13/01/2012

Difusão é cultura

Quando falamos em difusão de filmes, alguns números podem ajudar a esclarecer determinadas questões. Note-se que, na década de 1970, o Brasil tinha cerca de cem milhões de habitantes e, nos anos em que os cinemas ficaram mais cheios, mais de 250 milhões de ingressos foram comprados. Desde então, a população brasileira aumentou bastante: a estimativa mais recente do IBGE indicou sermos mais de 190 milhões de brasileiros. No entanto, o número de espectadores caiu muito neste período (embora tenha aumentado um pouco em comparação com o início da década de 2000): têm sido comprados cerca de 100 milhões de ingressos anualmente. Se escolhermos o ano de 1975 como medida de comparação (naquela década, foi quando se chegou ao maior número de ingressos vendidos), a diferença na proporção é, aproximadamente, a seguinte:

- em 1975 => 2,75 bilhetes de cinema ao ano por habitante;

- em 2010 => 0,6 bilhete de cinema ao ano por habitante.

Alguém poderia supor que hoje há menos gente interessada em ver filmes; e poderia acreditar também que, atualmente, até as pessoas com interesse por cinema vêem menos filmes do que acontecia em décadas passadas. No entanto, ambas as suposições são de difícil comprovação. O dado óbvio que ajuda a entender o que aconteceu é que as salas de cinema ganharam concorrentes, que permitem que os filmes sejam vistos nas casas dos espectadores: primeiro foram os aparelhos de TV; depois surgiu o sistema de vídeo; mais tarde, vieram os canais de TVs a cabo; em seguida, os DVDs; e, na última década, surgiu o compartilhamento de filmes através da internet. Fazem-se muito mais filmes hoje do que em décadas passadas (e não apenas filmes, como também toda sorte de produtos audiovisuais), e não é improvável que muito mais gente veja cada vez mais filmes; no entanto, nem todos os espectadores vão às salas de cinema. Por isso, embora a população tenha aumentado, o número de bilhetes vendidos caiu.

Devido a isso, já há vários anos que os filmes podem alcançar multidões, povoar a imaginação de milhões de pessoas e motivarem incontáveis conversas, sem que precisem passar pelas salas de cinema para conseguir isso. Esta lição as telenovelas brasileiras já conhecem há muito tempo. A televisão, principal suspeita pela decadência que conheceram as salas de cinema, ainda é uma forma de difusão sem equivalente no Brasil. Novamente, os números falam por si. Se pegarmos como exemplo o filme O homem que copiava, dirigido por Jorge Furtado, vamos descobrir que, tendo obtido cerca de 660 mil espectadores durante os meses em que foi exibido nas salas comerciais, ele alcançou cerca de 20 milhões de espectadores numa única transmissão à noite na televisão. O número de espectadores é de tal porte que, numa comparação direta, não torna diminuta apenas a bilheteria do mesmo filme em circuito. Este alcance supera por larga margem o melhor resultado de um filme brasileiro em salas de cinema até hoje, o de Dona Flor e seus dois maridos. Na verdade, ele supera a bilheteria de qualquer filme no Brasil, inclusive os recordistas de Hollywood. Mais: em uma única exibição na TV, O homem que copiava chegou a muito mais gente do que, somadas, todas as sessões de cinema de filmes brasileiros em 2009 (cerca de 16 milhões de ingressos vendidos). E este é apenas um caso entre muitos outros, um número que escolhi por ter sido medido por um instituto de pesquisas e comentado algumas vezes pelo próprio realizador, Jorge Furtado (por exemplo, no texto disponível em http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado/cinema-e-audiovisual).
No entanto, a difusão de filmes brasileiros na TV é relativamente pequena, acanhada. São poucos os exibidos em emissoras de TV aberta, menos da metade dos mais de 70 longas metragens feitos no país a cada ano. Embora a Constituição Federal garanta, no artigo 221, que emissoras de TV devem incluir a produção independente na sua programação, a falta de regulamentação deste artigo constitucional fez com que ele nunca tenha sido respeitado nas duas últimas décadas. Por conta disso, as emissoras privadas podem exibir somente a sua própria produção e, eventualmente, alguns filmes estrangeiros. O caso exemplar de O homem que copiava só pode se repetir num esquema específico: como se sabe, trata-se de um filme co-produzido pela Globofilmes, braço cinematográfico da organização detentora do maior canal privado do país. A Rede Globo promove em sua grade de programação, uma vez ao ano, a Semana do cinema nacional, exibindo um filme por dia, numa seleção feita a partir da cartela de co-produções da empresa. Cabe lembrar ainda que, se a presença de filmes brasileiros na Globo é tão pequena, nas demais emissoras privadas ela é praticamente inexistente.

