23/08/2016

Adaptação, recriação – os muitos caminhos das adaptações de textos teatrais no cinema

O cinema, como se sabe, herdou do teatro vários termos e conceitos usados constantemente, a começar pela própria idéia de mise-en-scène. Apesar disso, o uso de procedimentos intitulados “teatrais” adquiriu conotação negativa para muitas pessoas - não apenas entre cinéfilos, mas também entre críticos, teóricos e os próprios cineastas. Por várias décadas, desde o centro da indústria hollywoodiana até um oposto extremo como o cinema de Dziga Vertov, o termo teatral se tornou um sinônimo de restrição severa a qualquer filme em questão. Isso durou muito tempo e de certa maneira ainda acontece. Talvez já esteja parcialmente superado, mas não de todo.

A tradição da passagem de obras vindas originalmente do teatro para o cinema acabou ganhando uma marca em consequência disso. Era preciso tirar das peças o ranço “teatral”, dar a elas um olhar e um ritmo cinematográficos. Durante muitos anos, as adaptações feitas dos textos originalmente teatrais para cinema precisaram dar resposta a esta questão. Por um lado, poderia ser, por exemplo, procurando desenvolver certos aspectos considerados “de cinema” no texto original (por exemplo, cortando diálogos longos ou acrescentando várias mudanças de cenário). Por outro lado, poderia ser tomada uma atitude inteiramente negativa à questão, assumindo a origem teatral e trazendo ao filme uma ambígua sensação de não-realismo - como se assumir e incluir a visualidade e os tempos do teatro, ao tornar evidente a origem o discurso narrativo, não trouxesse a percepção de realidade e sim de fantasia. Por exemplo, isso acontece no MacBeth de Orson Welles, lançado em 1948. Neste filme isso aparece de forma bastante clara: certos aspectos tipicamente teatrais - desde o uso de cenários sem o mimetismo da profundidade de campo (numa produção do diretor de Cidadão Kane, que procedera de forma oposta, trabalhando com a profundidade) ao recurso da analogia final do boneco decapitado, para mencionar apenas dois exemplos - dão ao espectador indícios visíveis da base fantasiosa da narrativa.

Em A Herança, adaptação do clássico shakespeareano Hamlet protagonizada por David Cardoso que Ozualdo Candeias dirigiu em 1970, acontece um efeito similar a partir de um procedimento oposto ao do filme de Welles. A Herança traz a trama de Shakespeare para o interior agrário paulista e apresenta um procedimento bastante radical: praticamente todas as falas são substituídas por sons de animais, tais como galinhas, vacas e cavalos (exceto dois trechos: aquele em que, no texto original, havia uma peça dentro da peça contando a trama de assassinato, que o filme substitui por dois violeiros cantadores; e a célebre frase “to be or not to be”, que no filme é dita em inglês com muito eco). Este gesto inusitado de trocar as vozes pelos sons dos bichos é algo fundamentalmente cinematográfico – somente o cinema pode fazer isso, já que o som pode ser editado por inteiro após a filmagem. Dessa maneira expressivamente irônica, A Herança nos faz lembrar que, embora o cinema seja uma arte em que a união entre som e imagem na maior parte das vezes só é usada de maneira mimética, de modo que os sons reproduzidos se referem às imagens que vemos na tela, qualquer filme pode romper com esse pretenso realismo ao tornar clara a disjunção destes seus elementos fundamentais. Diante das “falas” ditas por pássaros, vacas e cachorros, ao espectador só resta conhecer a fábula sem sustentar qualquer esforço ilusório. Ao contrário, nós somos obrigados pelo filme a lidar com a sua ironia explícita e agressiva na relação com a obra clássica.

Lembrei destes filmes porque fiquei a me questionar sobre o que se pretende entender como “procedimento cinematográfico”, em oposição ao “teatral”. Não se tratam de categorias estanques – nem dessa forma negativa, em que aquilo que faz parte de um reino não pode pertencer ao outro, nem na forma positiva, em que tudo de um reino pode ser absorvido pelo outro. A questão fundamental para as adaptações não se reduz a formatar de modo maquinal as diferenças características de linguagem – por exemplo, como já disse, reduzindo os diálogos ou fazendo as cenas trocarem bastante de local, para sugerir um “dinamismo” pretensamente cinematográfico. Também não se trata de recorrer ao simplismo de justificar tudo pelas “circunstâncias” ou pelas características do texto original. Dentro de circunstâncias de produção bastante semelhantes, as adaptações do teatro para o cinema podem variar consideravelmente. Usando novamente o clássico de Shakespeare como exemplo, não poderiam ser mais diferentes entre si duas versões bem sucedidas de Hamlet como a versão de Ozualdo Candeias e a produção dirigida e interpretada por Kenneth Branagh.

