13/01/2012

Os corpos e espíritos da época

Como já foi apontado em muitas análises sobre a pós modernidade, o ambiente cultural da nossa época tem como característica uma desconfiança com relação aos conceitos de originalidade e inovação. As transformações sociais e culturais não deixam de acontecer, nem modos novos de lidar com circunstâncias novas deixam de surgir e se instituir devido a essa descrença nas mudanças, mas estamos próximos demais da memória fantasma de uma época em que eram notáveis os movimentos de renovação - sobretudo como foram as décadas de 1920 e 1960, mas como começou a acontecer em meados do século XIX e teve diversas manifestações até algum momento dos anos 70. Daí em diante, as discussões sobre o que é este momento posterior à modernidade se difundiram por conta da mudança de ambiente cultural, devido aos sinais de esgotamento radical dos movimentos vanguardistas sinais; neste novo momento, as idéias, as discussões, as crenças e as obras - enfim, o espírito do tempo -, tudo isso é marcado pela presença de uma forte consciência histórica, tão presente que impede a possibilidade de ruptura. E os gestos de rompimento estético ainda precisam sobreviver à epidemia de historicismo, uma vez que correm o risco de serem vistos como “repetições” do que foi feito ou do que se faz em outros lugares, cabendo aos críticos buscar rótulos compatíveis em algum livro velho. Para mencionar um exemplo óbvio, qualquer forma narrativa que subverta a ordem lógica da natureza recebe a alcunha de “surrealista”, mesmo que não tenha nada a ver com os princípios da escrita automática de André Breton e seus comparsas.

O movimento de “liderança” que foi exercido pelas ditas vanguardas (já clássicas) do século XX foi a de romper com modelos estabelecidos. Para compreender por que isso não se mostra tão frequente no nosso tempo, pode ser de boa ajuda lembrar qual era o contexto histórico que as provocou. Os artistas da chamada vanguarda oscilaram entre o fascínio e o horror à modernidade, como já apontou Octavio Paz. Essas vanguardas ocorreram em seguida ao século em que se estabeleceram os modelos de uma arte burguesa - que em muitos casos se conciliava com seus precursores do período aristocrático (como nos casos de neoclassicismo), e em outros casos se opunha e radicalizava em vários níveis contra os modelos clássicos, até chegar às rupturas vanguardistas. Em um trecho da sua Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe diz que “a verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força incomum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Podemos desconfiar dos excessos do tom racionalista que caracteriza o texto de Poe, mas é certo que o gesto de ruptura precisa haja um ou mais modelos que possam ser confrontados.


Naturalmente, isso não aconteceu de forma idêntica em cada uma das artes. No teatro, os registros de ruptura com os modelos tradicionais acontecem somente no final do século XIX. O mesmo aconteceu com a música, em que as experimentações românticas eram cuidadosamente calculadas dentro do regime harmônico herdado do classicismo, conforme se percebe em casos modelares como os de compositores alemães e italianos. Já a pintura se manteve pretensamente realista até sofrer a concorrência dos registros fotográficos: o início do impressionismo acontece na década de 1870, quando tem início a era das vanguardas. É a literatura que se difere um pouco entre as artes: quando estavam se definindo as formas do romance burguês, ainda sobrevinham ruídos da crítica irônica às narrativas do período aristocrático feita pelo Marquês de Sade. Não é por acaso que Sade foi considerado por estudiosos como Michel Foucault como o primeiro escritor moderno, aparecendo antes mesmo de existir um modelo burguês a ser rompido. Na verdade, a paródia, crítica irônica aos modelos, podia ser percebida já em obras célebres do período barroco, como o Dom Quixote de Cervantes... Seja como for, a seu modo a literatura precisou ser moderna “antes da palavra”: para escrever, foi preciso criticar, romper e recriar os modelos, sem o empurrão de qualquer aparato de registro tecnológico (tal como aconteceu com a pintura e com a música). Isso no caso da escrita em prosa, pois a poesia foi talvez mais radical: os poetas da sociedade burguesa desde o princípio são poetas da ruptura, parente da revolução.

