13/01/2012

E agora, Neville? - entrevista com Neville D'Almeida

Você já contou que o início da sua carreira não foi fácil. Você chegou a ir para os EUA antes de fazer seu primeiro filme, não?

Eu fui para os EUA no dia 13 de março de 1964, antes do golpe militar. Eu tinha 22 anos e tinha passado pelo CEC, o Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte, onde eu tinha sido membro fundador do Centro Mineiro de Cinema Experimental. Foi lá que eu conheci o cinema de vários países do mundo, havia críticos como Cyro Siqueira e Jacques do Prado Brandão, além de pessoas da minha geração, como Geraldo Veloso, Guará Rodrigues e Carlos Alberto Prates Correa. Então eu fui para os EUA e fiz um curso de direção de cinema no New York City College, mas era muito ruim: os professores davam aulas sobre questões técnicas, como decorar a nomenclatura de planos médios, gerais e em close-up. Aquilo não me satisfazia, eu perguntei a um professor sobre os grandes cineastas do mundo, como Eisenstein, Fellini e outros, e ele me disse que o único cinema realmente importante era o de Hollywood. Aí eu percebi que foi no CEC que eu aprendi tudo que eu sei sobre cinema. Enfim, no final desse curso em Nova York eu dirigi um curta, That night on the bowery, inspirado no Quincas Berro d'água, do Jorge Amado. A gente filmou e montou em 16mm, mas eu nem cheguei a ver a cópia final. Eu voltei para o Brasil e fiz um curta-metragem chamado O bem-aventurado, que inscrevi no festival JB/Mesbla. O presidente do júri era o Nelson Pereira dos Santos, eu ganhei um dos prêmios. Mas depois não aconteceu nada - e aí, passado um tempo, eu voltei para Nova York, onde trabalhei como garçom. Numa noite, uma pessoa me chamou para atender uma mesa de brasileiros. Eu fui e nela estava o Nelson. Ele foi muito gentil e me falou para nos encontrarmos no dia seguinte. Aí ele me disse: “Neville, eu vou fazer Fome de Amor, ia filmar na França, mas agora o personagem é um brasileiro que trabalha como garçom em Nova York. Você pode organizar a filmagem para mim aqui e ser meu assistente de direção.” Foi uma felicidade muito grande. No ano seguinte eu voltei ao Brasil e fiz meu primeiro longametragem, Jardim de Guerra. Que foi proibido e jamais foi exibido. Depois fiz um segundo filme, Piranhas do Asfalto, que também foi proibido. Entre 1966 e 1977 eu fiz cinco filmes e todos foram proibidos, nenhum deles passou. Isso só mudou quando eu fiz A dama do lotação. Mas nunca fiz um plano de cinema sequer para agradar a ditadura ou quem quer que seja. Me diziam: “Não faz esse nu com luz acesa, faz no escuro, assim não pode!” Mas eu dizia que a ditadura ia passar e eu ia ficar. Por causa disso, perdi muito dinheiro meu e de vários amigos.

E onde estão as cópias dos primeiros filmes?

Só sobraram Jardim de Guerra e Mangue Bangue, esse numa cópia encontrada recentemente em Nova York. Piranhas do asfalto tem uma cópia que foi para Paris e nunca mais voltou, e os negativos foram destruídos numa enchente que houve na Líder. No Brasil não existe política de preservação de verdade. O cineasta precisa morrer para que comecem a se preocupar em preservar os filmes.

Como você e Hélio Oiticica se aproximaram?

O Jardim de Guerra foi proibido, mas a gente fez uma sessão secreta no laboratório, aí o José Celso Martinez Correa e Wally Salomão foram e levaram o Hélio. No final ele veio me dizer que tinha adorado, que era a primeira vez que ele tinha visto projeção de slides num filme. Aí nós saímos todos juntos, ficamos a noite inteira conversando sobre arte, invenção, fazendo planos, sonhando... Naquela noite mesmo eu e o Hélio combinamos de fazer um trabalho juntos, uma união entre o cinema e as artes plásticas. Daí veio o Quasi-cinema e as Cosmococas. Isso é a arte contemporânea, quando ela sai da parede, da pintura e da escultura e se une a outras artes. Depois nós combinamos de fazer um filme juntos, chamado Mangue Bangue, mas o Hélio ganhou uma bolsa e foi para Nova York, aí eu dirigi o filme sozinho.


