13/01/2012

A bravura trágica




É tentador observar O bravo guerreiro como uma reflexão premonitória de Gustavo Dahl sobre sua vocação e seu destino. Como se sabe, poucos anos após ter dirigido o filme Dahl se afastou da produção de filmes e embarcou de cabeça no trabalho de organização e gestão das atividades cinematográficas. De certo modo, o filme sinaliza como a sua empreitada em favor da estruturação do meio audiovisual – da distribuição de filmes durante os anos da Embrafilme à criação de um órgão de regulação e fomento, a Ancine – foi movida por uma consciência ao mesmo tempo pessimista e teimosa. Por uma boa briga, indica O bravo guerreiro, vale a pena lutar até o fim, por piores que sejam as dificuldades e consequências.

O bravo guerreiro abre com uma epígrafe tirada de Assim falava Zaratustra, de Nietzsche: “Eu amo o que quer criar algo melhor que si mesmo e dessa arte sucumbe”. Essa citação dá o tom: a melancolia diante dos fracassos da realidade não serve de desculpa para a falta de atitude. O bravo guerreiro foi um dos filmes da chamada fase urbana do cinemanovismo, movido sobretudo pela questão apresentada nos anos anteriores por O desafio, de Paulo Cezar Saraceni, e Terra em transe, de Glauber Rocha: como deveria reagir o ativista pertencente à elite intelectual diante das mazelas da sociedade como a ditadura e a desigualdade social? No entanto, se os filmes de Saraceni e Glauber Rocha instauravam climas vibrantes, o filme dirigido por Gustavo Dahl tem outro tempo, adequado para a clareza da reflexão. Seja pela firmeza do olhar da câmera, seja pela contenção dos atores, há algo de marcial e solene no percurso do filme, como se estivéssemos presenciando uma via crucis definidora do nosso sistema de representação política e social. Não é por acaso que, de todos os filmes do período, é um dos que permanecem mais atuais: poderíamos trocar as siglas dos partidos inventados pelo filme (Partido Radical, Partido Nacional e Partido Reformista) por siglas atuais como, por exemplo, PSOL, PMDB e PSB. Se assim considerarmos, o filme parecerá tratar dos problemas que existem no meio político brasileiro de 2011.

Esse panorama pessimista e militante, ao mesmo tempo descrente e voluntarioso, é apresentado em cenas criadas com sobriedade, sem espaço para excessos – até chegar o discurso final, que mostra como o tom reflexivo deve conduzir e se deixar tomar pela exortação, pelo desejo de ação. Esse tom melancólico e crescente é obtido não apenas pelos enquadramentos clássicos e pela duração dos planos, mas sobretudo por aquilo que esta conjunção permite: a forte relação cênica entre os personagens, apresentada pelos atores com uma notável força contida.

No início da trama do filme, o deputado Miguel Horta, o protagonista representado por Paulo César Pereio, está disposto a sair de um partido de esquerda radical para ser aceito por outro, governista, de feição mais conservadora e ambígua. Sua percepção é que, enquanto ficar solitário no pequeno partido de oposição, nunca terá força para fazer serem aprovados os seus projetos que visam promover maior justiça social; sua aposta é que, participando de negociações dentro do núcleo de governo, terá mais chance de “criar algo melhor que si mesmo”, para usar os termos da epígrafe já citada. A trajetória que percorre ao longo do filme traz um gosto de derrota para o seu projeto – porém, se no final ele “dessa arte sucumbe”, não sucumbe derrotado, mas combatente que usa a voz como arma e está disposto até à morte por isso.

Através desse percurso, tendo o ambiente político brasileiro como cena, o filme consegue representar uma questão que surgiu no século XIX e se mantém presente: a falência da chamada "superação dialética" e a alternativa trágica. Num regime em que as tensões sociais são enfraquecidas, o conservadorismo dos poderes que prevalecem acaba tornando todo o ambiente doentio - e a renovação só pode vir do confronto entre forças que não se conciliam. Não é por acaso que a epígrafe do filme vem de Nietzsche, o primeiro formulador dessa crítica à dialética. No entanto, essa questão filosófica não é representada abstratamente, mas de forma concreta – como se diz no filme, a sociedade não é uma abstração, é um coletivo formado por pessoas que existem de fato. Horta é alguém que procura o seu espaço através da dialética da negociação política: “Conceder é melhor que perder”, é o que ele ouve de um aliado; “ninguém faz nada sem sujar as mãos”, diz ele em certo momento, mas “é duro ser realista”, como conclui mais tarde. O primeiro plano do filme já deixa claro o lugar que ele busca: ao ser apresentado por Augusto, velho cacique do partido governista, ele está na margem do quadro, mas com a perspectiva imediata de tomar o centro da cena. Augusto - personagem interpretado por Mario Lago com contenção e uma força impressionante - é uma espécie de versão sombria da maturidade de Horta: alguém que se resignou a negociar e brigar apenas para se manter junto ao poder, com suas benesses. É com ele que Horta, depois de descobrir que seus planos deram errado e seu projeto foi traído pelo seu novo partido, tem um diálogo que explicita a natureza dialética das negociações políticas: “Não se vai para frente só com concessões”, diz ele; “E no entanto é só assim que se vai para frente”, responde Augusto, afirmando que “sem o poder não se serve ao povo, sem o poder não se faz nada – e o poder tem o seu preço”.

Mas a essa altura Horta já percebe que as concessões nem sempre significam avanços. Ele conversa com o antagonista de Augusto, o ambicioso político de oposição Conrado (interpretado pelo recém-falecido Italo Rossi) – e é Conrado quem o faz ver que a pretensão de chegar ao poder para estabelecer novos caminhos tem um preço maior e mais difícil do que o das negociações comezinhas da política governista. Nas negociações políticas, os grupos minoritários que concentram os recursos financeiros têm mais poder de pressão do que os outros. O governismo sempre é conservador, é sua forma de sobrevivência. A dialética da movimentação política sofre com a disparidade de forças: a síntese não apresenta o equilíbrio, mas o predomínio de quem domina o poder. Sendo assim, há momentos em que não existe margem para negociações: é preciso fazer escolhas e buscar a raiz dos objetivos. Massacrado pela negociação conciliatória e conservadora de Augusto e desprezado pelo populismo messiânico e arrogante de Conrado, Horta abandona a esperança melancólica que o fazia agir como um “pragmático”. A partir daí, faz a sua escolha: volta ao sindicato e, através de um discurso em que reconhece a falência do seu projeto de negociação, insufla os trabalhadores a partirem para o confronto através de uma greve geral. Até pouco antes ele apostava que, em nome das transformações, todas as negociações podem ser justificadas; no entanto, Horta acaba por ser render às evidências de que, quando as forças em jogo são diametralmente opostas, não há espaço para concessões em busca das dialéticas, somente é possível o bom combate. “Só a luta salva. Só a coragem, e até mesmo a coragem de morrer, faz de um homem homem”, diz ele, usando as palavras como armas à beira do suicídio. Filme de reflexão focado na ação, O bravo guerreiro aponta que certos combates são permanentes, não conseguem alcançar nenhuma síntese historicamente justa. Consciente disso, recusa-se a sucumbir.


artigo publicado na Filme Cultura nº 55, lançada em dezembro de 2011