Se a literatura da era burguesa teve desde o princípio essa chama crítica e experimental, muito se deve às intuições dos precursores, mas algo também se deve a uma natureza específica do texto escrito: os letrados eram, em sua maior parte, pessoas mais abonadas. Sempre soará grosseiro afirmar que a produção artística mais experimental é destinada apenas a pessoas mais ricas e/ou eruditas - qualquer um pode ter sua sensibilidade provocada por obras inovadoras. No entanto, o ponto incômodo que não se pode negar é outro: não é qualquer um que pode se dedicar à vanguarda. A experimentação moderna não depende apenas da existência de modelos a serem criticados e reinventados - depende também de sustento financeiro dentro deste sistema de crítica e reinvenção. Um criador de talento pode ser levado pelas circunstâncias a querer agradar o público de todas as maneiras pela justa motivação de manter o seu ganha-pão. O recurso aos modelos já estabelecidos é comum nessas circunstâncias.

O cinema surgiu quando todas as outras artes viviam o calor dos movimentos de ruptura com seus modelos e convenções. As heranças que o cinema guardou de outras artes, como a literatura e a pintura, foram fontes fundamentais para a atitude experimental que existiu na sua base. Se parece hoje natural que se tenha estabelecido uma tradição dominante de linguagem narrativa (cujas convenções podem ser constantemente reformuladas), é preciso apontar que esses impulsos de crítica e experimentação tomaram parte de todos os períodos da produção cinematográfica, desde antes dos filmes de Griffith (vale mencionar o livro de Flávia Cesarino da Costa, O primeiro cinema - espetáculo, narração, domesticação, entre outros sobre o assunto). Já naquele princípio de século o ambiente de experimentação das outras artes era favorável a isso, e desde então o cinema intrigou a muitos daqueles que eram propensos a experimentações estéticas. Como apontou uma vez Alain Robbe-Grillet, já nos anos 60, “A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário”. Em vários momentos, o cinema foi visto como uma espécie de porta da esperança por quem pretendia fazer uma arte nova - algo que nem sempre vicejava, por razões financeiras ou logísticas.

O período agônico da arte de vanguarda fez-se ver sobretudo no final dos anos 60 e na década seguinte; chegou-se enfim a uma espécie de exaustão das rupturas. De repente, um outro ambiente se instalou. Não um “novo” ambiente, decerto, porque isso seria em si um paradoxo: como haveria um ambiente “novo” a partir da descrença em torno da idéia de originalidade? Seja como for, instaurou-se a fé na desconfiança.

A crença na experimentação de linguagem depende mais de uma espécie de confiança em si do que do conhecimento amplo das circunstâncias e tendências. Podendo ou não se basear em ampla erudição, e podendo se sair bem ou mal nas suas próprias pretensões, o experimentalismo é uma atitude que não depende senão de si. As conceituações formuladas pelos inúmeros manifestos vanguardistas nem sempre antecederam as obras - ao contrário, reduzir estas a aquelas é empobrecedor em diversas situações. Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determinada predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado das artes - e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.

Neste sentido, pode parecer natural falar do fim das vanguardas, uma vez que a idéia de vanguarda embute o conceito de progresso, de avanço - e, portanto, de ruptura consciente de um determinado contexto. No entanto, o que motiva a experimentação não é algo desta natureza. O próprio conceito de vanguarda é “clássico-narrativo” e racionalista demais, se for levado ao pé da letra. Mas a descrença na necessidade (e mesmo na possibilidade) de experimentação é um sentimento tão comum, nos dias de hoje, que pode ser diagnosticada como uma doença de muitos espíritos da nossa época.

