13/01/2012

Cearenses

Durante décadas, enquanto a produção de filmes esteve quase toda concentrada no eixo Rio-SP, eram raros os filmes feitos no Ceará. No entanto, como se sabe, o surgimento dos equipamentos digitais, acompanhado pelo estabelecimento de cursos de cinema, permitiu que se desenvolvessem modos de produção de baixo custo - e isso, somado ao acesso à produção mundial de cinema através do compartilhamento na Internet, possibilitou recentemente uma produção numerosa no Ceará de filmes caracterizados por uma certa inquietude estética. Parte desta produção pôde ser vista nos últimos anos na Mostra de Tiradentes-MG, que se tornou o lugar em que a nova geração cearense apareceu para o resto do país. Ela se tornou evidente em 2008, quando foram exibidos os longas Sábado à noite, dirigido por Ivo Lopes Araújo (em parceria com Armando Praça, que ganha no filme o crédito de “abordagem e sedução”), e O grão, dirigido por Petrus Cariry (com fotografia assinada pelo mesmo Ivo), além de vários curtas-metragens, como Câmera viajante, de Joe Pimentel, que acabou ganhando o prêmio de melhor curta pela votação do júri popular naquele ano - enquanto Sábado à noite ganhou o prêmio de melhor filme segundo o júri jovem.

Dois anos se passaram e, em janeiro, a nova edição de Tiradentes exibiu e ao final premiou um novo filme cearense, a realização coletiva Estrada para Ythaca, com direção de Guto Parente, Ricardo Pretti, Luiz Pretti e Pedro Diógenes. Pelas avaliações mineiras, há algo de novo vindo do Ceará. Vale notar que há uma certa sintonia entre esta produção cearense e alguns realizadores de Minas, que se faz visível nos filmes (há climas, estratégias e modos bastante parecidos entre alguns deles); sintonia que acabou se tornando prática quando Ivo Lopes Araújo assinou a fotografia de alguns filmes mineiros recentes (como A falta que me faz, de Marília Rocha). Ivo é uma das figuras centrais deste novo grupo de Fortaleza, que inclui os diretores de Estrada para Ythaca e vários curta-metragistas - é uma turma que já fez inclusive um outro longa coletivo, Praia do futuro - um filme em episódios, assinado por dezessete diretores. Em sua maior parte, as pessoas deste grupo se envolveram com cinema a partir de cursos na Escola do Audiovisual ou, antes, no Instituto Dragão do Mar (cujos cursos foram interrompidos há alguns anos). Até então, haviam sido poucos os realizadores cearenses que conseguiram produzir filmes com constância - em que se destacam nomes como o de Rosemberg Cariry, que conseguiu o feito raro de realizar quatro longas-metragens na última década (além de ter escrito os roteiros de alguns dos filmes de Petrus Cariry, seu filho, inclusive de O Grão), e o de José Araújo, que estreou na década de 1990 com o notável O sertão das memórias. E vale lembrar que um dos mais ativos produtores do país, Luiz Carlos Barreto, é um cearense: exceção que confirma a regra, Barreto se mudou ainda jovem para o Rio de Janeiro, onde veio a se envolver com cinema no início dos anos 60; naquele momento, uma carreira como a sua só tinha futuro nos grandes centros urbanos do país.

Provocando uma mudança neste panorama, nos últimos anos surgiu este grupo cujos filmes têm alguns traços em comum - em quase todos é visível o valor que se dá à observação das pequenas ações, desdramatizadas, e a uma relação diferenciada com o ritmo de imagens. São filmes que revelam a sua construção através desse olhar atento, que frequentemente dilata os tempos e cria uma relação com o espectador diferenciada do ritmo apressado que é próprio da TV e da indústria audiovisual. Assim, disseminou-se entre estes filmes o uso de planos longos e silenciosos. Este procedimento não é novidade, nem pode ser resumido à propalada influência de filmes orientais sobre o cinema cearense: é o caso de se recordar que, já no início dos anos 1950, isto fazia parte do modelo neo-realista italiano (e era um procedimento defendido por André Bazin em textos clássicos). De todo modo, o recurso à narrativa observadora, feita com economia de diálogos e falas, compõe boa parte dos filmes desta nova leva - sobretudo nos casos dos longas já mencionados, mas não só eles: o mesmo pode ser visto em curtas como, por exemplo, Kokoronoiro, de Fred Benevides, Cruzamento e Às vezes é melhor lavar a pia do que a louça ou simplesmente Sabiaguaba, feitos pelos diretores de Estrada para Ythaca (Parente e Diógenes dirigiram Cruzamento, os irmãos Pretti fizeram o outro). Esta relação de diferentes tempos é de certo modo o tema e o motivo de Espuma e Osso, curta de Ticiano Monteiro e Guto Parente em que a solidão melancólica inicial do seu personagem principal é realçada tanto pelos longos planos silenciosos quanto pela máscara de Mickey Mouse que ele veste, e a tensão subsequente do seu momento de trabalho é mostrada em planos curtos, com cores chapadas e imagem com falhas. Estes curtas e mais outros feitos nos últimos anos indicam um desejo de inovação e surpresa, um desejo que segue presente nos longas já mencionados.