As emissoras públicas, por sua vez, poderiam oferecer caminhos alternativos de difusão - e o fazem, mas numa escala também bastante pequena. Embora estas emissoras pertençam ao mesmo Estado que patrocina boa parte dos filmes, através de leis de incentivo e editais, elas exibem apenas uma parte pequena desta produção. Em 2009, a TV Brasil apresentou 84 longas brasileiros na sua programação, algo equivalente a três filmes exibidos a cada duas semanas. Com este número, foi a emissora de TV aberta que exibiu mais filmes brasileiros no ano, seguida pela Globo, que programou 75 filmes produzidos no Brasil. A TV Brasil também teve o mérito de exibir um número considerável de curtas e médias (cerca de 200 filmes exibidos em 2009). Sua maior dificuldade, como se sabe, é ter uma transmissão nacional com boa qualidade de imagem e som. Mas não é a única limitação: diante da grande quantidade de filmes produzidos regularmente no país, é evidente que o número de produções exibidas na emissora poderia ser bem maior do que é, seja por falta de verba para adquirir direitos ou por falta de horários na grade de programação.

A internet também já se tornou uma nova forma possível de ampla difusão, como ficou bastante evidente para os brasileiros em 2007, a partir do fenômeno em torno do filme Tropa de Elite. Na época, a aferição de um instituto de pesquisa indicou que a cópia pirata difundida pela rede de computadores pode ter sido vista por até onze milhões de pessoas, antes mesmo da estréia do filme em circuito. Embora esse meio de difusão às vezes seja tratado unicamente como algo que deve constar no código criminal, o uso da internet para difusão de filmes não se resume apenas a interessados em vender cópias de filmes nas ruas, nem a usuários de computadores pessoais que praticam o compartilhamento de filmes. O site Youtube acabou se tornando o grande marco em relação a este assunto, criando com frequência nos últimos anos alguns fenômenos próprios - da cantora Susan Boyle ao ator e humorista Marcelo Adnet, é grande a lista de celebridades instantâneas do Youtube, renovada a cada dia. Atualmente, muito do que se transmite pela web tem baixa qualidade técnica, mas a tecnologia disponível nos dias de hoje já permite que sejam transmitidos pela web arquivos de filmes com alto padrão de imagem e som. Isto permitiu que surgissem algumas iniciativas de distribuição de filmes através da transmissão pela web, como é o caso de algumas empresas de exibição com tecnologia digital (com resultados cuja qualidade ainda é bastante questionada, por diversos motivos).

Além disso, vários cineastas do mundo têm usado a web para divulgar novos trabalhos, que, em muitos casos, foram pensados para este formato (um caso notável, por exemplo, é o trabalho que David Lynch tem feito para seu site nos últimos anos). No Brasil, a possibilidade de difundir os filmes pela internet motivou alguns cineastas a liberarem oficialmente seus trabalhos para download. O carioca Bruno Vianna fez isso de maneira original ao pôr em um site na web o seu primeiro longametragem, Cafuné (antes mesmo de estreá-lo nas salas de cinema) com as cenas sem ordem obrigatoriamente determinada, permitindo que quem fizesse download alterasse a montagem final (oferecendo até mesmo dois desfechos diferentes). Vianna voltou a fazer coisa semelhante no seu trabalho mais recente, Ressaca, que, novamente em pedaços, está disponível na internet. Outros realizadores também têm usado o meio para difusão, como fizeram recentemente Carlos Gerbase, com 3 efes, e Guilherme de Almeida Prado, com Onde andará Dulce Veiga?.

