13/01/2012

A consciência do olho, da disposição e da cena

Embora o termo de origem francesa mise-en-scène seja muito usado por críticos e cinéfilos no Brasil e mundo afora, não é fácil precisar o seu sentido. O mais comum seria traduzi-lo como encenação, mas há um aspecto fundamental no verbo flexionado “mise”. A tradução literal, por-em-cena, nos ajuda a lembrar que há escolhas em jogo - mais do que encenar um texto previamente escrito, é preciso definir o que é apresentado - o que o filme permite ver e ouvir. A forma de apresentar a cena, a disposição das informações e a perspectiva do olhar tornam claras as intenções de cada filme, aquilo que move cada um deles - são os gestos que os definem, sejam filmes narrativos de ficção, documentais ou não-narrativos. Jacques Aumont, em certo ponto do seu livro “O cinema e a encenação”, nos relembra que a “cena” do cinema não se reduz à cena do texto teatral, mas à disposição visual e sonora dos elementos cinematográficos: trata-se de “por-na-tela”. À primeira vista uma ideia vaga o suficiente para valer ao gosto do freguês - é o que acontece, de certo modo, com a versão francesa (e é o problema que, no seu livro, Aumont consegue dimensionar).

Vista segundo uma certa tradição, a relação entre o olhar e isso que se costuma chamar de mise-en-scène é de oposição, uma oposição que diferencia o cinema documental do cinema ficcional: o documentarista é aquele que seleciona um objeto para observar, enquanto o ficcionista é aquele que cria uma cena, uma sucessão de acontecimentos articulados entre si. No entanto, os filmes feitos em nossos dias têm à disposição pontos de partida mais complexos, que compreendem os enlaces e paradoxos de ambas as posturas. Vários documentários tornam claro para quem os assiste que provocam cenas diante de si (como se vê por exemplo nos filmes de Eduardo Coutinho, mais claramente em Jogo de Cena e Moscou). E as ficções, por sua vez, podem explicitar determinados aspectos cênicos que não são inteiramente controlados (tanto os registros de pessoas e ambientes reais como o recurso ao improviso dos atores, por exemplo) ou podem criar dobras da cena, dando a impressão de registrarem cenas dentro de outras cenas - ou a partir de outras cenas, tornando claras determinadas referências históricas e estéticas. Se hoje alguém pode acusar o cinema de decadência, depois de um percurso de pouco mais de uma centena de anos, essa decadência certamente não ocorre por falta de conhecimento ou reflexão sobre a própria história do cinema, sobre as linguagens, os estilos, os enredos, os movimentos e os objetos que o compuseram. Há cerca de um século, a compreensão imediata que se podia ter do estatuto dos registros e construções de imagens em movimento ainda podia justificar alguns equívocos pueris. Talvez a lenda sobre o pavor que os primeiros espectadores sentiram diante do trem do filme de Lumière seja apenas uma lenda, mas todas as crianças que um dia descobriram vampiros e monstros projetados em salas escuras sabem que o engano cinematográfico é cheio de verdade.

Essa verdade não é a mera reprodução da realidade das coisas de fora da tela: qualquer coisa no mundo, seja uma pessoa ou uma pedra, uma vez filmada, não “está” propriamente no cinema, ela continua no mundo. Ao registrar a pedra e a pessoa, a câmera cria outras coisas: suas imagens. A imagem inventada ganha existência própria, torna-se algo em si - esse fundamento moderno das artes foi apontado primeiro pela pintura, ainda no século XIX por Cézanne, depois de uma forma bem explícita no célebre quadro “Isto não é um cachimbo” de René Magritte. No entanto, essa existência própria não apaga a dívida que as imagens têm das coisas do mundo. A clássica distinção proposta por André Bazin entre os cineastas “da imagem” (como os expressionistas) e os cineastas “da realidade” (como os neorrealistas) torna clara esta separação entre imagens e mundo, mas obscurece os pontos de fricção: um filme que pretenda retratar “a realidade” se vê instado a apresentar imagens “justas” do que filma (algo já ironizado por Jean-Luc Godard numa frase célebre: “não uma imagem justa, mas justamente uma imagem”); e um filme preocupado com a organização dos elementos audiovisuais, se não investir na pura abstração (como alguns exemplares da chamada vanguarda), estará sempre se remetendo a coisas e percepções do mundo, nem que seja como metáfora ou ironia, nos sentidos amplos que se podem dar ao velho conceito aristotélico de mimese.