Isto se torna mais grave (e, por outro lado, mais frágil) no espaço brasileiro. Nossa concepção de modernidade, como muitos já disseram, foi importada das agendas européias. O grupo do Modernismo de 22 - marco de um movimento vanguardista no Brasil - por falta de um imaginário prévio de país, precisou inventá-lo ao invés de rompê-lo. Nosso contexto de país gigante com formação colonial e socialmente desigual provocou paradoxos persistentes e intrigantes, definidos ao redor da “dialética entre o não-ser e o ser outro”, na expressão clássica de Paulo Emilio. Numa sociedade até então (e, em vários aspectos, até hoje) disposta a se enxergar a partir de modelos estrangeiros a serem imitados, Paulo Emilio apontou o dilema que moveu os dois pólos clássicos do dito modernismo: a busca mítica e antropológica por raízes a serem inventadas, em que a figura histórica de liderança foi Mário de Andrade, e a antropofagia oswaldiana, que se fortalecia devorando do outro seus modos (“só me interessa o que não é meu”, conforme o clássico Manifesto Antropofágico).

O paradoxo teve sua oportunidade de concretização em um determinado momento do que se poderia chamar contexto cultural brasileiro: se Oswald falava do “biscoito fino” que a massa experimentaria, a música fez acontecer esse fenômeno. Com a rádio e a modernização dos meios de difusão de música, consolidou-se uma era de ouro, uma forma modelar de “música brasileira”. A isso, sucedeu-se o biscoito fino que João Gilberto e seus parceiros de Bossa Nova prepararam: quebraram modelos e os reinventaram, fazendo uma arte moderna que, paradoxalmente, se caracterizava pelo rigor e pela contenção em pleno “país do carnaval”. Conforme já afirmaram tanto Caetano Veloso como Tom Zé, o sucesso de João Gilberto fez crer numa certa “vocação para a modernidade” do nosso país do futuro. Moderna, popular e massificada, a Bossa Nova sugeriu a uma nova geração que o caminho da negociação com a indústria poderia ser tão radical e inovador quanto o enfrentamento podia ser. Assim o tropicalismo fez um novo movimento na relação antropofágica: também “as massas” são um outro que provoca interesse. Nesta perspectiva, a inovação e a invenção são naturais em um espaço de circulação de obras e idéias que continua em processo de se consolidar em todo o país.

Isso não aconteceu com a produção de cinema. A modernidade era verde, a nova vanguarda amarela. As referências vanguardistas, sobretudo os cânones dos cinemanovistas e dos marginais, não têm a força fantasmática da Bossa Nova e da MPB que se seguiu. Talvez por isso o cenário musical, tão vigoroso, pareça ter dificuldades ainda maiores para indicar movimentos de renovação do que a produção de cinema. Esta, subvencionada pelo mecenato, ainda tem um quê de pré moderna, já que seus modelos mal se constituem - com a possível exceção de comédias de costumes, do ironicamente chamado favela movie e, claro, da chanchada. Chanchada cujos sinais mostram alguma permanência, seja nas sessões de humor na televisão, seja na “incapacidade de copiar” modelos externos que alguns filmes seguem a mostrar. O chanchadesco, por natureza, é um humor que produz constrangimento, e não é por acaso que, em certas ocasiões, essa herança foi e é reaproveitada e reinventada por alguns dos realizadores considerados mais experimentais, do “cinema de invenção”, conforme a expressão do Jairo Ferreira.