 Isso não significa que qualquer modo de adaptação pode ser bem sucedido; nem tampouco que bastaria deixar evidentes alguns traços teatrais para garantir um bom resultado com lustro “artístico”. Lembro-me, por exemplo, do caso notável de Marat-Sade, peça de Peter Weiss que Peter Brook adaptou para o cinema em um filme de 1967. Trata-se de um texto original bastante forte, que recria a cena lendária em que o Marquês de Sade, encarcerado no hospício, encena uma peça de sua autoria sobre a morte do revolucionário Jean-Paul Marat tendo como atores os próprios detentos do manicômio. Na versão teatral, a presença física e a percepção da performance coletiva poderiam garantir ao público a sensação própria do ambiente do hospício; na versão cinematográfica, esta sensação de ambiente através da performance coletiva se perde, esvaziando a força dessa espécie de “filtro” que é a encenação pelos loucos. O filme parece ter consciência desse problema e tenta contorná-lo falseando a quebra de quarta parede, nos mostrando uma platéia que assiste calada à apresentação dos loucos, que deveria servir como comentário crítico à história de Marat que nos é contada. E esta, por sua vez, acaba sendo mostrada como um mistério para iniciados, permanecendo obscura dentro da narrativa.

É possível alegar que as obras artísticas podem ser exigentes com seu público, mas a versão cinematográfica termina por esvaziar o contexto histórico que o texto sugeria com muita sutileza ao unir o respeito ao espaço cênico à sucessão de falas que cansam por excesso de barulho. O encarcerado Sade representava ao mesmo tempo uma personificação (pelo que se sabe da sua vida) e uma crítica (pelo teor dos seus escritos) à decadência do ambiente aristocrático que a Revolução Francesa veio terminar; ele se tornara, por outro lado, um artista considerado subversivo pelo que escrevia, tanto pela constância de narrar atos sexuais em profusão, muitas vezes violentos e bizarros, quanto pelo ataque frontal aos princípios morais do iluminismo. Seu olhar para Marat não poderia ser senão cruel – afinal de contas, tratava-se de, com a ajuda dos seus atores loucos, um feroz crítico (aprisionado, sobrevivente e irônico) contando a história do revolucionário moralista e caluniador que havia sido assassinado e se tornara um mártir da revolução. Como consequência desse esvaziamento dos dois planos narrativos (a história de Marat é apenas sugerida, a subtrama crítica do hospício não ganha peso), o movimento do filme parece estar engessado, apesar do uso constante de certos elementos “de cinema” - por exemplo, os quadros são montados com uma área de foco restrito e a cena desfocada ao fundo; também são muito usados planos próximos e imagens ligeiramente distorcidas por lentes grande-angulares. Seria injusto dizer que a versão cinematográfica de Marat-Sade falha inteiramente, mas o que se perde pelo caminho dá a sensação de que ela ficou bastante aquém da encenação a que serviu de registro.

 Num caso diferente, este uso de um “filtro” que uma trama cria sobre outra tem bons resultados em Tio Vanya em Nova York, versão do clássico de Tchecov dirigida por Louis Malle. Talvez porque, neste caso, a trama que serve de comentário ao texto original é ela mesma de natureza mimética e auto-referente: a cena nos mostra atores ensaiando a peça. Como nós sabemos que são de fato atores, essa ambientação ganha força, ao contrário do hospício do filme de Peter Brook. Ou podemos atribuir isso, é claro, às características diferentes das duas peças, por serem os personagens de Tio Vanya delineados com mais clareza e, por isso, capazes de manter sua força no cinema (ou simplesmente por serem construídos com mais densidade). O efeito notável da versão de Malle é que, por ser despojado de qualquer esforço mimético, sem procurar encantar o espectador com cenários e figurinos pretensamente realistas, Tio Vanya em Nova York consegue realçar o trabalho dos seus atores na construção dos personagens.

Outro caso interessante de superação dos riscos de uma adaptação de um texto teatral para o cinema foi aquele posto em prática por Al Pacino no seu filme Ricardo III - um ensaio, a partir de outra peça clássica de Shakespeare. Ao contrário do que sugere o título em português, Pacino não repete o procedimento do filme de Malle e registra ensaios da peça; na verdade, sua estratégia é de misturar às falas da peça (ora encenadas com figurino, ora mostradas em ensaios) entrechos documentais ou, às vezes, falsamente documentais – não apenas os atores podem discutir a peça, como podem nos apresentar informações relevantes pela boca de historiadores, críticos e até mesmo de um mendigo (ou talvez atores interpretando historiadores, críticos e um mendigo). Se essa estratégia narrativa hoje se tornou comum, em 1996 ela ainda trazia uma originalidade que dá força ao filme. Recriando a trama desta maneira, o filme consegue apresentar panoramas críticos tanto das representações teatrais de Shakespeare quanto do contexto histórico do protagonista Ricardo III - e, assim, reencontrar o vigor do texto original nessa versão cinematográfica.