Esses pontos de fricção entre as imagens e o mundo deixam evidente qual é o laço que não permite que se afastem, no cinema, o olhar e a cena: é a propriedade que a imagem tem de apresentar os indícios evidentes do pedaço de mundo registrado. Como já se disse, tanto a cena inventada sempre faz uso de aspectos reais como o recorte de olhar gera mudanças na percepção das coisas e mesmo nelas próprias. Os usos possíveis do que se conceituou como dispositivos, os gestos estruturantes que definem conceito e procedimentos de um filme (e podem ser os mais variados, como duração determinada do plano ou modo de movimento da câmera, por exemplo), derivam de uma crise dessa separação, uma crise de desconfiança, desconfiança constante tanto nas ficções como nos documentários. Essa crise, de certo modo, provocou os temores tão falados sobre fim da cinefilia, fim da encenação ou fim do olhar - ainda hoje, numa época em que, graças a várias inovações tecnológicas, os filmes seguem sendo feitos em ritmo de produção e difusão contínuas e crescentes. Mas o indício claro dos filmes sendo feitos, para os mais temerosos, não comprova a sobrevivência da arte do cinema (ou, pelo menos, não daquela arte).

A atenção dada aos aspectos de organização a partir desses ditos dispositivos, sobretudo em filmes recentes, mas também nas estruturas de filmes anteriores ao uso do conceito, parece ser um indício da disposição em fazer um outro movimento para resolver essa crise de desconfiança e tornar indistintos olhar e mise-en-scène. Desse modo, a relação que cria entre o espectador e as imagens apresentadas se pretende mais explícita e consciente: o dispositivo dá a regra - que pode ser subvertida, mas é fundamentalmente clara. Desse modo, com regras visíveis estabelecidas para o registro audiovisual, o espectador pode acreditar que vê claramente naquilo que o filme apresenta quais são os aspectos previamente definidos e o que é real (e, é claro, ele também pode ser novamente enganado pelo jogo da ficção narrativa). Pode ser por essa razão que os filmes explicitamente orientados por dispositivos tenham parecido tão interessantes para críticos, estudiosos e novos realizadores nos últimos anos.

Esta preocupação, no entanto, de certo modo se marginaliza cada vez mais no universo da produção cinematográfica - talvez sem chance de opção, uma vez que o pólo de indústria rentável fica cada vez mais distante dos circuitos de “arte e ensaio”. É certo que ainda podem ser feitos grandes filmes a partir de olhares do mundo (vejam-se, por exemplo, os documentários recentes de Werner Herzog), a partir de encenações clássicas ou inovadoras (dos filmes de Spike Lee aos de Pedro Costa, talvez centenas de cineastas dos dias de hoje pudessem ser mencionados) e a partir de dispositivos rigorosos ou subvertidos. Há inclusive os filmes que conseguem compreender e somar esses gestos de invenção, unindo cenas planejadas a olhares históricos e dispositivos de registros (F for Fake, de Orson Welles, Close-up, de Abbas Kiarostami, e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, são alguns exemplos de casos notáveis). Mas, se antes a indústria garantia espaço amplo para a difusão e renovação dos modos de encenação cinematográfica, hoje isso parece se tornar raro. É certo que o uso de linguagem cinematográfica inteligente e sofisticada nunca foi de fato algo necessário para o sucesso comercial de um filme, mas a escala gigantesca de publicidade que o cinema do star system e dos blockbusters ganhou tem tornado a indústria, nos últimos anos, cada vez mais acomodada à reprodução descuidada e apressada de modelos de sucesso. Mas não vou fazer desse texto um alerta pessimista: tanto no centro da grande indústria como nas suas bordas mais visíveis eventualmente surgem filmes bastante fortes e alguns cineastas de talento conseguem se estabelecer.

