13/01/2012

Carapiru e Orson Welles: A melhor defesa é o ataque

Definir personagens e o modo de apresentar suas trajetórias é o gesto que dá início a um filme narrativo. Embora reflitam o nosso meio social (cada um a seu modo), os filmes brasileiros dos últimos anos se dividem na relação com seus personagens. Muitos se colam às suas trajetórias e personalidades, como Madame Satã, que se cola numa figura socialmente marginalizada, Cinema, aspirina e urubus, que acompanha dois viajantes, Jean Charles, que focaliza um brasileiro emigrado, ou Se nada mais der certo, que acompanha alguns personagens que sobrevivem como podem. Mas nem sempre esta estratégia de se filiar aos protagonistas chega a bons resultados: veja-se Nossa vida não cabe num Opala, com sua degradação dos laços afetivos, ou Lula, o filho do Brasil e seu mito materno. Outros filmes preservam a distância crítica ao retratarem seus universos - isto pode ser visto naqueles pautados por figuras de mediadores (como Carandiru), assim como também se vê nos documentários de João Moreira Salles, como Nelson Freire e Santiago, e mesmo no olhar pessimista de Bens Confiscados e Falsa Loura. Há também filmes que reinventam os universos dos seus personagens, como acontece em Cleópatra, Um lobisomem na Amazônia e Onde andará Dulce Veiga. Por fim, alguns apresentam os seus personagens como parte de perspectivas discursivas, de teses a defender, como se vê nos filmes de José Padilha (Ônibus 174, Tropa de Elite) ou em Estamira, produzido por ele e dirigido pelo sócio Marcos Prado.

Filmes não se reduzem à escolha de seus personagens; mas, sendo o ponto de partida, essa escolha pode denotar com clareza as questões e as ambições de cada obra. Podemos entender um bocado de cada período de uma cinematografia ao relembrar seus heróis e coadjuvantes. Nos filmes brasileiros dos anos 50, houve viajantes, produtores de cinema, maridos infiéis, professores de cultura grega, maestros, compositores, ricos enfadados, pescadores - quase todos marcados por alguma espécie de fracasso. No início dos 60, é fácil lembrar de bandidos, cangaceiros, mulheres oprimidas. Nos filmes produzidos no início dos anos 70, encontramos machões, torturadores, loucos, pais de família degradados, mulheres insatisfeitas, governantes corruptos... A lista poderia prosseguir por outras décadas, mas esses exemplos mostram que os tipos de cinema dizem muito sobre suas épocas - ao mesmo tempo em que certos temas e sentimentos são recorrentes. Em certa medida, é constante um sentimento de falha, de falta, de algo que não se cumpre plenamente. Isto talvez possa se dever à própria natureza das narrativas, que se justificam por ter personagens com problemas a resolver. Por outro lado, é notável que, embora seja possível criar narrativas positivas, que narram trajetórias de vitoriosos, elas são raras no panorama de filmes brasileiros em qualquer época. Há e sempre houve exceções, sobretudo nas produções documentais (dos antigos filmes de cavação feitos por encomenda de políticos às eventuais produções sobre times ou jogadores de futebol). Mas é isso que são: exceções.

Este sentimento de falha está presente também entre quase todos os filmes que mencionei no primeiro parágrafo. De todos, o único que apresenta um personagem bem-sucedido é aquele que narra a vida do atual presidente da república - e podemos relembrar de alguns outros casos, como Dois filhos de Francisco, que exerceu influência evidente sobre o filme produzido por Luiz Carlos Barreto. Os filmes mencionados de Ivan Cardoso e de Guilherme de Almeida Prado também terminam de forma positiva: curiosamente, ambos o fazem quando dão por satisfeita a tarefa de recriar personagens e ambientes de outras épocas - quando reinventam estilos que parecem perdidos no tempo. Eles resolvem a falha através de uma reinvenção do passado.

Fiz essa rememoração para chegar a Carapiru e a Orson Welles, personagens que definem os percursos dos dois filmes mais significativos da produção brasileira desta década: são eles, respectivamente, Serras da desordem, dirigido por Andrea Tonacci, e O Signo do caos, dirigido por Rogério Sganzerla. Escrevi há alguns anos um texto, intitulado “Entre o Caos e a Desordem”, em que notava como estes dois personagens viajantes eram, de certo modo, complementares; finda a década, me parece que eles marcam este período como dois pólos extremos. As trajetórias que mais expuseram nossa condição cultural foram as de duas figuras de fora da nação brasileira. Uma destas figuras se torna significativa sem sequer ser vista (Welles não aparece em O Signo do caos) e a outra o faz falando apenas numa língua que não compreendemos (como faz Carapiru em Serras da desordem).

