social. A defesa da miscigenação, hoje tão condenada e desprezada, veio antes para se colocar contra a visão daqueles que apontavam nas origens índia e negra as causas da indolência e da criminalidade. Nós, o povo de Nina Rodrigues e de Paulo Prado, ainda estamos imbuídos da fé científico-iluminista que estava na base dos seus preconceitos: ainda vamos invadir cada palmo de floresta, queimar cada folha de árvore, domesticar cada espécie de animal. Nós vamos tornar o Rio Doce melhor do que a natureza o fez. Nós, invasores, somos o povo da lama tóxica. Estamos presos ao desenvolvimento forçado do destino que nossa fé nos impõe: mais vasos sanitários, mais aparelhos celulares. Nesses dez anos, mal conseguimos compreender que nós seguimos levando adiante o projeto de Cabral, dos bandeirantes, da Coroa Portuguesa. Somos o povo que interrompe a trajetória dos rios, que faz Belo Monte e projeta mais usinas no Rio Tapajós - que vão ser feitas na mesma marra etnocida que levou nosso povo a invadir as terras dos ancestrais de Carapiru. Pensamos que represas e barragens são tão eficazes como os vasos sanitários e não vão espalhar a imensa cagada que fazemos.

Carapiru não quer isso. Ele recusa. Ele vive de outra maneira. Carapiru não quer se miscigenar, ele quer viver como sabe e gosta de viver. A seu modo, Carapiru é um Buda, um João Gilberto, uma pessoa que conhece seu lugar no mundo e o vive plenamente, recusando os modelos doentes que se tornam convencionais para os outros. Talvez já não saibamos mais viver sem vasos sanitários, aparelhos celulares, telas com luzes, talvez nem precisemos nos livrar de tudo isso, mas essa lição ainda podemos aprender com ele.

Não quero ser inutilmente pessimista nesse texto, nem vejo sentido nisso. Se uso esse pequeno espaço para sugerir que temos ainda muito a aprender vendo Serras da desordem, me parece até compreensível que todos nós do povo de Serras da desordem precisemos de mais uns dez anos para que, com sorte, enfim a ficha caia; para que a gente entenda em que medida esse projeto de civilização na marra está nos levando para o brejo. Ainda há tempo para que isso aconteça. Hoje, ainda somos o povo que encarcera pessoas por cultivarem uma planta (ou por repassá-la a outros); ainda somos o povo que envia exércitos para “pacificar” áreas pobres matando seus jovens; ainda somos o povo que extrai pedras do solo e emporcalha os rios com lama tóxica; ainda somos o povo que acredita em democracia representativa e a praticamos com essa teatralidade cheia de canastrices. Acreditamos nas representações, porém não acreditamos mais em espíritos. Mas talvez não seja tarde demais.

É emocionante ver que um filme como Serras da desordem conseguiu, a seu modo, repercutir e mexer com as cucas de muita gente por aí. É muito bonito ver Andrea Tonacci e seu amigo-personagem-herói Carapiru serem homenageados na Mostra de Tiradentes, que não por acaso foi o primeiro lugar a exibir seu filme. Será uma linda celebração junto com companheiros de vida como Cristina Amaral e Luiz Rosemberg. Eu queria demais estar presente, esse encontro será lindo. Ao Tonacci e a todos, mando um abraço grande. Os pensamentos e as representações têm força real, capaz de intervir decisivamente nas vidas das pessoas - Tonacci tem consciência disso (tanto que seu filme seguinte foi nos mostrar religiosas benzedeiras). Todos devemos a ele a gratidão de fazer do seu filme um registro desses percursos todos – o de um país e um povo que querem produzir cada vez mais, o de um homem livre e em fuga nesse país, o dele mesmo ao encontrar esse índio. Ao se construir assim - num espaço de contato entre as comunidades e a pessoa; entre registros históricos, documentais e representativos; entre um modo de vida ligado à floresta e outro ligado à civilização da tecnologia – Serras da desordem criou um movimento sísmico-cultural que pouco a pouco vai se instaurando. Apesar dos desastres que temos provocado, ainda temos uma nova oportunidade de aprender com o filme essa lição de liberdade. Ainda que tarde.

(texto escrito para o catálogo da 19ª Mostra de Tiradentes, realizada em janeiro de 2016)