08/04/2009

Por dentro e por fora das pornochanchadas

Brasil, 2002.

Na maior rede aberta de televisão, um dos sucessos de ficção do momento, O Quinto dos Infernos, deve boa parte do seu sucesso na medição de audiência, sem dúvida, ao teor intencionalmente erótico de algumas cenas. Da mesma maneira, nos noticiários e peças de divulgação da principal atração "documental" , o chamado 'reality show' Big Brother Brasil, invariavelmente chama-se a atenção dos espectadores para a conduta sexual dos personagens participantes, o mesmo acontecendo no ‘reality show’ exibido pela concorrência, a Casa dos Artistas.

Bem, a intenção desse texto não é a de formular um juízo negativo sobre esse fascínio de muitas pessoas pelas estrepolias sexuais dos outros. Nem tampouco será analisar as atrações televisivas mais curiosas nos dias de hoje – para isso já temos aqui na Contracampo artigos específicos na nova seção de Televisão. O interesse desse artigo e de toda essa pauta é perceber pontos centrais da exuberante produção de filmes com tons eróticos, feitos num certo período do cinema brasileiro compreendido entre a década de setenta e o início da de oitenta. Especificando ainda mais, parece fundamental entender a relação estabelecida por este(s) gênero(s) de cinema e sua forma mais constante e representativa – a pornochanchada – e seu público. Mas não apenas aquilo que se convencionou chamar de "pornochanchada". Me parece evidente que precisamos olhar com novos olhos para o apelo que este cinema sedutor exerceu sobre a platéia, desde A Mulher de Todos, marco do cinema chamado Marginal – cujo sucesso nas bilheterias, que muito se deveu à generosa interpretação da estrela Helena Ignez, sugeriu um caminho a ser trilhado para vários produtores de cinema, sobretudo na capital paulista –, seguindo pelas comédias de costumes mais safadas, seguidoras de uma tradição próxima de um certo gênero italiano de cinema, até suas manifestações críticas e tardias, já em meados dos anos oitenta, incluindo nisso a conseqüente evolução de alguns realizadores e produtores para o cinema explicitamente pornográfico.

Não sei se é do conhecimento de todos os leitores, mas, há cerca de dois anos, o lançamento do filme Tolerância foi envolvido por uma falsa polêmica em torno de suas cenas com situações sexuais – coisa semelhante já tinha acontecido com Um Copo de Cólera, mas nesse caso sem dúvida com uma conotação bem menos negativa. No caso de Tolerância, bastante tinta foi desperdiçada para criticar o fato do cartaz do filme (e equivalentes capas de vídeo e afins) exibir a atriz Maitê Proença, protagonista do filme, vestida com um sumário baby-doll. É o tipo da imagem que chama a atenção de um grande números de possíveis espectadores, e decerto isso pareceu "apelativo" para os que esperam que o cinema nacional tenha bons modos.

Pois é. De alguma forma, ainda é preciso voltar a esse assunto. Em 2001 foram exibidos em telas brasileiras trinta e seis novos filmes nacionais e uma reprise. Não resisti a comparar as tabelas da virada dos anos setenta para os anos oitenta com a deste ano. Escolhendo 1978 à guisa de comparação, vemos que neste ano tivemos 81 filmes lançados no ano – sendo que vinte e dois deles tinham contratos de co-produção ou distribuição com a Embrafilme. Num país com quase três mil salas de cinema, o número de espectadores dos filmes nacionais foi de quase 62 milhões de pagantes – representando 29% da venda de ingressos no ano.

Peço licença aos leitores para seguir no emaranhado de números. (Antes de se eleger, George W. Bush fez do seu lema de campanha a frase: - Chega de números complicados!). Em 2001, 36 filmes foram lançados no ano, em sua maioria dependentes de grana vinda de renúncia fiscal, e tivemos pouco mais de 7 milhões de espectadores pagantes – representando 8,2% da venda de ingressos neste ano que acabou. Não custa lembrar, claro, que em 1999 foram lançados 26 filmes e em 2000 foram lançados 28 filmes.

Observando as estréias de 2001, acho curioso notar que quase nenhum dos filmes recentes arriscou adicionar teores eróticos à trama apresentada - claro, é preciso mostrar a uma certa platéia que o tempo da nudez apelativa passou. Há exceções, decerto – Minha Vida em Suas Mãos ou Bufo & Spallanzani, talvez. Mas os dois filmes com pendores eróticos mais claros a serem exibidos no ano passado, ao que me parece, foram As Feras e Dona Flor e Seus Dois Maridos (relançamento). Curioso, não? Dois filmes que, tendo sido exibidos, no entanto parecem não pertencer ao ano que passou. As Feras, o estranho e irregular filme de Khouri, já foi finalizado há anos – fora o fato de que conta em sua trama com imagens feitas no início dos anos oitenta. E Dona Flor é Dona Flor, o filme com o maior registro de venda de ingressos na história do país - e, no entanto, naufragou em seu relançamento. Relançamento este que, diga-se, acrescentou à trama original elementos que tornam ainda mais clara a filiação (ainda que envergonhada) do filme à tão temida pornochanchada.