A relativa ausência de modelos estabelecidos e consistentes acaba provocando esse curioso paradoxo: o espaço para invenções e reinvenções que recriem e consolidem novos modelos parece existir (como sempre) e, ao mesmo tempo, ser inatingível (talvez por não ter modelo forte a confrontar). A consciência histórica não tem efeito apenas nos estilos das obras, mas também na recepção a elas. Mas, como circunstâncias sempre guardam diferenças entre si, os modos de inventar se apresentam: para isso, como já disse, é preciso uma certa confiança na capacidade de inventar algo que não foi feito até então. Trata-se de uma certa disposição do espírito, até natural, uma vez que a existência se marca pela diferença e a mera repetição parece se tornar um eco do que já foi feito. Essa disposição atualmente é perceptível em alguns filmes de realizadores de várias idades. Mesmo que eventualmente se mostre travada por alguns cacoetes expressivos, ela sugere a chance de que o ambiente esteja passando por mudanças e as possibilidades de inovação estética possam provocar menos ceticismo e mais interesse. Mas esse movimento ainda precisa se mostrar marcante e incontornável para não se parecer com andorinhas de verão, como em outras ocasiões da produção de cinema no Brasil.
O movimento de “liderança” que foi exercido pelas ditas vanguardas (já clássicas) do século XX foi o de romper com modelos estabelecidos. Para compreender por que isso não se mostra tão frequente no nosso tempo, pode ser de boa ajuda lembrar qual era o contexto histórico que as provocou. Os artistas da chamada vanguarda oscilaram entre o fascínio e o horror à modernidade, como já apontou Octavio Paz. Essas vanguardas ocorreram em seguida ao século em que se estabeleceram os modelos de uma arte burguesa - que em muitos casos se conciliava com seus precursores do período aristocrático (como nos casos de neoclassicismo), e em outros casos se opunha e radicalizava em vários níveis contra os modelos clássicos, até chegar às rupturas vanguardistas. Em um trecho da sua Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe diz que “a verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força incomum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Podemos desconfiar dos excessos do tom racionalista que caracteriza o texto de Poe, mas é certo que o gesto de ruptura precisa haja um ou mais modelos que possam ser confrontados.

Naturalmente, isso não aconteceu de forma idêntica em cada uma das artes. No teatro, os registros de ruptura com os modelos tradicionais acontecem somente no final do século XIX. O mesmo aconteceu com a música, em que as experimentações românticas eram cuidadosamente calculadas dentro do regime harmônico herdado do classicismo, conforme se percebe em casos modelares como os de compositores alemães e italianos. Já a pintura se manteve pretensamente realista até sofrer a concorrência dos registros fotográficos: o início do impressionismo acontece na década de 1870, quando tem início a era das vanguardas. É a literatura que se difere um pouco entre as artes: quando estavam se definindo as formas do romance burguês, ainda sobrevinham ruídos da crítica irônica às narrativas do período aristocrático feita pelo Marquês de Sade. Não é por acaso que Sade foi considerado por estudiosos como Michel Foucault como o primeiro escritor moderno, aparecendo antes mesmo de existir um modelo burguês a ser rompido. Na verdade, a paródia, crítica irônica aos modelos, podia ser percebida já em obras célebres do período barroco, como o Dom Quixote de Cervantes... Seja como for, a seu modo a literatura precisou ser moderna “antes da palavra”: para escrever, foi preciso criticar, romper e recriar os modelos, sem o empurrão de qualquer aparato de registro tecnológico (tal como aconteceu com a pintura e com a música). Isso no caso da escrita em prosa, pois a poesia foi talvez mais radical: os poetas da sociedade burguesa desde o princípio são poetas da ruptura, parente da revolução.

Se a literatura da era burguesa teve desde o princípio essa chama crítica e experimental, muito se deve às intuições dos precursores, mas algo também se deve a uma natureza específica do texto escrito: os letrados eram, em sua maior parte, pessoas mais abonadas. Sempre soará grosseiro afirmar que a produção artística mais experimental é destinada apenas a pessoas mais ricas e/ou eruditas – qualquer um pode ter sua sensibilidade provocada por obras inovadoras. No entanto, o ponto incômodo que não se pode negar é outro: não é qualquer um que pode se dedicar à vanguarda. A experimentação moderna não depende apenas da existência de modelos a serem criticados e reinventados - depende também de sustento financeiro dentro deste sistema de crítica e reinvenção. Um criador de talento pode ser levado pelas circunstâncias a querer agradar o público de todas as maneiras pela justa motivação de manter o seu ganha-pão. O recurso aos modelos já estabelecidos é comum nessas circunstâncias.