O problema pode se tornar mais evidente, no entanto, nos meios em que se procuram desenvolver protótipos de indústria de filmes, tal como no Brasil das últimas décadas. Nesses casos, o esforço de reprodução de modelos industriais externos ainda provoca alguns resultados catastróficos de filmes pretensamente “de grande público”. O apuro técnico dos filmes recentes de grande porte parece tentar exorcizar o velho fantasma da precariedade que caracterizou tantos filmes desde as chanchadas, mas a disposição para imitar modelos com certa grosseria parece se repetir, se não por pobreza financeira, devido possivelmente ao receio ou preguiça de recriar os modelos. Isso é visível em boa parte das comédias e demais filmes de grande público recentes - excetuando-se os realizadores mais experientes, na maior parte dos casos, e o caso raro dos dois Tropa de Elite. Afora estes, nos melhores casos podem ser vistos filmes que surpreendem por sustentar suas opções com dignidade (como Nosso lar) e, noutros casos, piadistas parecem ter tomado o lugar dos atores de comédias. Ou os filmes parecem tratar atores como piadistas, o que não é diferente - e talvez seja esta uma definição possível para a disposição dominante nas comédias atuais. Trata-se, sobretudo, de um problema de ambição: a ambição de se adequar a um sistema de comércio não obriga necessariamente a abdicar de uma ambição de cinema. É uma escolha, uma disposição - que, com alguma competência nos aspectos ainda preponderantes, pode resultar em bom acordo com um público numeroso.

Seja como for, não se pode mais atribuir ao espectador das salas de cinema hoje, depois de mais de um século de história, a ingenuidade de não reconhecer olhares, encenações e construções nos filmes que assiste. No universo das salas de cinema dos dias de hoje, não seria justo dizer que as pessoas do público não sabem o que estão comprando, sejam coleções de efeitos especiais ou neochanchadas. Ninguém permanece acreditando por toda a vida nos vampiros e monstros que viu “de verdade” na infância. É uma teoria bastante defensável sugerir que o ensino das regras básicas da linguagem audiovisual para os jovens pode evitar vários usos de má-fé (tanto no jornalismo como na propaganda), mas chega a ser difícil acreditar que, por ignorância, uma pessoa do século XXI não sabe diferir o que é o mundo e o que é um filme. Nesse sentido, por mais que as bilheterias indiquem movimentos de manada, em que alguns poucos filmes são vistos por milhões, dentro dessas manadas há indivíduos que estão escolhendo o que vão fazer com seus tempos, suas atenções e percepções. Se o panorama genérico dos filmes nos sugere o desinteresse generalizado pelas artes da encenação, isso não indica que os espectadores não percebam (no mínimo de forma puramente intuitiva) as encenações e suas características.

A crença de que os espectadores têm conhecimento básico e capacidade intelectual para não confundir encenações e realidade é o que justifica o fim da censura. Isso se trata, antes de tudo, de compreender e respeitar o que é o espectador de um filme no início do século XXI. No entanto, como já foi dito no início desse texto, certos termos podem ser usados a gosto - e adquirem sentidos reveladores em outros contextos. Encenações políticas, gestos impeditivos e dispositivos jurídicos: para além de proibirem um filme péssimo como A Serbian Film (ironicamente, tão moralista e boçal quanto seus censores), estas tenebrosas movimentações sugerem que as relações de poder entre os espectadores e as imagens são menos livres e conscientes do que as relações de olhar.

Isso deixa evidente, mais uma vez, a forte conotação política que existe em reivindicar a consciência do olhar nos dias de hoje: a capacidade do espectador de, após mais de um século de cinema, poder observar e compreender as disposições e as cenas que compõem o seu universo audiovisual. Trata-se, a seu modo, de uma forma de alfabetização. Ninguém precisa conhecer amplamente a história e os estilos de cinema para compreender conscientemente o fluxo de imagens, assim como ninguém precisa escolher ser um leitor parnasiano ou modernista para aprender uma língua. E a censura a filmes de ficção (mesmo os ruins) não se justifica justamente porque é como tratar a todos como analfabetos.


artigo publicado na Filme Cultura nº 55, lançada em dezembro de 2011