13/01/2012

Crepúsculo de uma raça

500 almas nos apresenta os integrantes remanescentes da tribo dos Guatós, suas falas e o lugar onde vivem. Em resumo, esse é o desejo básico do filme: registrar estes índios, suas memórias e seu ambiente. Para fazer isso, no entanto, 500 almas precisa passar por algumas das questões fundamentais para a atividade de registro cinematográfico das etnias indígenas; seu próprio título já deixa bastante clara essa consciência histórica. Afinal de contas, o que um filme pode apresentar, inquestionavelmente, é aquilo que é perceptível pelos olhos e ouvidos dos espectadores, é a montagem do registro de sons e corpos em movimento - mas o título do filme não fala dos corpos ou dos sons dos índios que mantêm viva a etnia, e sim dos seus espíritos. Os cerca de quinhentos índios Guatós trazem a herança de um povo que perdeu o seu lugar e seu modo de vida por causa da grande superioridade tecnológica dos invasores de origem européia, mas também porque lhes foi negada socialmente a sua integridade humana. Os índios podiam ser dominados porque, na visão da sociedade que os subjugou, eles não eram seres humanos dignos de respeito, eles não tinham alma. Pois o que o filme de Joel Pizzini se propõe a registrar são justamente essas almas.

A falta de condições de vida levou a tribo a passar por uma constante diáspora, depois de décadas e mais décadas sem ter lugar na mata para viver conforme a sua tradição, nem ter condições financeiras para viver segundo os moldes da sociedade invasora. Estão presentes as várias questões comuns a registros etnográficos e esforços de preservação das identidades indígenas - a perda do espaço, a miscigenação, a memória de mitos poéticos, o uso de diversos objetos. O filme enfrenta a discussão relacionada à memória que se perde entre pessoas de origem miscigenada, filhos de índios com brancos ou negros. Não é simples definir quem é ou quem deixou de ser guató, o que é e o que não é Guató, e 500 almas tem consciência disso. O que o filme faz, então, é buscar pessoas. Ele nos mostra que entre estes remanescentes existem traços do que podemos considerar uma determinada memória coletiva - cada vez mais próxima da extinção. 500 almas se relaciona com a memória, tanto a das falas quanto a dos documentos, mas tira sua força sobretudo do que se vive no presente. A tribo já foi muito maior, mas é dos cerca de quinhentos remanescentes e do lugar em que eles vivem que o filme trata. 500 almas encontra essas pessoas que ainda vivem no ambiente dos Guatós (morando em casas bastante simples, entre a vegetação exuberante e as águas do Pantanal) e, com o registro das suas falas, dos seus objetos, seus rostos e lugares, o filme contrapõe à memória dessa diáspora uma beleza vital, solar.

Essa beleza é buscada por 500 almas - é um gesto que tem método. Os Guatós têm barbas que os diferenciam das outras tribos indígenas, mas o filme não se atém às particularidades do grupo, e sim à relação deles com seu universo. O olhar poderia se tornar depressivo, devido ao risco de desaparecimento da etnia e sua cultura - mas a compreensão histórica que o filme apresenta não se esvazia numa denúncia melancólica. O poeta Manoel de Barros surge em alguns instantes para esclarecer o objetivo: de certa maneira, o filme apresenta a resistência da cultura Guató entre seus remanescentes como uma espécie de poética da existência, um certo espírito comum que é fundamental para cada um daqueles que vivem naquele lugar e carregam aquela memória. Nesse sentido, a tecnologia do cinema, que foi desenvolvida pela cultura colonizadora e é manejada por realizadores originários dessa cultura, acaba cumprindo um papel paradoxal (como já se podia perceber nas fotos e filmes feitos pela Comissão Rondon). Afinal de contas, ao mesmo tempo em que serve como instrumento de dominação, impondo uma lógica de documentação visual em comunidades que não tinham essa tradição até então - portanto, transformando em vários aspectos as relações dessas comunidades com a memória - a tecnologia audiovisual possibilita que o registro em filme não seja reduzido a um gesto de captura, um “roubo de imagens e sons”. Mais do que isso, ele pode representar um movimento de encontro, uma atitude de aproximação, de reconhecimento e de diálogo com o outro. O gesto de registro dessa comunidade indígena não pretende considerar este universo como algo mitificado, fechado a relações externas, pronto para ser reduzi-lo a notas de rodapé - ao contrário, a comunidade é composta por pessoas de verdade que, tendo em comum as características próprias de sua origem, percebem que este universo cultural, que sobrevive como parte deles, se encontra ameaçado pelas dificuldades de sobrevivência e pela diáspora. Essas pessoas sabem, como o filme, que o universo cultural dos Guatós está estruturado a partir do cotidiano junto aos rios, animais e plantas do Pantanal. Assim, 500 almas se deixar tomar pela forte relação entre os Guatós e seu lugar pantaneiro.

E o filme faz uso de uma certa estratégia visual para mostrar essa vivência - há um planejamento da luz, que é usada não apenas para que o filme crie diferenças entre seus ambientes, mas sobretudo para que ele consiga mostrar o lugar e as pessoas com verdade, uma vez que é essa verdade que lhe dá vitalidade. Isso é obtido graças a um trabalho bastante impressionante de uso da luz feito por Mario Carneiro. 500 almas foi um dos últimos trabalhos de Carneiro como diretor de fotografia, e o resultado obtido fez do filme um ponto alto na carreira do fotógrafo, responsável por alguns dos mais notáveis trabalhos de fotografia da história dos filmes brasileiros (como em Arraial do Cabo ou O padre e a moça) e parceiro de Pizzini em outros filmes. 500 almas apresenta uma cuidadosa diferença de iluminação entre cada um dos focos narrativos do filme. O discurso dos colonizadores, declamado por Paulo José (com rápida aparição de Matheus Nachtergaele no final), é filmado sob a luz de um espaço fechado. E os ambientes dos documentos e objetos recolhidos por europeus são retratados com luzes frias na maior parte das vezes. Já o universo pantaneiro dos Guatós é registrado quase que integralmente sob a luz do sol - ao longo de todo o filme, eles sempre são mostrados com luz natural.

A força das imagens é tão forte e chapante que, ao longo do filme, elas podem chegar a parecer dispersivas. De certo modo, isso faz parte de uma estratégia que se constrói pouco a pouco: o registro das pessoas e lugares é tão encantador que se torna mais forte do que poderia ser um mero arranjo narrativo que servisse para relatar de forma convencional a história da etnia. Tratando das almas, esse filme tem a ambição de mostrar que a identidade comum guardada por essas almas deriva da sua relação vital com o lugar físico, a natureza do Pantanal. Para mostrar isso, as falas nos dão uma percepção crítica do que é a cultura guató e do que foi a sua relação com a cultura invasora; as imagens nos fazem imergir naquele universo, elas conseguem transmitir o ambiente inebriante da natureza local. Desse modo, 500 almas obtém um efeito notável, essa forte presença que se instaura para nós do lugar e da memória dessas almas.



artigo publicado na Filme Cultura nº 53, lançada em janeiro de 2011