23/08/2016

E agora, Ricardo?

Ricardo Miranda



Em anos passados você dirigiu diversos documentários para a televisão, em parcerias com a TV Cultura, e mais recentemente tem produzido filmes por conta própria, como foi o caso de Djalioh. Como você observa atualmente as condições de produção?

Ricardo Miranda: Olha, por um lado é menos complexo produzir, graças à tecnologia digital. E eu filmei pouco em película, desde cedo fui um entusiasta do vídeo - até por ter trabalhado na TV ainda jovem. Meu primeiro longa, Assim na tela como no céu, de 1991, já misturava trechos em vídeo e em película. Por outro lado, a produção em vídeo não altera as questões de produção com que os filmes se defrontam. Elas são as mesmas: figurino, cenários, fotografia e tudo mais. Não adianta pegar uma câmera e ficar balançando ela na frente de alguém. Mas essa tecnologia facilita muito na hora de finalizar o trabalho. No caso do Djalioh, eu marquei a luz e cor do filme na minha casa, com a TV conectada ao computador por um cabo HDMI. O programa que eu usei pode ser um pouco mais simples do que aquele usado pelas empresas finalizadoras, mas o resultado final em vídeo é o mesmo. Nesse caso, o que é importante não é a máquina, mas o homem, a consciência que aperta o botão. Não adianta nada ter uma grande máquina e usar sem pensar.

O embate que continua difícil é distribuir os filmes. É possível exibir em festivais e cineclubes, e existe o Canal Brasil, que exibe a nossa produção na TV a cabo, mas chegar aos cinemas é difícil. Parece que a gente faz filmes para duas ou três pessoas, mas eu quero que os filmes sejam vistos pelas multidões.


E como você vê o panorama atual da produção brasileira?

Tem uma coisa estimulante, que é essa geração nova que está se formando com a descoberta de um outro cinema. Eu dou aulas, então eu também tomo parte diretamente nessa ação de mexer com a cabeça dos caras, para não ficarem restritos a um cinema americanóide ou globonóide, restritos a essa discussão sobre “mercado”. Para mim, mercado é lugar de comprar banana. E é legal ver a garotada que consegue tirar isso da cabeça e pensar cinema de um jeito diferente. Eu fiz uma experiência recente que foi muito boa, quando apresentei a uma turma os filmes do Carmelo Bene. Eles nunca tinham ouvido falar dele, que não teve nenhum filme lançado no Brasil, mas é uma figura fundamental da dramaturgia do século XX e fez a cabeça de muita gente – do Pasolini e do Glauber quando esteve na Itália, por exemplo. Vasculhando o Youtube, meus alunos encontraram alguns filmes dele e puderam montar vídeos a partir do que acharam, além de produzir textos sobre o trabalho dele. A internet permite isso. Há algum tempo, Carmelo Bene só podia ser conhecido por meia dúzia de pessoas no Brasil, eu só conseguia conversar sobre o trabalho dele com o Julio Bressane.

Com isso, essa garotada percebe a porcaria que se está fazendo atualmente no Brasil e tenta fazer outra coisa. Conhecendo os filmes do Apichatpong Weerasethakul ao invés de Woody Allen, eles podem fazer coisa melhor. Além disso, essa nova geração se aproximou de cineastas que já faziam um outro cinema – como Luís Rosemberg, Andrea Tonacci e outros – e isso mudou o panorama. Não importa o nome, hoje existe esse outro cinema, um cinema de invenção. Não um cinema “de arte”, mas com arte no seu fazer.

Após Djalioh, seu segundo longa de ficção, quais são seus próximos projetos?

