23/08/2016

Patinho feio – o negócio da animação

Um esquema eficaz de difusão comercial de filmes precisa ter um modelo de negócio bem definido e sólido para que possa se sustentar prolongadamente. Nos seus últimos anos, foram várias as vezes que Gustavo Dahl mencionou a necessidade de encontrar os modelos de negócio possíveis atualmente para os filmes brasileiros. De certa maneira, é isso que a atual política de apoio aos filmes de animação (com linhas próprias de apoio em alguns editais recentes) pretende conseguir: trata-se de um direcionamento razoavelmente claro de uma estratégia de ocupar um espaço de circulação de filmes. Não é por acaso que uma estratégia assim pode ser implantada atualmente. Isso só é possível por conta das facilidades trazidas pelo uso da tecnologia digital. Durante boa parte do século passado, os filmes de animação podiam ser classificados como patinhos feios no meio da cinematografia brasileira: dependeram exclusivamente do esforço heróico de seus realizadores e, com raras exceções, obtiveram pouca repercussão e reconhecimento. Sendo assim, mesmo que alguns filmes de alto nível tenham sido feitos, a produção não teve como manter sua continuidade. Atualmente, o antigo “patinho feio” promete virar cisne, mostrando um invejável potencial de crescimento graças a várias características - em que o acesso ao público infantil é parte fundamental, por abrir mais possibilidades para a difusão da produção, e se soma às novas formas de produção e difusão trazidas pela tecnologia digital.

Durante a maior parte do século XX, o modelo de negócio estabelecido para o cinema de animação eram os desenhos animados de Hollywood. Naquele momento, mesmo países com cinematografias mais ativas não produziam opções para esses desenhos animados (com algumas exceções notáveis, sobretudo nos países do Leste Europeu). Os cineastas de fora do esquema de Hollywood dedicados à produção de filmes de animação precisavam contar com financiamento do Estado dos seus países, ou então, como já foi dito, produziam seus raros filmes heroicamente – o que, em vários casos, possibilitou instantes notáveis de inventividade. Vale lembrar, inclusive, a produção de belos filmes de animação feitos por cineastas normalmente lembrados entre os maiores do cinema dito experimental e nem sempre associados à história dos filmes animados (como foram os casos, por exemplo, de Stan Brakhage e Marie Mencken). Mas estes eram filmes produzidos de forma independente das grandes empresas, e por isso permaneciam inacessíveis à maior parte do público por falta de difusão. Assim, durante várias décadas não havia nenhuma outra cinematografia produzindo filmes de animação em ritmo constante, só a da indústria norte-americana.

Isso não era por acaso: a produção de animações demandava um esforço trabalhoso que, se não pudesse ser sustentado em ritmo industrial, seria inevitavelmente lento. Em Hollywood, a partir dos anos 1930, o investimento nesse setor, somado à forte estrutura internacional de comércio de filmes, permitiu, como se sabe, o surgimento e consolidação da Disney Company, que com seus filmes açucarados acabou demarcando um padrão de “boa qualidade” de produção. Por outro lado, se os filmes da Disney representam o cinema americano no que ele tem de mais tradicional e careta, a força da indústria dos EUA também possibilitou a produção de alguns filmes de comédia mais furiosos já feitos, sobretudo pelo grupo que marcou os primeiros anos do setor de animação da Warner Bros – os filmes feitos por Fred “Tex” Avery, Isadore “Friz” Freleng, Charles “Chuck” Jones, Robert Clampett e outros nas décadas de 30 e 40 -, mas também em produções dos anos seguintes que eram claramente influenciadas por aquele grupo (como os desenhos do personagem Pica-pau) ou mesmo produzidas por eles separadamente (como a Pantera Cor-de-Rosa, que Friz Freleng produziu, o período de Tom&Jerry dirigido Chuck Jones e, acima de todos, os incríveis filmes de Tex Avery para a MGM entre o final dos anos 1940 e meados da década seguinte). Quando se afirma que esses filmes dependiam de uma estrutura industrial, isso significa que seus realizadores recebiam salários para produzir; tinham material disponível regularmente; tinham certeza (na verdade, obrigação) de produzir filmes que seriam imediatamente distribuídos pelo mundo afora. E tinham inclusive alguns colaboradores de alto nível produzindo no mesmo ritmo: cada um dos filmes da Warner ganhava uma trilha original composta e regida por Carl Stalling, enquanto os da MGM, fossem os de Avery ou os da dupla Hanna&Barbera, contavam com trilhas compostas por Scott Bradley; além disso, é conhecido o alto nível das dublagens dos filmes da Warner, feitas quase solitariamente por Mel Blanc - responsável por dar voz a personagens como Pernalonga, Patolino e muitos outros.