A conclusão é que só podemos definir o procedimento da adaptação, por óbvio que seja, a uma escolha artística, um gesto que precisa ter sentido, coerência e expressividade. Sem alcançar esses objetivos, é possível realizar todos os procedimentos já clichês – como reduzir as falas, cortar o número de personagens e as subtramas, acrescentar mais cenários, simplificar as tramas, dar relevo aos aspectos amorosos ou aos de conflito explícito entre personagens – e nada disso será garantia para uma boa transição de uma linguagem a outra, uma recriação de uma obra. E, por outro lado, mesmo um registro que torne bastante explícitos os aspectos “teatrais” pode chegar a um resultado cinematográfico bastante singular e bem-sucedido, se encontrar nessa escolha força suficiente para se sustentar por si só (e não como mero registro de outra linguagem). Além do Tio Vanya de Louis Malle, esse também é o caso, por exemplo, do filme The Brig, de Jonas Mekas, comentado por Juliano Gomes em outro artigo desta edição. Ou, num exemplo radical, o filme português Branca de Neve, de João César Monteiro, versão cinematográfica de uma peça sobre os dias seguintes da personagem dos contos-de-fada, após ter sido acordada pelo seu príncipe, que se revela não muito doce. Na sua adaptação para o cinema, o filme de Monteiro, na quase totalidade dos seus 75 minutos, nos mostra somente uma tela preta com diálogos em off.

 No entanto, há um determinado aspecto do espetáculo teatral a que o cinema pode se referir, mas não tem como se apropriar por inteiro (exceto nos casos raros de experimentações de junção de linguagens): é a presença física da apresentação, como se sabe. Um filme poderá registrar o trabalho de um ator com atenção a detalhes que poderiam passar despercebidos numa apresentação ao vivo; no entanto, essa apresentação poderá contar com a surpresa do instante seguinte não-previsto – ao contrário dos registros fílmicos. Dessa maneira, talvez possamos compreender como um dos grandes filmes sobre teatro – Noite de estréia, de John Cassavettes – é também uma afirmação sobre o aspecto específico da impressão de espontaneidade no cinema. Na primeira versão de Shadows, seu primeiro filme, Cassavettes, havia usado o recurso inovador de criar parte das cenas junto com os atores no set de filmagem – “um filme improvisado”, era assim que ele era apresentado em off. Posteriormente, o diretor rodou novas cenas com roteiro pré-escrito e remontou o filme por inteiro (ou talvez fosse mais justo dizer que fez um novo filme). Por causa disso, foi bastante criticado sobretudo por Jonas Mekas, que havia tomado a versão anterior do filme como um cavalo de batalha a ser defendido com todas as forças por sua originalidade e frescor. Em Noite de estréia, quase vinte anos depois do episódio de Shadows, o filme nos mostra a trajetória de crise da atriz Myrtle, sua personagem principal, até o momento em que ela participa da estreia da peça a que o título se refere – quando, no auge do nervosismo, a atriz resolve mudar uma cena: ela começa a improvisar repentinamente, desconcertando seu companheiro de palco. Que, para nossa surpresa, dá continuidade ao jogo. Neste momento, encenando um improviso de atores num palco, o filme de Cassavettes oculta e revela essa distância entre o teatro e o cinema. A distância de tempo entre o registro fílmico e sua exibição torna impossível o fundamento espontâneo da improvisação: numa sessão tradicional de cinema, o filme que está sendo apresentado já foi pronto e ninguém intervém na hora sobre ele. Para recriar a percepção do instante único de criação num público de cinema, é preciso narrar, inventar uma nova encenação, a apresentação de um acontecimento que faça uso da ilusão narrativa para sugerir esta presença imediata.

De certa maneira, a compreensão dessa distância fundamental entre os espetáculos é que dá o tom de cada forma de adaptação. O movimento de um texto original, com seus personagens e tramas, de um lugar artístico para outro depende, na sua essência, da compreensão desse distanciamento na relação entre a obra e a platéia. A riqueza própria de cada texto vai ser decisiva para as escolhas a serem tomadas, para o gesto de recriação cinematográfica de uma proposta originada no teatro. Talvez agora já seja evidente que qualquer proposta de regras para adaptações se mostra furada, uma vez que as características de cada texto escolhido são determinantes. Ainda é preciso apontar, de toda maneira, que é através desses gestos decisivos das formas de uma adaptação que podem se tornar mais notáveis tanto os aspectos, digamos, universais de um texto (universais inclusive na capacidade de manter sua força em outra arte) quanto alguns dos aspectos mais ricos de ambas as artes por onde ele transita.


Publicado na Filme Cultura nº 56, de junho de 2012.