Depois de anos dedicado a fazer documentários, eu estou tateando a ficção novamente. O meu primeiro filme, um curta de 1969 chamado A Ceia, era uma ficção. Era sobre um homem que era castrado num ritual sádico, que obviamente remete à tortura, à ditadura e ao contexto da época. A castração fazia dele um Cristo, com o uso de uma inversão de negativo para dar essa impressão. Depois, nos meus documentários, a ficção estava sempre dentro deles - eu sempre prego que o bom documentário é aquele em que é tudo mentira. Sobre o meu novo projeto, eu quero fazer um duplo do Djalioh. É a partir do segundo conto do Flaubert, chamado Virtude e Paixão, e o filme vai se chamar Paixão e Virtude, com essa pequena inversão dialética. Os dois filmes vão ser duplos que se completam, porque falam de sexualidade e brutalidade, a partir de contos que o Flaubert escreveu em outubro de 1837 e dezembro de 1837, aos 16 anos. Esse segundo conto ao mesmo tempo antecipa Madame Bovary e remete à história de Medéia: é uma mulher que mata o marido e os filhos em busca do desejo, da paixão pelo amante. É uma manifestação de histeria, um diagnóstico antecipado pelo Flaubert aos 16 anos de idade, décadas antes do Freud.

Além de cineasta, você é um dos principais montadores do Brasil nas últimas décadas. Qual a sua impressão dos usos da montagem nos filmes feitos nos anos recentes?

Nos filmes ditos de mercado, basicamente se usa a lógica do raccord, que o Jean-Marie Straub já definiu como uma idiotice. Eu concordo um pouco isso, eu gosto de cortes que quebrem o raccord tradicional, aquele que parece ter sido feito com duas câmeras, o raccord das telenovelas. A TV inutilizou o raccord. A grande vantagem das facilidades digitais é poder praticar livremente, como o Méliès já fazia. Méliès é que foi o grande cineasta, foi ele que criou o cinema de invenção. Isso aparece no Fausto do Sokurov, com usos de montagem que não se restringem ao corte do plano – a montagem inclui também efeitos como inverter a imagem. Isso tudo já era feito pelo Méliès – só que agora a gente pode fazer isso apertando duas teclas do computador. Isso não quer dizer que todo mundo saiba fazer. A máquina ajuda a fazer, mas quem faz é a cabeça.




FILMES FARÓIS

Sem ordem, sem documento, sem saber como me vieram os dez filmes.

1. Três cantos para Lenin – É o filme em que Dziga Vertov põe em prática teorias produzidas desde os anos 1920, com total emoção. Fico extasiado cada vez que assisto.

2. O velho e o novo (A linha geral) – Os filmes de Eisenstein são filmes de cabeceira. Este não paro de ver e rever. A sequência da procissão transcende as teorias construtivistas do cinema. Em sala de aula é fundamental. Vi a primeira vez na cinemateca do Mam.

3.  Uma visita ao Louvre, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub -  Enquadramentos   rigorosos e precisos vibram com cores e formas da pintura. Um filme de palavras. Extraordinário.

4. Fausto, de Sokurov,  é um daqueles filmes “que transformam você para sempre”.Um filme entre o pênis e a vagina. o conhecimento e o obscurantismo; Fenomenal  direção. ver e rever todos os dias. finalmente cinema, êxtase.

5. Crônica de Anna Magdalena Bach – Fenomenal filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Citando Straub, “uma das tarefas é achar imagens que não bloqueiem a imaginação do espectador”.

6. O leão de sete cabeças – Extraordinário filme de Glauber Rocha. Aqui Glauber engendra “um incêndio simbólico para fazer a libertação brotar das cinzas do ícone deposto.”

7. Mal dos trópicos, de Apichatpong Weerasethakul - Narrativa única municiada por estranha mitologia da Tailândia. Tradição/invenção; lenda/fato; sensação/história.

8. Medéia, de Pier Paolo Pasolini - Ritos, beleza, cinema. Instintos, paixões e sentimentos. Um filme que te acompanha no dia após dia.

9. Di-Glauber – Pequeno, grande, enorme, fundamental filme.
10. Número dois, de Jean-Luc Godard - Godard após os experimentos do Groupe Dziga Vertov. Cotidiano e sexualidade. Ver revendo. ReveЯ.




Entrevista publicada na Filme Cultura nº 57, de outubro de 2012.