No caso de Sábado à noite, logo no início o filme apresenta claramente o seu dispositivo (que será abandonado em alguns momentos mais adiante): as pessoas da equipe de filmagem vão para a rodoviária local em busca de alguém que lhes dê carona e lhes leve para outro lugar - e, a partir dos vários encontros que têm dali em diante, tratam de mostrar ações e personagens de uma noite de sábado em Fortaleza. Os registros filmados em equipamento digital são apresentados em preto-e-branco, um artifício que torna explícita a estetização da imagem - assim como a ausência quase total de falas ao longo do filme também é, em alguma medida, uma intervenção posterior, feita após as filmagens: é uma escolha, embora não seja tão evidente quanto o gesto de não usar cores. O filme se faz íntegro com estas decisões e, talvez por isso, toda a sua elaboração visual e sonora parece manter uma leveza, uma certa naturalidade que lhe dá força. É um filme que se motiva pelo impulso de registrar o que não conhece, o que não controla; e é com esse impulso que se sustenta, extraindo a emoção de fazer cinema existir através de encontros até mesmo com pombos fugidios, como acontece em certo momento da madrugada filmada.

O grão também apresenta uma certa ralentação das ações, agora em registro ficcional, em que o cotidiano de uma família fecha diferentes ciclos simultaneamente: a filha se casa, a avó falece após um período de convalescença. De certa maneira, ele parece se diferenciar dos outros filmes por dar peso ao rigor na concepção e apresentação das imagens, que os demais abandonam em favor de uma atmosfera mais descontraída - esta já mencionada leveza do olhar, que não está no horizonte do filme de Petrus Cariry. Neste sentido, O grão tem um grau de auto-consciência da representação artística que acaba lhe pesando demais sobre os ombros, embora apresente uma beleza serena nos seus melhores momentos.

Estrada para Ythaca, por sua vez, é um filme coletivo em que os próprios diretores são também atores-personagens. Como tal, eles interpretam um grupo de jovens barbudos que estão decididos a beber várias cervejas, enlutados pelo falecimento de um amigo - até que um deles resolve partir para outra cidade, Ythaca, e os outros acabam por aceitar acompanhá-lo. Road-movie bebum e sem dinheiro, em que o carro escangalha e a comida tem que ser improvisada, Estrada para Ythaca celebra a amizade, a união e uma certa gaiatice, alternando momentos singelos e outros com humor francamente surrealista. Em certo trecho, por exemplo, os quatro têm um sonho coletivo em que o amigo falecido se confunde com o fantasma de Glauber Rocha e aparece para eles reproduzindo uma cena célebre do filme Vento do Leste, de Jean-Luc Godard. Nela, o cineasta baiano está de costas para uma bifurcação e diz que um lado indica o caminho do cinema de ação e fantasia, enquanto o outro lado leva ao cinema do terceiro mundo, o cinema realista. Mais tarde, os quatro amigos se vêem diante da mesma bifurcação e escolhem então seguir pelo caminho definido por Glauber como terceiro-mundista. Ao seguir por este caminho, mais tarde o grupo é abduzido e, quando voltam, estão todos de barba feita. Quando enfim chegam à sua Ythaca sonhada, nada mais têm a fazer que voltar a beber mais cervejas e celebrar a amizade entre si. Assim, Estrada para Ythaca é praticamente um manifesto em favor de um cinema feito de modo artesanal, coletivo e afetivo, que se preocupe menos em satisfazer determinados parâmetros típicos do discurso do profissionalismo e mais em apresentar certos climas, ambientações e sentimentos que, a seu modo, vão lhe dando personalidade e força. É um filme que escolhe seu próprio ritmo e defende seus caminhos, é certo. Dentro do contexto atual, essa proposta de um certo modo de cinema é um forte indício de que vale a pena prestar atenção às novidades que virão do Ceará.


artigo publicado na Filme Cultura nº 50, lançada em abril de 2010