Finalmente, é preciso considerar a difusão de filmes em exibições não-comerciais, sejam as de origem cultural, cineclubística ou acadêmica. São lugares que se beneficiaram de avanços técnicos - a exibição digital e a facilidade de envio de DVDs aumentaram um espectro que, décadas atrás, dependia de cópias e projetores custosos e pesados. Não é por acaso que houve um movimento de volta das atividades cineclubísticas ao longo da última década. Mas estes espaços já permitiram que acontecessem verdadeiros fenômenos regionais de difusão de filmes; os casos de realizadores ditos “primitivos” (como Afonso Brazza ou Talício Sirino) acabam se tornando célebres pelo aspecto folclórico, mas não são os únicos. É graças a exibições desta natureza que alguns filmes de longa, média e curta metragem se tornam peças marcantes para vários grupos das gerações atuais.

Estas formas de difusão, como muito já se falou, apresentam a tendência de convergir. Podemos imaginar que o acesso a filmes pela internet estará conectado ao aparelho de televisão; que usuários poderão fazer suas escolhas a partir das opções de uma grade de programação; que isto permitirá o acesso a clássicos e a filmes independentes mesmo nos lugares mais distantes, para exibições públicas ou privadas.

No entanto, a tradição de cultura patrimonialista indica que, sem organização e regras, a diversidade e o acesso são comprometidos. Afinal, com o perdão da insistência, hoje a maior parte dos filmes que são feitos no Brasil não fica disponível nem nas emissoras de TV pública, nem nas privadas, tampouco pela internet. A realidade da difusão de filmes brasileiros para a população do país, hoje, é a realidade de um fracasso.

Se atualmente as circunstâncias são desfavoráveis e muito do que se produz permanece inacessível a quase todos, algumas mudanças de regras poderiam alterar um pouco o panorama. É difícil nutrir esperanças acerca da regulamentação do artigo constitucional 221, então os espaços das emissoras privadas devem continuar sendo negociados como (não) acontece hoje; mas sempre se pode acreditar na ampliação do espaço para filmes nas emissoras públicas. Para isso, uma pequena mudança nos editais de concursos (e mesmo nas leis de incentivo) já poderia alterar a forma de negociação das exibições de filmes: basta que os termos dos editais determinem a obrigação de exibir os filmes que vierem a ser feitos em emissoras públicas de TV, após um determinado período de comercialização. A difusão pela internet também pode ser garantida de modo semelhante, determinando a disponibilidade dos filmes alguns anos depois de seu lançamento comercial. Isto poderia garantir espaços de difusão permanente no próprio domínio público (como já acontece com textos literários no site http://www.dominiopublico.gov.br). Uma vez que estes espaços existam, podem ser abertos inclusive às produções feitas sem o apoio estatal (conjunto que costuma incluir alguns longas e boa parte dos curtas produzidos).

Depois de um longo período, hoje parece fora de moda falar em diversidade de filmes. No entanto, esta “diversidade” é enganosa somente para esforços de visão total de um panorama: na prática, ela reflete a complexidade do conjunto composto por filmes produzidos por grupos de diversos lugares e origens sociais. Ao contrário do que alguém poderia supor se observasse a produção apenas com os dados da venda de ingressos, hoje são produzidos muito mais filmes do que há quatro décadas. E isto não é algo ruim. Sendo assim, por mais estranha que possa soar a ideia de disponibilizar para download, no próprio site do MinC, todos os filmes feitos através de editais (além de outros feitos de forma independente), ela indica apenas um caminho para fazer algo urgente à cinematografia brasileira: garantir a difusão do maior número possível de filmes.



artigo publicado na Filme Cultura nº 52, lançada em outubro de 2010