13/01/2012

A cinefilia canibal dos filmes de Carlos Reichenbach

É comum que se aponte a influência forte da cinefilia sobre os filmes que Carlos Reichenbach dirigiu. O próprio Carlão costuma fazer isso desde o início de cada processo de realização, reconhecendo e mencionando a origem de cada uma das muitas referências usadas para criar os elementos cênicos e narrativos. Por exemplo, num longo depoimento sobre sua carreira escrito para a edição nº 28 da Filme Cultura, o cineasta fala sobre os filmes que o fizeram decidir trabalhar com cinema (no texto, ele menciona A estrada, de Oswaldo Sampaio, O tigre da Índia, de Fritz Lang, Outubro, de Sergei Eisenstein, Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, e Barravento, de Glauber Rocha), para em seguida contar que seu primeiro filme, As libertinas (dirigido em parceria com João Callegaro), na verdade foi feito basicamente sob a inspiração de um filme chamado Sexy Gang, “um clássico do cinema cochon” em que se sucediam cenas de strip-tease. Neste mesmo depoimento, ele aponta a influência decisiva de O bandido da luz vermelha sobre seu filme seguinte, Audácia; conta que Corrida em busca do amor foi inspirado nas comédias de Frank Tashlin e nos filmes para jovens protagonizados por estrelas como Sandra Dee e Annette Funicello; e enumera nada menos que cinco filmes como fontes de inspiração para Lilian M, relatório confidencial. São eles: Segredos de uma esposa, de Shohei Imamura, Alucinação sensual, de Kon Ichikawa, Insinuante e pecadora, de Yasuzo Masumura, Naked Kiss, de Samuel Fuller, e Viver a Vida, de Jean-Luc Godard. Apenas observando a diversidade dos filmes citados neste parágrafo, torna-se evidente a voracidade cinéfila de Reichenbach. Esse referido texto foi escrito por ele em 1978, e desde então o diretor só aumentou a sua aposta nessa relação canibal com todo tipo de cinema.

Essa relação não se manifesta apenas no espírito que os filmes vistos somam à sua produção. Para além dos filmes que dirigiu, Carlão é um cinéfilo em atividade social constante, seja como programador de sessões - o CineSesc, em São Paulo, realizada mensalmente a sua “Sessão do Comodoro”, composta por filmes pouco conhecidos que se caracterizem por uma certa inquietação, alguma radicalidade; seja como participante de fóruns de discussão; seja como escritor de um blog em atividade há quase uma década, com algumas mudanças de nome e endereço (a versão atual se chama Olhos Livres e pode ser lida em http://olhoslivres2.zip.net/ ), onde fala sobre filmes e compartilha obras raras.

No entanto, é preciso apontar que, para além da imensa rede de referências comumente apontada nos seus filmes, a consciência crítica que a cinefilia traz aos seus filmes é uma espécie de corda bamba em que eles se atiram em busca do equilíbrio. De certa maneira, é isso que os torna originais. Esse paradoxo não é incomum no cinema ou em outras artes - ao contrário, é frequente em boa parte daquilo que se costuma chamar genericamente de pós-modernismo. De todo jeito, aproximar-se dos filmes do Carlão através do mero reconhecimento das citações pode não revelar o que eles trazem de mais forte da cinefilia, que é essa relação crítica com a imagem construída. Um caso exemplar é o de Corrida em busca do amor: reconhecer uma origem genealógica do estilo do filme não vai ser a perspectiva mais rica, porque deixa de lado o aspecto mais vital dele, o de uma produção fundada no convívio de algumas relações pessoais e criativas e produzida num esquema financeiro de custo zero. Se não abrem mão da narrativa, seus filmes tornam infrutífera qualquer discussão sobre “realismo”; antes disso, a preocupação fundamental é com a ambientação e as relações entre personagens: o astral, a atmosfera, em suma, o lugar dos sentimentos. Nesses filmes, essa elaboração de atmosferas toma o lugar da encenação naturalista, afastando-os de uma relação estrita e fiel com o cinema de gênero que frequentemente lhe serve como base e ponto de partida. Sob esse aspecto, o caso mais claro é o de Lilian M - relatório confidencial, com sua transição paródica entre gêneros diversos: a percepção e uso de referências é apenas um ponto de partida, uma espécie de mcguffin do filme (mcguffin era o termo usado por Hitchcock para os elementos narrativos que pareciam ser centrais ao espectador, mas serviam apenas para dar andamento aos filmes). Atravessando o humor referencial, o percurso da protagonista revela uma narrativa agressiva a ponto de ser desconcertante. É através da elaboração de ambientes essencialmente cinematográficos que, pouco a pouco, se revela o desenho que o filme faz de um determinado universo real.