Isso parece indicar que não há mais espaço garantido para o cinema erótico dentro deste formato de exibição de filmes que temos hoje nas salas de cinema, dentro de seus shopping centers bem-vestidos. O espectador do cinema erótico parou de ver seus filmes nas salas dos centros, refugiou-se em casa com seu vídeo (agora DVD). E com seu Quinto dos Infernos.

Certo. Mas nada justifica que se aceite esta grotesca simplificação de que os filmes eróticos levaram o cinema nacional à falência, nem tampouco este mito pedante e broxante de que não há nada a se descobrir de criativo nos filmes dessa época. Não justifica que aceitemos o mito de que filmes que claramente dialogam com o formato da pornochanchada e procuram seu público sejam vistos à parte, como se fossem um corpo estranho a lidar sofisticadamente com a podridão. Necas, nada feito. Quando Joaquim Pedro fez Guerra Conjugal ou o curta Vereda Tropical, quando Person fez Cassy Jones - O Magnífico Sedutor, quando Jabor fez Eu Te Amo – em todos estes momentos os diretores claramente flertavam com um público já predisposto a entrar nas salas para assistir aos filmes eróticos brasileiros (e, ao mesmo tempo, punham em crise os pressupostos do gênero, como mais tarde fez Reichenbach).

No entanto, cria-se essa bizarra diferenciação: Eu te Amo não é pornochanchada, é drama erótico – então o filme do Sílvio de Abreu, Mulher Objeto, então também passa a ser, não é? Dona Flor e Seus Dois Maridos não é pornochanchada, de fato é uma comédia erótica, mas tem grife, 'é bem-feito', Xica da Silva é filme histórico, não tem nenhuma relação com a pornochanchada... Bem, David Cardoso também produziu seus filmes históricos e suas adaptações ousadas de escritores brasileiros.

Me parece que mais uma vez surgiu o preconceito contra o cinema que agradava ao populacho, e esse rótulo 'pornochanchada' não me parece ser mais firme, mais consistente, que o rótulo que o inspirou, 'chanchada'. Vale como definição grosseira de um certo formato histórico, entendendo-se por grosseira o fato de que esta definição (comédias eróticas, ocasionalmente dramas, de baixo orçamento feitos num certo período, certo?) será por demais imprecisa e limitada. Chamar um filme de 'pornochanchada' foi inicialmente, mais uma vez, uma maneira de desmerecer a priori um certo tipo de manifestação cultural que, provocando o interesse da plebe, não foi digerido de imediato por uma certa classe "bem-pensante".

Como já disse um colega meu aqui da revista, quando se assiste a um filme, há quem ache obscena um cena de sexo que lhe pareça "gratuita", há quem ache obscena uma cena de assassinato que lhe pareça "gratuita" – a diferença estará no que cada um considera obsceno.

Não que aqueles filmes que se pode chamar de ‘pornochanchadas’, com mais ou menos precisão e purismo de ocasião, sejam todos obras-primas incontestes ou que aquela produção de cinema seja um modelo a ser seguido. Não, decerto teremos muitos pontos problemáticos a notar em cada enfoque, em muitos filmes. Mas não importa aqui descobrir exatamente a quantidade de obras-primas e de filmes péssimos. Cabe, sobretudo, notar a chance de dialogar e produzir idéias que um certo formato histórico teve, a partir da descoberta de um viés de contato com seu público – o viés erótico, sem pudores. Tendo, eventualmente, seu tom machista ou reacionário, mesmo assim teve esse formato o mérito de exibir para nós um imaginário que despertou o interesse em seu público – o que significa que ao mesmo tempo retratou-o e ajudou a moldá-lo. Que este imaginário tenha se voltado ainda mais reacionariamente contra essa produção, essa é a ironia histórica suprema – não estaria de acordo com a realidade a idéia de que o "feio" cinema brasileiro só mostra palavrão e sacanagem só existe nas classes abastadas, creio eu. Compreender o percurso dessa mudança é ver como um mito se estabelece como um preconceito cultural – mas, mais do que compreender, é preciso tentar desmistificar.

Já se falou bastante da função catártica da arte, da necessidade que todos temos em canalizar nossos sentimentos e desejos escondidos para personagens, estórias, imagens e sons. Fugindo um pouco de uma avaliação moralizante rastaquera, que poderia se indignar diante do oferecimento de mero circo à plebe, podemos tentar imaginar a riqueza do diálogo que se pode construir a partir daí – assim, ao mesmo tempo que sacia a sede da sua platéia por espetáculos violentos, o narrador pode também despertar nela curiosidades e questionamentos até então inesperados ou ocultos. Isso acontece com filmes violentos diversos – e também acontece com o melhor do cinema erótico. Exemplos estrangeiros não faltam – para ficar em nomes conhecidos, temos os filmes de Borowczyk, Oshima, D'Amato, Tinto Brass – mas eles ficarão para outras ocasiões. Quanto aos exemplos brasileiros, nunca é demais descobri-los ou reentendê-los – e a Contracampo trata de destrinchar alguns desse período específico nessa edição.

Texto publicado em março de 2002