O cinema surgiu quando todas as outras artes viviam o calor dos movimentos de ruptura com seus modelos e convenções. As heranças que o cinema guardou de outras artes, como a literatura e a pintura, foram fontes fundamentais para a atitude experimental que existiu na sua base. Se parece hoje natural que se tenha estabelecido uma tradição dominante de linguagem narrativa (cujas convenções podem ser constantemente reformuladas), é preciso apontar que esses impulsos de crítica e experimentação tomaram parte de todos os períodos da produção cinematográfica, desde antes dos filmes de Griffith (vale mencionar o livro de Flávia Cesarino da Costa, O primeiro cinema – espetáculo, narração, domesticação, entre outros sobre o assunto). Já naquele princípio de século o ambiente de experimentação das outras artes era favorável a isso, e desde então o cinema intrigou a muitos daqueles que eram propensos a experimentações estéticas. Como apontou uma vez Alain Robbe-Grillet, já nos anos 60, “A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário”. Em vários momentos, o cinema foi visto como uma espécie de porta da esperança por quem pretendia fazer uma arte nova – algo que nem sempre vicejava, por razões financeiras ou logísticas.

O período agônico da arte de vanguarda fez-se ver sobretudo no final dos anos 60 e na década seguinte; chegou-se enfim a uma espécie de exaustão das rupturas. De repente, um outro ambiente se instalou. Não um “novo” ambiente, decerto, porque isso seria em si um paradoxo: como haveria um ambiente “novo” a partir da descrença em torno da idéia de originalidade? Seja como for, instaurou-se a fé na desconfiança.

Entretanto, a crença na experimentação de linguagem depende mais de uma espécie de confiança em si do que do conhecimento amplo das circunstâncias e tendências. Podendo ou não se basear em ampla erudição, e podendo se sair bem ou mal nas suas próprias pretensões, o experimentalismo é uma atitude que não depende senão de si, a partir do momento em que define a que deve se opor, conforme nos lembra o texto de Poe. As conceituações formuladas pelos inúmeros manifestos vanguardistas nem sempre antecederam as obras – ao contrário, reduzir estas a aquelas é empobrecedor em diversas situações. Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determinada predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado das artes - e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.

Sendo assim, hoje pode parecer natural falar do fim das vanguardas, uma vez que a idéia de vanguarda embute o conceito de progresso, de avanço – e, portanto, de ruptura consciente de um determinado contexto. No entanto, o que motiva a experimentação não é algo desta natureza. O próprio conceito de vanguarda é “clássico-narrativo” e racionalista demais, se for levado ao pé da letra. Mas a descrença na necessidade (e mesmo na possibilidade) de experimentação é um sentimento tão comum nos dias de hoje que pode ser diagnosticada como uma doença de muitos espíritos da nossa época.

Isto se torna mais grave (e, por outro lado, mais frágil) no espaço brasileiro. Nossa concepção de modernidade, como muitos já disseram, foi importada das agendas européias. O grupo do Modernismo de 22 - marco de um movimento vanguardista no Brasil - por falta de um imaginário prévio de país, precisou inventá-lo ao invés de rompê-lo. Nosso contexto de país gigante com formação colonial e socialmente desigual provocou paradoxos persistentes e intrigantes, definidos ao redor da “dialética entre o não-ser e o ser outro”, na expressão clássica de Paulo Emilio. Numa sociedade até então (e, em vários aspectos, até hoje) disposta a se enxergar a partir de modelos estrangeiros a serem imitados, Paulo Emilio apontou o dilema que moveu os dois pólos clássicos do dito modernismo: a busca mítica e antropológica por raízes a serem inventadas, em que a figura histórica de liderança foi Mário de Andrade, e a antropofagia oswaldiana, que se fortalecia devorando do outro seus modos (“só me interessa o que não é meu”, conforme o clássico Manifesto Antropofágico).