Nesse sentido, talvez os dois filmes fundamentais para definir o lugar da cinefilia, da revisão e reconstrução do cinema no trabalho de Reichenbach são Alma Corsária, de 1994, e Falsa Loura, de 2008. Anos atrás, João Carlos Rodrigues apontou que os filmes de Reichenbach podem ser divididos em “masculinos” e “femininos”. Essa separação nos ajuda a ver que os dois filmes que mencionei representam, cada um, um destes pólos. Alma corsária é um filme jovial, descaralhado mesmo - como só outro filme “masculino” do Carlão conseguiu ser: Império do desejo. Como que ditando um ritmo próprio ao filme, algumas cenas e imagens insólitas se misturam à história dos dois amigos que lançam, juntos, um livro de poesia. Esse aspecto referencial e gozador fica explícito, por exemplo, quando a narrativa faz uma pausa para que seja entregue um Oscar a um ator representando o cineasta Samuel Fuller; vários trechos do filme também podem ser lembrados: outro exemplo claro é quando um personagem tem pesadelos com imagens de grandes pensadores. Antigamente se costumava dizer que nas chanchadas brasileiras havia os momentos “pára-pra-cantar”, ou seja, momentos em que a trama de humor parava para que se cantassem algumas canções. Com sua encenação expressiva e não realista, a seu modo Reichenbach é um cineasta de filmes musicais - e em Alma Corsária, como em alguns outros, isso se encaminha para uma relação bastante forte com a atitude recriativa das chanchadas. Esse mcguffin chanchadesco permite ao filme que construa vários panoramas afetivos entre seus personagens, existindo em função de dois sentimentos fundamentais: a amizade e o deslocamento no mundo.

Por sua vez, Falsa Loura, filme “feminino”, desde o princípio nos mostra a construção de imagem e movimento, com a trama em torno do embelezamento da personagem Briducha. Ao contrário do que acontecia com a Maria de Lilian M, que se via perdida no mundo, encarava a prostituição como uma parte do seu percurso e assumia o papel sem pudor, Silmara tem seu espaço social consolidado e a prostituição é um fantasma sombrio. Que, no entanto, vai se realizar justamente por ela acreditar num mundo de sonho e se entregar a ele, abandonando momentaneamente a consciência de seu lugar histórico. Nesse sentido, Falsa Loura se assume como a versão anti-romântica da Gata borralheira e de todas as suas versões em forma de divertimento feitas pelo cinema. A construção de um mundo artificial e encantado, que o filme apresenta a partir de certo ponto, termina por desmoronar e revelar à Cinderela decepcionada a que classe e a que lugar ela pertence.

Assim, neste filme se torna definitivamente claro, como já acontecia em Alma Corsária, que a atmosfera fortemente elaborada, construída, cinematográfica, torna-se um modo ao mesmo tempo anti-romântico e anti-naturalista de encontrar a verdade de certos sentimentos. São filmes que se fazem a partir da atitude canibal de um cinema que se alimenta criticamente dos imaginários alheios que lhe pertencem para ser realmente aquilo que é.


artigo publicado na Filme Cultura nº 53, lançada em janeiro de 2011