Orson Welles era cidadão do país mais poderoso do mundo e veio ao Brasil dentro do programa de alianças da Segunda Guerra Mundial. Carapiru nasceu no território brasileiro, mas não é cidadão neste território: faz parte de uma tribo de índios dizimada. Welles fala inglês, a língua internacional, e realiza filmes, uma linguagem universal - é capaz de se comunicar com todos, mas suas relações caminham para o rompimento. Carapiru fala um dialeto que parece indecifrável - não consegue se comunicar plenamente, mas consegue estabelecer relações duradouras. Welles domina a câmera; Carapiru sabe produzir fogo. Welles, um enviado do império, poderia promover a ruptura da cultura brasileira com o seu provincianismo, ligando-a à modernidade mais arrojada. Carapiru, que tem seu espaço vital invadido por homens armados, evidencia a violência destruidora de uma sociedade que se pauta por uma pretensa modernização. O fracasso de Welles no Brasil, conforme nos sugere O Signo do Caos, é um indício de que a cultura brasileira queimou seu filme e perdeu o bonde da modernidade, o bonde da capacidade de invenção. Já a perseguição a Carapiru é uma prova de que o bonde do movimento civilizatório foi destruidor ao se confrontar com a vida de pessoas que estavam no seu caminho.

Embora nunca se revele, o criador de O signo do caos tem um discurso próprio e direto, a começar por definir a obra como um “anti-filme”. Não aparecendo, ele indica se identificar com Welles (que também foi considerado genial por seu primeiro filme e depois sempre foi cobrado por isso). O signo do caos recria o universo wellesiano para apresentar a tese de que a vanguarda moderna chegou a um beco sem saída e brecou num ponto em que não se escuta nada além de eco - e que o Brasil, “país do futuro”, permaneceu atolado do mesmo modo que a pretensa arte do futuro, o cinema. Mas o filme tem uma chave de esperança: embora os sonhos de uma arte ao mesmo tempo realista e inventiva (tal como Welles teria feito em It's all true) tenham sido queimados ou atirados ao mar, uma criança ainda pode enxergar e pode acreditar que as cores foram inventadas no seu tempo - que as coisas nunca serão vistas como eram no passado. Welles/Sganzerla recria o mundo em preto e branco para mostrar a falha e a destruição (do filme, da arte, da utopia etc); no entanto, ele crê que os mais novos podem sobreviver ao passado que se perdeu.

Ao se fazer ver, no final do filme, o diretor de Serras da Desordem constrói seu discurso de forma complexa, multifacetada, composta por fragmentos alheios. Mostrando-se junto a Carapiru, ele aponta que o filme é fruto do encontro entre o personagem com uma trajetória única, irreproduzível, e o diretor com sua visão das circunstâncias históricas. Dessa forma, o filme se cola a Carapiru tanto na revisita aos velhos amigos quanto na encenação de um percurso marcado por separações. A cada passo, ele amplia a perspectiva crítica: uma civilização invade, joga pessoas à margem, expande-se sem se preocupar com as consequências. E, ao registrar a decadência que provoca, não apenas ela é incapaz de reverter a decadência através do registro audiovisual como este próprio registro se torna uma nova invasão, um espetáculo da decadência.

Ainda que sejam praticamente opostos entre si, os filmes retratam seus personagens usando a mesma estratégia: indicando as falhas, metendo os dedos nas feridas. Orson Welles é incapaz de finalizar seu filme e revolucionar sua arte, enquanto Carapiru é incapaz de viver em paz com a família na sua região. Assim, tanto O signo do caos como Serras da desordem mostram que os conflitos que se apresentam aos seus personagens não dizem respeito somente a eles, mas a uma certa condição cultural que destrói as alteridades que se ponham fora do seu espectro. O primeiro filme é amargurado e trágico, enquanto o segundo é instigado e reflexivo, mas a soma dos dois retrata uma sociedade tosca a ponto de impedir Welles de criar e Carapiru de viver em paz. Ambos tornam claro quais personagens, cinemas e mundos querem defender e a quais se opõem; é deste gesto que tiram força, como filmes de invenção, ou seja, capazes de nos fazer reinventar nosso cinema, nosso lugar cultural, enfim, a nós mesmos espectadores.



artigo publicado na Filme Cultura nº 51, lançada em julho de 2010