O paradoxo teve sua oportunidade de concretização em um determinado momento do que se poderia chamar contexto cultural brasileiro: se Oswald falava do “biscoito fino” que a massa experimentaria, a música fez acontecer esse fenômeno. Com a rádio e a modernização dos meios de difusão de música, consolidou-se uma era de ouro, uma forma modelar de “música brasileira”. A isso, sucedeu-se o biscoito fino que João Gilberto e seus parceiros de Bossa Nova prepararam: quebraram modelos e os reinventaram, fazendo uma arte moderna que, paradoxalmente, se caracterizava pelo rigor e pela contenção em pleno “país do carnaval”. Conforme já afirmaram tanto Caetano Veloso como Tom Zé, o sucesso de João Gilberto fez crer numa certa “vocação para a modernidade” do nosso país do futuro. Moderna, popular e massificada, a Bossa Nova sugeriu a uma nova geração que o caminho da negociação com a indústria poderia ser tão radical e inovador quanto o enfrentamento podia ser. Assim o tropicalismo fez um novo movimento na relação antropofágica: também “as massas” são um outro que provoca interesse. Nesta perspectiva, a inovação e a invenção são naturais em um espaço de circulação de obras e idéias que continua em processo de se consolidar em todo o país.

Isso não aconteceu com a produção de cinema. Digamos que a modernidade era verde, e a nova vanguarda amarela. As referências vanguardistas, sobretudo os cânones dos cinemanovistas e dos marginais, não têm a força fantasmática da Bossa Nova e da MPB que se seguiu. Talvez por isso o cenário musical, tão vigoroso, pareça ter dificuldades ainda maiores para indicar movimentos de renovação do que a produção de cinema. Esta, subvencionada pelo mecenato, ainda tem um quê de pré moderna, já que seus modelos mal se constituem – com a possível exceção de comédias de costumes, do ironicamente chamado favela movie e, claro, da chanchada. Chanchada cujas características mostram permanência, seja nas sessões de humor na televisão, seja na “incapacidade de copiar” modelos externos que alguns filmes seguem a mostrar. O chanchadesco, por natureza, é um humor que produz constrangimento, e não é por acaso que, em certas ocasiões, essa herança foi e é reaproveitada e reinventada por alguns dos realizadores considerados mais experimentais, os do “cinema de invenção”, conforme a expressão do Jairo Ferreira.

A relativa ausência de modelos estabelecidos e consistentes acaba provocando esse curioso paradoxo: o espaço para invenções e reinvenções que recriem e consolidem novos modelos parece existir (como sempre) e, ao mesmo tempo, ser inatingível (talvez por não ter modelo forte a confrontar). A consciência histórica não tem efeito apenas nos estilos das obras, mas também na recepção a elas. Mas, como circunstâncias sempre guardam diferenças entre si, os modos de inventar se apresentam: para isso, como já disse, é preciso uma certa confiança na capacidade de inventar algo que não foi feito até então. Trata-se de uma certa disposição do espírito, até natural, uma vez que a existência se marca pela diferença e a mera repetição parece se tornar um eco do que já foi feito. Essa disposição atualmente é perceptível em alguns filmes de realizadores de várias idades. Mesmo que eventualmente se mostre travada por alguns cacoetes expressivos, ela sugere a chance de que o ambiente esteja passando por mudanças e as possibilidades de inovação estética possam provocar menos ceticismo e mais interesse. Mas esse movimento ainda precisa se mostrar marcante e incontornável para não se parecer com andorinhas de verão, como em outras ocasiões da produção de cinema no Brasil.



artigo publicado na Filme Cultura nº 54, publicada em maio de 2011