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Ricardo Miranda |
Em anos passados você dirigiu diversos documentários para a televisão, em parcerias com a TV Cultura, e mais recentemente tem produzido filmes por conta própria, como foi o caso de Djalioh. Como você observa atualmente as condições de produção?
Ricardo Miranda: Olha, por um lado é menos complexo produzir, graças à
tecnologia digital. E eu filmei pouco em película, desde cedo fui um entusiasta
do vídeo - até por ter trabalhado na TV ainda jovem. Meu primeiro longa, Assim na tela como no céu, de 1991, já
misturava trechos em vídeo e em película. Por outro lado, a produção em vídeo
não altera as questões de produção com que os filmes se defrontam. Elas são as
mesmas: figurino, cenários, fotografia e tudo mais. Não adianta pegar uma
câmera e ficar balançando ela na frente de alguém. Mas essa tecnologia facilita
muito na hora de finalizar o trabalho. No caso do Djalioh, eu marquei a luz e cor do filme na minha casa, com a TV
conectada ao computador por um cabo HDMI. O programa que eu usei pode ser um
pouco mais simples do que aquele usado pelas empresas finalizadoras, mas o
resultado final em vídeo é o mesmo. Nesse caso, o que é importante não é a
máquina, mas o homem, a consciência que aperta o botão. Não adianta nada ter
uma grande máquina e usar sem pensar.
O embate que continua difícil é distribuir os filmes. É
possível exibir em festivais e cineclubes, e existe o Canal Brasil, que exibe a
nossa produção na TV a cabo, mas chegar aos cinemas é difícil. Parece que a
gente faz filmes para duas ou três pessoas, mas eu quero que os filmes sejam
vistos pelas multidões.
E como você vê o
panorama atual da produção brasileira?
Tem uma coisa estimulante, que é essa geração nova que está
se formando com a descoberta de um outro cinema. Eu dou aulas, então eu também
tomo parte diretamente nessa ação de mexer com a cabeça dos caras, para não
ficarem restritos a um cinema americanóide ou globonóide, restritos a essa
discussão sobre “mercado”. Para mim, mercado é lugar de comprar banana. E é
legal ver a garotada que consegue tirar isso da cabeça e pensar cinema de um
jeito diferente. Eu fiz uma experiência recente que foi muito boa, quando
apresentei a uma turma os filmes do Carmelo Bene. Eles nunca tinham ouvido
falar dele, que não teve nenhum filme lançado no Brasil, mas é uma figura
fundamental da dramaturgia do século XX e fez a cabeça de muita gente – do
Pasolini e do Glauber quando esteve na Itália, por exemplo. Vasculhando o Youtube,
meus alunos encontraram alguns filmes dele e puderam montar vídeos a partir do
que acharam, além de produzir textos sobre o trabalho dele. A internet permite
isso. Há algum tempo, Carmelo Bene só podia ser conhecido por meia dúzia de
pessoas no Brasil, eu só conseguia conversar sobre o trabalho dele com o Julio
Bressane.
Com isso, essa garotada percebe a porcaria que se está
fazendo atualmente no Brasil e tenta fazer outra coisa. Conhecendo os filmes do
Apichatpong Weerasethakul ao invés de Woody Allen, eles podem fazer coisa
melhor. Além disso, essa nova geração se aproximou de cineastas que já faziam
um outro cinema – como Luís Rosemberg, Andrea Tonacci e outros – e isso mudou o
panorama. Não importa o nome, hoje existe esse outro cinema, um cinema de
invenção. Não um cinema “de arte”, mas com arte no seu fazer.
Após Djalioh, seu segundo longa de ficção, quais são
seus próximos projetos?
