13/01/2012

O desconhecido cinema de nossos vizinhos argentinos

O bom momento que a cinematografia argentina tem vivido, com sucessos de bilheteria e receptividade em festivais e premiações internacionais, já provocou centenas de análises melancólicas traçando comparações com os filmes brasileiros. O tema se tornou onipresente e, considerando-se a doce desinformação com que se observa a grama do vizinho, há uma certa ironia histórica nisso, já que, em termos de prestígio internacional, décadas atrás ocorreu situação contrária. Durante os anos 60, período de glória internacional do grupo do Cinema Novo brasileiro, também na Argentina foram produzidos vários filmes ligados ao movimento do que se chamou de cinema moderno - algo que ocorreu também no Chile e em Cuba. Alguns filmes e diretores do período logo ganharam notoriedade (como o cubano Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomás Gutierrez Alea) outros acabaram sendo reconhecidos com o passar dos anos (como o chileno Raul Ruiz), mas a moda internacional daquele momento foi a produção cinemanovista brasileira. E, no caso argentino, os filmes que se tornaram mais célebres foram os de Fernando Solanas e Fernando Birri, justamente aqueles cujo engajamento político era explícito - enquanto alguns dos filmes mais interessantes produzidos no período em solo portenho praticamente não tiveram difusão internacional. Hoje, quando boa parte dos filmes cinemanovistas está inacessível ou tem circulação restrita até mesmo no Brasil, o cinema argentino do final da década de 50 a meados dos anos 70 é pouco lembrado em seu país e completamente ignorado fora de lá (por outro lado, é comum que jovens cinéfilos de outros países anotem apenas o nome de Glauber Rocha como resumo do período brasileiro).

É uma pena que isto aconteça, e o prestígio que o cinema argentino vem ganhando bem que poderia despertar uma maior curiosidade entre nosotros pelos filmes mais canônicos desta cinematografia, assim como por um panorama mais amplo da produção recente (infelizmente, as discussões costumam se restringir a meia-dúzia de títulos). A falta de cópias dos principais filmes é um entrave para que esta curiosidade se propague, mas muitos deles estão disponíveis em sites de compartilhamento na web, como o Clan-sudamerica (http://www.clan-sudamerica.net/). Além disso, embora ainda não tenham sido lançados em DVD no seu próprio país os filmes de alguns dos principais realizadores de décadas passadas (como Rodolfo Kuhn, David J. Kohon ou Alberto Fischerman), vários filmes de Torre-Nilsson e os melhores trabalhos de Leonardo Favio tornaram-se disponíveis recentemente. De Favio, é especialmente precioso o lançamento do seu Cronica de un niño solo, impressionante retrato do cotidiano de um garoto sem família, entre detenções e fugas.

O fato de este belo filme de 1965 ter sido o longa-metragem de estreia do diretor nos faz lembrar que na Argentina há dezenas de filmes de estreantes sendo feitos ano após ano, todos eles virtualmente ignorados pelos cinéfilos do país vizinho que fala português. É verdade que poucos se tornam sucessos de bilheteria - o que é natural. Há casos até extremos, como o de Snuff 102, filme de horror dirigido por Mariano Peralta - que explora cenas de tortura a tal ponto alguns classificariam seu gênero como porn torture, verdadeira violência pornográfica. O enredo do filme nem é original (ele guarda várias semelhanças com Tesis, o filme de estreia do diretor Alejandro Amenábar), mas as cenas de tortura são tão excessivas que, em sua primeira exibição, na edição de 2007 do festival de Mar Del Plata, Snuff 102 provocou reações extremadas da plateia - a ponto de um espectador mais exaltado ter partido para a agressão física ao realizador.

Se nem todos os filmes de jovens cineastas provocam tamanhas reações, alguns conseguem obter boa ressonância nos círculos de cinema argentinos - algo que, no entanto, raramente se difunde por outros países (as exceções recentes são, como se sabe, Lucrecia Martel e os portenhos Pablo Trapero e Lisandro Alonso). No ano passado, um novo filme de baixíssimo orçamento obteve boa recepção no BAFICI, principal festival de Buenos Aires: foi Histórias Extraordinárias, dirigido por Mariano Llinás. Exibido posteriormente na Mostra de Cinema de SP, onde não recebeu grande atenção, o filme de Llinás é uma narrativa fascinante que, dividida em vários capítulos, mostra-nos ao longo de quatro horas as intrincadas tramas que envolvem seus personagens. Organizado por uma permanente narração em off, com um pé na modernidade de Tarantino, outro na tradição das narrativas orais e uma perspectiva que remete aos labirintos borgeanos, ele apresenta com vigor seus enredos sobre perda de controle, deriva, mudanças, engodos, obsolescência, sobre a falência de projetos e sobre a vida que se segue em meio a tudo isso.

Feito com recursos mínimos (afora apoios, o desembolso limitou-se a pouco mais de trinta mil dólares), Histórias Extraordinárias é um exemplo notável da vitalidade da cinematografia argentina. Ele deixa clara uma lição que vários brasileiros já compreenderam: os filmes precisam apresentar um vigor, uma força cinematográfica que lhes seja própria - precisam provocar esse vigor na sua relação com o público, mesmo que ela seja cada vez mais restrita, por circunstâncias diversas. É inútil pretender encontrar modelos pré-formatados, já que filmes são diferentes uns dos outros; um filme que conseguisse ser idêntico a seu modelo já seria, desde a origem, óbvio e dispensável. O que se pode pretender, ao olhar casos bem-sucedidos, é descobrir de onde tiram a sua força para estabelecerem uma relação vigorosa com o público. É esse o sinal de vitalidade que interessa. Quanto às discussões sobre premiações e afins, estas a gente pode deixar para os que têm mais interesse em abobrinhas do que em filmes.


artigo publicado na Filme Cultura nº 51, lançada em julho de 2010