13/01/2012

Coutinho, o cinema e a gente

Já há alguns anos que muito se fala sobre a dimensão ficcional dos personagens dos documentários de Eduardo Coutinho, sobretudo depois que Jogo de cena a tornou evidente. Esse filme provocou então uma revisão, sob essa perspectiva ficcional, dos trabalhos anteriores do diretor, baseados nos registros de conversas com personagens que ele encontrou a partir das propostas de cada filme. Vistos assim, estes filmes mostravam aspectos bastante próximos do conceito de “auto-ficção”, que tem prosperado na crítica de arte (sobretudo a literária, mas não apenas nela): neles, a força dos depoimentos não se devia necessariamente à sua veracidade, mas à maneira como os personagens-depoentes se construíam através deles para nós espectadores. Porém, é curioso notar que pouco se falou sobre o personagem central composto por estes filmes: Eduardo Coutinho, o documentarista que gosta de conversar. E me parece que pode ser bastante interessante observar a trajetória deste personagem para perceber a trajetória construída por estes filmes, como um projeto que vai se fechando; desse modo, torna-se claro em que medida tem sido necessário redescobrir, nos trabalhos mais recentes (o citado Jogo de cena e o seguinte, Moscou), uma nova motivação a partir da anterior.

Temos então um personagem que caminha e que busca algo: “eu quero histórias”. O que o motiva, o que atiça a sua curiosidade? Por que segue por certos caminhos e não outros? O cineasta Coutinho, na realidade, em entrevistas, já afirmou que se interessa em conhecer o outro, em encontrar pessoas e universos que ainda não conhece. E o que são estes universos que o personagem de cinema procura? Em O fio da memória, o lugar da cultura negra; em Santo Forte, a religiosidade numa favela; em Babilônia 2000, os sonhos de futuro noutra favela; em Edifício Master, as histórias pessoais num prédio de Copacabana; em Peões, as memórias de trabalho e de um movimento entre os operários de uma região; em O fim e o princípio pode-se dizer que procurou conhecer as crenças das pessoas de um pequeno vilarejo do sertão da Paraíba. A cada filme, ele fez o esforço de tornar mais claro o seu projeto de, com o cinema, registrar algo verdadeiro do imaginário daquelas pessoas.

É logo nos primeiros minutos de O fim e o princípio que Coutinho deixa claro que o seu objetivo é o de filmar “histórias” contadas pelos outros. Este é de fato o fim e o princípio: Coutinho esgota o seu projeto justamente porque explicita plenamente a sua motivação. A conversa sobre si das pessoas que ele encontra revela mais do que relatos pretensamente fiéis à realidade do cotidiano - ela revela, à sua maneira de conversa, a natureza destes encontros filmados. Esta natureza não se define apenas pelas características de personalidade dos entrevistados (a que podem se somar a imaginação e o carisma de cada um deles), mas também pela circunstância das filmagens e pelo modo de proceder deste senhor que conversa com eles e parece ser o líder (ou chefe) do grupo que está filmando o tal documentário. Existe um Coutinho para cada um daqueles personagens, que não necessariamente será o Coutinho que narra os filmes e explicita o seu dispositivo logo de início para nós espectadores. E, embora se amalgamem como numa boa auto-ficção, estes dois Coutinhos são diferentes do cidadão que realizou O homem que comprou o mundo, Cabra marcado para morrer, Santo forte e na última década dirigiu alguns dos filmes mais interessantes feitos no Brasil: este senhor é uma pessoa real, um sujeito que segue exposto às circunstâncias do mundo e que foi filmado por ocasião da feitura de seus filmes; os outros dois, no entanto, são personagens de cinema, cristalizados nos filmes. Como qualquer pessoa que se inclui explicitamente ao fazer uma narrativa, como outros realizadores que assumem personas para conduzir seus filmes (o inquieto andarilho Chaplin, o neurótico-falante Woody Allen, o crítico e paródico Godard, o embriagado-falante Domingos Oliveira, entre outros exemplos), o cineasta Eduardo Coutinho criou um personagem a partir de si próprio.