Depois de anos dedicado a fazer documentários, eu estou
tateando a ficção novamente. O meu primeiro filme, um curta de 1969 chamado A Ceia, era uma ficção. Era sobre um
homem que era castrado num ritual sádico, que obviamente remete à tortura, à
ditadura e ao contexto da época. A castração fazia dele um Cristo, com o uso de
uma inversão de negativo para dar essa impressão. Depois, nos meus
documentários, a ficção estava sempre dentro deles - eu sempre prego que o bom
documentário é aquele em que é tudo mentira. Sobre o meu novo projeto, eu quero
fazer um duplo do Djalioh. É a partir
do segundo conto do Flaubert, chamado Virtude
e Paixão, e o filme vai se chamar Paixão
e Virtude, com essa pequena inversão dialética. Os dois filmes vão ser
duplos que se completam, porque falam de sexualidade e brutalidade, a partir de
contos que o Flaubert escreveu em outubro de 1837 e dezembro de 1837, aos 16
anos. Esse segundo conto ao mesmo tempo antecipa Madame Bovary e remete à história de Medéia: é uma mulher que mata o marido e os filhos em busca do
desejo, da paixão pelo amante. É uma manifestação de histeria, um diagnóstico
antecipado pelo Flaubert aos 16 anos de idade, décadas antes do Freud.
Além de cineasta, você
é um dos principais montadores do Brasil nas últimas décadas. Qual a sua
impressão dos usos da montagem nos filmes feitos nos anos recentes?
Nos filmes ditos de mercado, basicamente se usa a lógica do raccord, que o Jean-Marie Straub já
definiu como uma idiotice. Eu concordo um pouco isso, eu gosto de cortes que
quebrem o raccord tradicional, aquele
que parece ter sido feito com duas câmeras, o raccord das telenovelas. A TV inutilizou o raccord. A grande vantagem das facilidades digitais é poder
praticar livremente, como o Méliès já fazia. Méliès é que foi o grande
cineasta, foi ele que criou o cinema de invenção. Isso aparece no Fausto do Sokurov, com usos de montagem
que não se restringem ao corte do plano – a montagem inclui também efeitos como
inverter a imagem. Isso tudo já era feito pelo Méliès – só que agora a gente
pode fazer isso apertando duas teclas do computador. Isso não quer dizer que
todo mundo saiba fazer. A máquina ajuda a fazer, mas quem faz é a cabeça.
FILMES FARÓIS
Sem ordem, sem documento, sem saber como me vieram os dez
filmes.
1. Três cantos para
Lenin – É o filme em que Dziga Vertov põe em prática teorias produzidas
desde os anos 1920, com total emoção. Fico extasiado cada vez que assisto.
2. O velho e o novo
(A linha geral) – Os filmes de
Eisenstein são filmes de cabeceira. Este não paro de ver e rever. A sequência
da procissão transcende as teorias construtivistas do cinema. Em sala de aula é
fundamental. Vi a primeira vez na cinemateca do Mam.
3. Uma visita ao Louvre, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub - Enquadramentos rigorosos e precisos vibram com cores e formas da pintura. Um filme de palavras. Extraordinário.
4. Fausto, de
Sokurov, é um daqueles filmes “que
transformam você para sempre”.Um filme entre o pênis e a vagina. o conhecimento
e o obscurantismo; Fenomenal direção.
ver e rever todos os dias. finalmente cinema, êxtase.
5. Crônica de Anna
Magdalena Bach – Fenomenal filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.
Citando Straub, “uma das tarefas é achar imagens que não bloqueiem a imaginação
do espectador”.
6. O leão de sete cabeças
– Extraordinário filme de Glauber Rocha. Aqui Glauber engendra “um incêndio
simbólico para fazer a libertação brotar das cinzas do ícone deposto.”
7. Mal dos trópicos,
de Apichatpong Weerasethakul - Narrativa única municiada por estranha mitologia
da Tailândia. Tradição/invenção; lenda/fato; sensação/história.
8. Medéia, de Pier
Paolo Pasolini - Ritos, beleza, cinema. Instintos, paixões e sentimentos. Um
filme que te acompanha no dia após dia.
9. Di-Glauber –
Pequeno, grande, enorme, fundamental filme.
10. Número dois, de Jean-Luc Godard - Godard após os experimentos do Groupe Dziga Vertov. Cotidiano e sexualidade. Ver revendo. ReveЯ.
10. Número dois, de Jean-Luc Godard - Godard após os experimentos do Groupe Dziga Vertov. Cotidiano e sexualidade. Ver revendo. ReveЯ.
Entrevista publicada na Filme Cultura nº 57, de outubro de 2012.