13/01/2012

Cânones e margens

No fim do ano passado, algumas publicações internacionais apresentaram suas listas coletivas de melhores filmes lançados entre 2000 e 2009. Foi o que fez a Film Comment, revista editada pelo Lincoln Center de Nova York, assim como a francesa Cahiers du Cinéma e a Indiewire, também dos EUA. É verdade que “oficialmente” a década só acaba no final de 2010, mas isso não precisa ser levado a sério a ponto de impedir que sejam feitas pesquisas para listar as escolhas de melhores filmes de um período determinado, algo que nos permite ver um pouco do espírito do nosso tempo. As três listas revelaram uma sintonia bem grande, que ficou mais evidente por serem todas elas encabeçadas pelo mesmo filme: o tricampeão, melhor filme da década para as três publicações, foi Cidade dos sonhos (Mulholland Dr., EUA/França, 2001), dirigido por David Lynch. É um consenso curioso, já que o filme de Lynch provocou reações extremadas quando estreou, sendo acusado diversas vezes de ser “incompreensível” - até que a difusão da interpretação de toda a primeira parte como um longo sonho serenou as plateias. De fato, Cidade dos sonhos foi uma obra fortíssima, que retratou em forma de pesadelo o lado B do “sonho americano”, mostrando o triste fim de uma atriz fracassada em Los Angeles.

Mas o filme de Lynch não foi o único consenso entre as listas citadas - além dele, outros títulos se repetiram nas publicações: Mal dos trópicos (Sud Pralad, Tailândia/França/Alemanha/Itália, 2004), de Apichatpong Weerasethakul, Marcas da violência (A history of violence, Alemanha/EUA, 2005), de David Cronenberg, Elefante (Elephant, EUA, 2003), de Gus Van Sant, O novo mundo (The new world, EUA/Inglaterra, 2005), de Terrence Malick, O Hospedeiro (The Host, Coréia do Sul, 2006), de Bong Joon-ho. Todos eles são filmes notáveis que foram exibidos no Brasil em festivais internacionais e, em poucos casos, também em lançamentos restritos ao circuito chamado “de arte”. Com exceção de Mal dos Trópicos, todos foram lançados em DVD por aqui. Se resolvermos comparar apenas as listas da FilmComment e da IndieWire (uma vez que a listagem da Cahiers só conta com dez títulos), a repetição de títulos chega às dezenas: há em ambas filmes de cineastas como o franco-suíço Jean-Luc Godard, o chinês Jia Zhang-ke, a francesa Claire Denis, o dinamarquês Lars Von Trier, a argentina Lucrecia Martel, o taiwanês Edward Yang, o austríaco Michael Haneke, o espanhol Pedro Almodóvar, o português Pedro Costa, entre vários outros. O único filme brasileiro lembrado é Cidade de Deus, mencionado apenas na pesquisa da Indiewire.

Estas coincidências entre as listagens, no entanto, se por um lado facilitam a vida de um curioso que queira conferir as escolhas destes críticos, por outro lado parecem indicar que há um repertório relativamente restrito compondo consensos entre esta crítica. Mesmo entre estes nomes canonizados em festivais e revistas internacionais, pode-se perceber que o repertório indica seguir critérios questionáveis: por exemplo, o fato de nenhuma das listagens apresentar sequer um curtas-metragem me faz pensar que, do citado Cronenberg, poderia ter sido lembrado o fabuloso Câmera (Camera, Canadá, 2000), filme genial de apenas sete minutos.

As listagens também mostram pouco interesse pela grande indústria: entre os filmes norteamericanos lembrados, a maior parte foi dirigida por realizadores distantes dos grandes orçamentos (sendo Steven Spielberg a principal exceção). Além disso, não há quase nenhum filme de ação, nem de aventura, tampouco comédias entre os títulos mais mencionados nestas pesquisas, embora estes gêneros já tenham sido praticados por realizadores de décadas passadas que hoje são canônicos (Hawks, Lang, Hitchcock, Ford, entre tantos outros).

Ironicamente, também os filmes dos vanguardistas já clássicos têm presença reduzida, à exceção de Jean-Luc Godard com seu Elogio ao Amor (que eu trocaria por Nossa Música). Não há menção aos filmes-diários de Jonas Mekas, nem às experimentações visuais do já falecido Stan Brakhage, tampouco ao último filme do também falecido Alain Robbe-Grillet. E também não se pode encontrar entre as listas o último filme de Rogério Sganzerla, O Signo do Caos.

A presença insignificante de filmes brasileiros permite conclusões bastante díspares. Antes que se considere que isto se deve unicamente a um suposto desnível de qualidade, vale notar que a cinematografia local não é a única desprestigiada nas publicações norteamericanas e francesa: também quase nada foi lembrado da tradicionalíssima produção italiana, nem da produção iraniana, que era a grande novidade da década anterior. Os critérios indicados pela crítica internacional dizem muito do que se costuma chamar de espírito do tempo - ou, ao menos, fazem perceber a predominância de certas escolhas, de certos caminhos. Assim, não há menção ao horror de Dario Argento (embora tenham lugar os de Lynch e Cronenberg); nem são lembrados os notáveis filmes recentes de Marco Bellochio. No caso da produção brasileira, já foi muito comentada a relação dificultosa que filmes como os de Eduardo Coutinho estabelecem com públicos estrangeiros. De todo modo, estas listas nos trazem novas evidências de que a produção nativa atual não se encaixa (ao menos não com destaque) nos critérios estéticos que norteiam uma parcela expressiva e influente da crítica estrangeira.

Como curiosidade, podemos confrontar uma quarta listagem às três citadas: a publicada recentemente pelo site paulistano Cinequanon. Nela, Cidade dos Sonhos também foi bastante lembrado. Foi o segundo filme mais citado na lista geral - o único que teve mais menções foi Serras da Desordem(Brasil, 2006), de Andrea Tonacci.


Serviço - As listas mencionadas podem ser achadas nos seguintes endereços:

http://www.indiewire.com/survey/best_of_the_decade_critics_survey_2000s/

http://www.cahiersducinema.com/article1926.html

http://www.filmlinc.com/fcm/jf10/best00s.htm

http://www.cinequanon.art.br/emdiscussao_detalhe.php?id=14

O curta Câmera, de David Cronenberg, pode ser visto (com legendas em português) no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=EyN2Z_q4m6s


(artigo publicado na edição nº 50 da Filme Cultura, lançada em abril de 2010)