Seus filmes não amaciam - todos têm uma dose de agressividade que é fundamental para eles. O cenário de hoje dá espaço para isso?

A realidade é brutal, então meu cinema é brutal e delicado, mas não tão brutal quanto a realidade. Hoje eu tenho mais de cem filmes rodados em digital e ainda não montados, muitos documentários sobre vários assuntos, como a Daspu, a Parada Gay e outros. Hoje as câmeras digitais permitem que a gente possa fazer filmes como o lema do Glauber, “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Mas é preciso ter idéias na cabeça, porque às vezes eu vejo algumas porcarias em documentários aplaudidos, como zooms e movimentos de câmera mal-feitos, aí eu pergunto por que fazem assim e me dizem que não tem problema porque é feito em vídeo. Mas é tudo a mesma coisa, do vídeo ao cinemascope: é preciso ter linguagem cinematográfica. Às vezes parece que os jovens cineastas estão preocupados com a lei de incentivo, o patrocínio, fazer filmes parecidos com os de Fulano ou Beltrano, o sucesso aqui ou ali... Isso poderia ser saudável, mas aí o cara acaba pensando só em histórias que se encaixam nisso tudo. Se o sujeito está disposto a fazer alguma coisa no filme para agradar o patrocinador, ou se deixar de mostrar alguma coisa no filme porque o público vai reagir e a burguesia vai ficar preocupada, é melhor ir para a televisão fazer novelas. Tem muito jovem fazendo filmes velhos e muito velho fazendo filmes jovens. Mas isso não acontece só no cinema, acontece em todas as artes atualmente.



Filmes-faróis:

- Rio Babilônia

Eu nunca vi nada como Rio Babilônia. O Rio de Janeiro sempre era filmado de forma tímida, e esse filme tem de tudo.

- O Encouraçado Potemkim

Pela força dramática e pela montagem paralela do Eisenstein. É uma coisa espetacular, de tirar o fôlego, e ao mesmo tempo é um filme político.

- Cidadão Kane

É um filme que me emociona muito por causa do Rosebud: é sobre a infância perdida.

- 8 e ½

É a história de um diretor louco, em crise e sem saber o que fazer. Acho que essa é a história de todos os diretores de cinema conscientes.

- A doce vida

É a vida que todo mundo queria viver naquela época: a Itália dos artistas, mulheres lindas, intelectuais, festas... O filme é ingênuo, bobinho: não tem droga, não tem crime, não tem travesti, não tem nada. Mas é genial.

- A dama do lotação

É um filme revolucionário. Foi um dos primeiros filmes no mundo a mostrar o desejo da mulher, apresentando uma personagem que é ativa no sexo.

- Un chant d'amour

Acho que é o maior de todos os filmes. A cena de um preso enviando uma rosa para o outro é maravilhosa.

- Terra em transe

Essa mistura que o Glauber fez da alma carnavalesca com Villa-Lobos foi uma coisa muito forte para todos nós que queríamos fazer cinema no Brasil naquela época.

- Ivan, o terrível

Aqui é o outro pólo do Eisenstein. A cena de multidão com trinta mil figurantes ainda é uma das mais impressionantes da história.

- Limite

O Mário Peixoto foi um inventor, é um absurdo que não tenham dado condições para ele fazer outros filmes. Limite é poesia em forma de filme.

- O anjo exterminador

É incrível a capacidade do Buñuel em fazer o filme todo dentro de uma casa. O Hitchcock já tinha feito isso em Festim Diabólico, mas o Buñuel vai além, porque traz uma dimensão existencial a essa reclusão. Ele trata das frustrações das pessoas, é fantástico.


publicada na Filme Cultura nº 54, publicada em maio de 2011