Este personagem é mantido sempre em contraplano, olhando para os personagens depoentes - ele sempre olha para dentro do filme, exatamente para o lugar apontado pela câmera. É evidente que ele não tem seu olhar definido pela visão da câmera, ao contrário, é ele quem determina a direção desse ponto de vista. No entanto, essa escolha se apresenta nos filmes sempre baseada em uma dose de aleatoriedade, de abertura para o registro de falas e gestos que guardem certa espontaneidade. Por outro lado, há um percurso que escolhe temas, lugares e pessoas para encontrar. Será que é possível racionalizar este percurso, definir quais são os motivos que o determinam. Por que ter como pontos de partida a religiosidade, os sonhos de futuro, as memórias dos operários e sindicalistas e todos mais? E por que apontar a câmera para moradores de favelas, de um edifício de Copacabana e de um vilarejo no sertão paraibano? Para conhecer “o outro”, as histórias dos outros, já disse o realizador em entrevistas, tendo afirmado certa vez que pretende que seus filmes documentem “uma relação”, “um encontro entre o cineasta e o mundo”. Mas o que pode nos indicar a escolha justamente destes outros para se relacionar, ao invés de outros mais? Porque, na verdade, a sorte que movimenta o personagem Coutinho se dá, em todos estes filmes, dentro de certos espaços previamente demarcados. Ao mesmo tempo em que ele é condutor e mediador dos filmes, é também o personagem que ao longo deles está constantemente à procura de alguma coisa, algo indefinível que surge na fala, na conversa, no encontro. Será que, ao pensarmos neste personagem Coutinho como produto de uma auto-ficção, uma criação de si mesmo, e examinarmos o seu percurso através destes filmes, podemos perceber indícios do que motiva suas escolhas e, por conseguinte, do que define a sua procura?

Embora essa procura só defina sua forma em Santo Forte, é possível encontrar seus primeiros passos sobretudo em Cabra marcado para morrer, em que já aparece o personagem-Coutinho em sua perambulação - mas também é possível apontar, num olhar em retrospecto, indícios dos interesses que vão predominar nos filmes mais recentes em trabalhos tão diferentes como Teodorico, imperador do sertão, Boca de Lixo, O fio da memória ou Santa Marta, duas semanas no morro: eles já se apresentam como registros imediatos, “encontros entre o cineasta e o mundo”. A partir de Santo Forte, os filmes passam a ter o personagem de Coutinho como aquele que define a cena e a conduz, interessado em descobrir algo que ele prefere não tentar definir com exatidão o que é. Ele encontra personagens pobres ou da classe média baixa, faz perguntas sobre coisas que podem ser significativas para eles (religião, sonhos do futuro, memória do passado). Se Santo Forte podia fazer parecer que o personagem era um investigador focado no tema das religiões e do sincretismo, Babilônia 2000 falava de sonhos e intenções, como que para mostrar que o fascínio do personagem é pela imaginação. Se estes filmes podiam indicar que a força das falas residia nos assuntos escolhidos, Edifício Master indicava que o interesse era apenas escutar e tentar registrar algo indefinível, uma força que as falas encontradas trazem em si. Quando essa força pôde ser mal-vista como bizarrice, motivo de chacota, o caminho foi a viagem em busca das questões e motivações mais básicas, a definição do princípio que norteou o percurso e seu fim.

