23/08/2016

E agora, Lúcia?

Seus filmes sempre foram marcados pelo interesse pela história da sociedade brasileira. Como se apresenta  um cinema assumidamente político nos dias de hoje?

Lúcia Murat - Eu tenho alguma resistência contra essa expressão, “cinema político”, porque primeiro vira um clichê e depois se torna depreciativo. Aí acaba virando sinônimo de um cinema panfletário, de mensagens - e eu não me vejo assim, não me interessa fazer proselitismo. O aspecto político dos meus filmes trata da memória – e eu, por uma série de circunstâncias, a começar pela idade em que estou chegando, tenho tido cada vez mais interesse pelas questões da memória. Recentemente me identificaram como uma cineasta focada nos anos da ditadura militar, mas até poucos anos atrás eu só tinha dois filmes que falavam de algum modo daquele período, Que bom te ver viva e Quase dois irmãos. Nos últimos anos eu lancei Uma longa viagem e A memória que me contam, aí deu essa impressão. Mas, na verdade, os dois são filmes sobre as memórias de pessoas que me eram próximas e que haviam falecido – no primeiro foi o meu irmão, que teve uma vida de sexo, drogas e rock’n’roll, e no segundo foi a minha amiga Vera Lúcia. E todos os meus filmes sempre foram movidos por fatos que aconteceram no presente e me fizeram tratar do passado. Eles não começavam no passado, eles estavam respondendo a questões do presente - até porque o passado continua presente, o passado não morre.

Em termos de geração e proximidades, como você se vê no panorama da produção de filmes brasileiros?

Acho que os filmes que marcam a nossa vida são aqueles que a gente viu na adolescência. Isso não quer dizer que não posso ter tido encantamento em outros momentos, ver um filme e pensar: “Poxa, queria ter feito isso!”. Mas os filmes que marcam o encantamento são os dessa fase. Eu era geração seguinte à do grupo do Cinema Novo, eles eram dez anos mais velhos, e o grupo do Cinema Marginal tem mais ou menos a minha idade, o Julio Bressane e o Sganzerla são um pouco mais velhos que eu. Eu fui formada por essas gerações: eu comecei a me envolver com a militância política quando eles estavam lançando os primeiros filmes deles. Quando eles vieram brigando com o Cinema Novo, a minha geração estava com eles. Eu lembro que, quando a gente já estava na clandestinidade, eu e Zé Roberto, que era um grande amigo meu, fomos ver O bandido da luz vermelha, armados e tudo, nos arriscando para poder ver o filme – a gente tinha que ver aquele filme, ele era o filme da guerrilha! Claro que Deus e o Diabo na terra do sol também foi um dos filmes que mais me marcaram, mas a nossa geração era a do Bandido. Ele representava muito mais a guerrilha e a luta armada do que o Cinema Novo. E eu só passei a fazer cinema bem mais tarde, depois de ter passado um período na cadeia... O cinema não surgiu na minha vida como uma profissão, mas como uma maneira de resgatar uma questão do passado, como eu fiz no meu primeiro filme, na Nicarágua, O pequeno exército louco. Era uma tentativa de entendimento da minha geração, e aí eu vi que fazer cinema era um barato. Aí, mais tarde consegui o financiamento da Embrafilme para fazer um média-metragem documental e fiz um longa, Que bom te ver viva. Daí eu entendi que não podia ter medo do risco para fazer filmes. Quem já viveu perto da morte não sente medo dessas coisas. Por isso eu optei por produzir mesmo em condições precárias. Se eu tentado fazer produções para o mercado, poderia ter ganhado muito mais dinheiro. E se eu tivesse esperado algum dia na vida para ter o orçamento e a produção ideais para um filme, não teria feito nem o primeiro. O cinema acabou se tornando minha maneira de sobrevivência. Hoje, eu tenho muitos amigos e pessoas com quem converso bastante entre os colegas de profissão, como, por exemplo, com o Murilo Salles, que é da minha geração, ou a Tata Amaral, que é mais nova que eu. Mas não existe um movimento conjunto de filmes, o que existe são laços de amizade.

E quais são seus próximos projetos?

Recentemente ganhei apoios para dois projetos, um se chama Quatro histórias e meia – ainda é um nome provisório. É uma retomada da relação com os índios da tribo que fez comigo Brava gente brasileira. Eu quero falar das mudanças que ocorreram nesse período sem forçar julgamentos – são quatro personagens e um que já morreu. A produção de Brava gente brasileira foi a que mais mexeu comigo, então eu quero voltar a trabalhar com tudo aquilo. O outro projeto se chama O corpo e a palavra, e começou quando eu ganhei um prêmio em Gramado, que me deu um monte de latas em 35mm. Achei que era a minha última chance de filmar em 35mm, então pensei em filmar dois espetáculos, um da Angel Vianna e outro da Fernanda Montenegro – é um projeto sobre o ciclo da vida, então eu não quero cair nem na lamentação da velhice, nem no oba-oba. Também tenho pensado em um filme de ficção falando do Rio de Janeiro do tempo do Lima Barreto e dos dias de hoje.


Filmes faróis

O encouraçado Potemkim, de Sergei Einsenstein
Foi um dos filmes que me formaram na minha adolescência.

Roma cidade aberta, de Roberto Rosselini
Se eu tenho que escolher um filme neo-realista para essa lista, é esse.

Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti
É a questão familiar e a política, uma análise da luta de classes incrível.

A guerra acabou, de Alain Resnais
A questão da ética na política já estava toda aqui.

Hiroshima mon amour, de Alain Resnais
Eu fui da Geração Paissandu, e esse filme conjugava com muita força a história íntima dos personagens e a memória da guerra.

Viridiana, de Luís Buñuel
Um filme que não é complacente com a caridade e com as classes populares.

Belle de jour, de Luís Buñuel
Para uma menina de classe média que tinha acabado de perder a virgindade, esse filme era tudo!

A regra do jogo, de Jean Renoir
Acho que é o grande filme da minha vida, é o grande retrato da vida burguesa.

Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha
Foi um filme que eu vi quando estreou, toda a minha geração recebeu o impacto desse filme.

O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla
Foi o último filme que vi antes de entrar de vez na vida clandestina e depois passar um período na cadeia. Só voltei a ver outro filme seis anos depois.

Lúcia Murat


Entrevista publicada na Filme Cultura nº 60, de julho de 2013.