Essa estrutura toda de produção e comércio, característica da penetração do cinema dos EUA no mundo, permitiu que os desenhos animados de Hollywood marcassem a memória de uma era do cinema e possibilitou também, que nos anos seguintes, a partir do final dos anos 1950, a produção migrasse rapidamente para a televisão. Essa mudança de contexto provocou também uma mudança de modelos de negócio – o que, nas décadas seguintes, permitiu alguma transformação no panorama e o aparecimento de produções feitas fora dos EUA. Já não se tratava mais de exibir filmes curtos antecedendo longas em sessões para o grande público, tal como acontecera com boa parte das produções das décadas anteriores. Se os ainda raros filmes de animação de longa metragem da indústria (os “desenhos animados”) focavam sobretudo o público infantil, a chegada da televisão intensificou isso consideravelmente. O público infantil sempre demonstrou interesse em animações e em rever seguidamente os mesmos filmes, ou variações dos mesmos – ou seja, era o foco ideal para uma indústria. Sua tolerância permitia inclusive que a realização do processo de desenhos não fosse tão cuidadosa, feita quadro-a-quadro, o que simplificava a produção dos filmetes. Se Hollywood já trazia de décadas anteriores essa estrutura para manter a hegemonia dos espaços, a mudança de meios de difusão e a consequente definição de um novo modelo de negócios permitiu que diversos focos de produção se consolidassem nas décadas seguintes - fosse através de filmes feitos direto para a TV, ou fosse conciliando isso ao lançamento nos cinemas, mais tarde em VHS e depois em DVD. Um caso notável aqui no Brasil foi o das produções de Maurício de Sousa nos anos 1980 - mais tarde interrompidas pela crise histórica da produção audiovisual brasileira no início dos anos 1990. Mas na TV brasileira de anos passados foi possível observar também os casos de outros países que estabeleceram produções contínuas de animação distribuídas internacionalmente em canais de TV, como por exemplo os filmes da série Pingu, criada em meados dos anos 1980 em co-produção Suíça/Inglaterra. Isso continuou a ocorrer desde então: por exemplo, nos últimos anos tornou-se bastante popular a série do personagem Pocoyo, co-produção Espanha/Inglaterra, e mais recentemente a série Peixonauta, uma produção brasileira, tem obtido notável sucesso em TVs de outros países. Se Pingu era feito ainda de forma bastante artesanal em seus primeiros anos, com o uso de bonecos de massa animados quadro-a-quadro, estas produções recentes são inteiramente baseadas na tecnologia digital – o que permite uma escala de trabalho bem mais simples do que aquela necessária nas décadas em que não havia alternativa constante à produção hollywoodiana.

No entanto, novas mudanças vêm acontecendo rapidamente com os modelos de negócios. As platéias de cinema dos dias de hoje se concentram cada vez mais em menos filmes, conforme se pode perceber pelas estratégias de lançamento dos filmes mais caros, com números de cópias inimagináveis décadas atrás – em que eram vendidos muito mais ingressos, como se sabe. Se as pessoas vão menos ao cinema e, quando vão, procuram ver os mesmos filmes, Hollywood soube se adaptar para esse modelo de comércio “para toda a família” desde meados dos anos 1980. Esse direcionamento amplo logo foi bem realizado pelos filmes de animação, sobretudo depois da parceria estabelecida entre a Disney e a empresa Pixar, com a produção do primeiro Toy Story (lançado em 1995) – cujo nível de sofisticação (não apenas técnico) demorou alguns anos a ser igualado mesmo na indústria norte-americana e acabou se tornando o modelo do que veio a se estabelecer entre os mais bem sucedidos lançamentos cinematográficos de animação. Se o grande público das salas de cinema ficou ainda mais concentrado e permanece afeiçoado ao modelo hollywoodiano, abrindo raras brechas para exceções eventuais aqui e acolá, e o espaço das TVs vem pouco a pouco se tornando mais plural com os efeitos da Lei 12.485, hoje um novo modelo de negócios surgiu para se somar ao mercado de DVDs ou, mais provavelmente, tomar o lugar dele: estou falando, evidentemente, da difusão dos filmes através de downloads pela internet.

Antes os filmes podiam ser vistos em telas de salas de cinema; depois, nas telas dos aparelhos de TV; agora, com o fortalecimento dos novos modelos de negócio, os filmes podem ser vistos nas telas de computadores, tablets e celulares, seja através de sites como o youtube ou a partir de aplicativos diversos que podem ser comprados nos sites das grandes corporações. Assim, já é possível que pais interessados em mostrar novos “desenhos animados” para seus filhos baixem em seus tablets um aplicativo como, por exemplo, o PlayKidTV. Este aplicativo, apresentando um trem comandado pelo cachorrinho Lupi, traz em seus “vagões” várias séries de filmes de animação produzidas no Brasil (em certos casos, em co-produções internacionais), como A Galinha Pintadinha, Meu Amigãozão, Luan Cometinha, Pequerruchos ou os palhaços Teleco e Teco - todas elas com vários episódios disponíveis para download, nos quais tratam de transmitir cantigas tradicionais e mensagens ecológicas para entreter os pirralhos. Além da programação dos canais de TV (que ainda são o mais popular dos meios de difusão da produção audiovisual – sobretudo os canais abertos), também estes espaços de difusão criados pela difusão on-line estão na mira dos atuais incentivos à produção.  Esses novos modelos ainda precisam mostrar solidez diante do dilema da sustentação financeira, já habitual a tudo que se relaciona à Internet e, mais ainda, a tudo que se relaciona com produção de filmes no Brasil. Mas, tanto por serem novos (com o potencial de substituir os DVDs a curto prazo) como por poderem chegar diretamente ao público infantil, tradicionalmente mais aberto aos filmes brasileiros, são modelos que parecem promissores. Resta agora esperar para ver se, com a consolidação da atividade produtiva dos filmes brasileiros de animação, essa produção conseguirá ter outras qualidades além da sustentabilidade comercial.


Texto publicado na Filme Cultura nº 60, de julho de 2013