Em O fim e o princípio, Coutinho está em viagem, numa aventura pelo interior do país. Seu registro agora não apenas procura algo de espontâneo, ele se constrói como tal, a partir de uma viagem sem rumo nem tema inteiramente planejados. Mas um lugar é escolhido, um povoado no sertão da Paraíba - “no coração do Brasil”, diria uma canção. Ali, a câmera foca sobretudo pessoas mais velhas, que fazem algumas reflexões sobre a vida, os momentos memoráveis, a iminência da morte. Ao que parece, Coutinho resolveu viajar em busca de uma razão para fazer suas coisas. Talvez esse filme, ao invés de nos ajudar a entender o que o motivou, seja simplesmente o reconhecimento de que nem ele mesmo, o personagem, sabia o que o motivou a seguir para lá. De toda maneira, há, como em outras situações, a alegria do encontro - o filme registra a consciência, entre todos os personagens, da surpresa do encontro e da reflexão sobre o que os motiva a tentar entender a vida e as coisas do mundo. Um personagem pergunta a ele: “E o senhor, acredita em Deus?”. Ele vacila, não sabe, “é muito complexo”. No entanto, sem ter a sua própria resposta, ele viaja até o vilarejo no interior da Paraíba para ouvir os outros darem suas respostas. Lá, ouve gente que fala de coisas próprias do espírito e que fala também do valor do encontro que é registrado. O que define o gesto do personagem então é ouvir os outros como se, para além da compreensão racional do que é dito, o movimento do encontro desse às falas uma certa luz, algo que ele torna presente com toda a sua força. Talvez então O fim e o princípio represente o fechamento de um projeto porque deixa claro que Coutinho registra suas perambulações porque essa é sua forma de fazê-las vitais; e que, assim, os encontros definem sua força a partir dessa inquietude e do desejo de caminhar.

Uma vez que isso se tornou evidente, Coutinho, o personagem, passa por uma forte transformação. Em Jogo de cena ele não apresenta mais nenhuma mobilidade - ao contrário, tudo parte de uma convocação e os encontros se dão porque as outras personagens vão até ele, a partir de um anúncio de jornal. O personagem então já não é mais um andarilho chapliniano, mas um organizador, alguém que atrai os outros personagens e que, à maneira dos grandes mágicos do cinema, engana o espectador para depois revelar o truque e, assim, indicar a sua motivação. Que é a mesma que O fim e o princípio mostrou a partir das falas sobre a vida e a morte: a crença de que cada fala pode se iluminar com a força do encontro, do instante não-planejado, do espontâneo; e de que o cinema pode captar essa luz que algumas falas têm.
No filme seguinte, Moscou, o personagem abandona inteiramente a maneira de andarilho curioso para adquirir uma aura mabuseana: todo o filme parece se organizar em torno de sua ausência; ele sempre parece estar por trás da cena e, assim, parece ter arquitetado um método que provoca uma constante sensação de falta, de perda. O enredo é claro: uma trupe de teatro, a companhia Galpão, irá ensaiar uma peça de Tchekov, As três irmãs, seguindo as instruções de um diretor convidado, Enrique Diaz. No entanto, Coutinho aparece logo no início para embaralhar esse jogo e transformar o registro dos ensaios num gesto em busca do vazio, uma fala sobre a falta: a falta de uma trama, a falta de uma estratégia, a falta de um autor. Desse modo, em Moscou Coutinho é o personagem que comanda o jogo, dando-nos pistas de suas determinações através das menções a seu nome e da sua ausência do quadro. De certa maneira, ele parece querer mostrar para nós o que acontece quando perdemos de vista a sua presença no contraplano. Talvez seja porque, depois de mostrar o mistério dos encontros com O fim e o princípio, o seu registro da gente em cinema se torna um claro enigma, para usar a expressão do poeta Drummond. O mistério procurado já ficou evidente, mas ele só existe enquanto mantém a sua natureza de mistério, de enigma - então o personagem abre mão da espontaneidade que buscava nos encontros em troca de ter o controle do ambiente (que é o teatro), e só ali ele dá espaço para que possamos ver e ouvir a luz das falas e imaginar em que medida nosso personagem mantém o controle do jogo. Essa talvez seja a mudança fundamental por que o personagem passa com O fim e o princípio: até este ponto e sobretudo nele, Coutinho é um aventureiro que escolhe os caminhos e encontra os outros personagens; em seus últimos movimentos, ele se caracteriza com o jogador que dá as cartas e arrisca a sorte junto a quem se dispõe a encontrá-lo.


artigo publicado na Filme Cultura nº 51, lançada em julho de 2010