23/08/2016

Mano a mano – cinemas modernos na Argentina e no Brasil

A produção de cinema na Argentina teve um desenvolvimento cronologicamente análogo ao da cinematografia brasileira - com a transição para o cinema sonoro e o princípio de industrialização nos anos 1930/1940, por exemplo -, mas manteve um volume de produção consideravelmente maior nas primeiras décadas do século XX. No final da década de 1930 a Argentina chegou a lançar 50 longas por ano, enquanto somente em 1968 a produção brasileira chegaria a esse número, como se pode conferir comparando os números do livro Cine Argentino: entre lo posible y lo deseable, de Octavio Getino, com os do Dicionário de Filmes brasileiros - longametragem, organizado por Antonio Leão da Silva Neto. A partir daquele momento, a produção anual de filmes do país vizinho se manteve acima da faixa de vinte filmes (um volume de produção que só veio a se consolidar em meados dos anos 1950 no Brasil). É difícil hoje dimensionar a proporção entre os mercados na época, por não ser possível ter acesso aos dados de bilheteria nessas décadas. Mas vale lembrar que ambas passaram por altos e baixos – por exemplo, a produção argentina diminuiu entre os anos 1950 e 1970, enquanto a brasileira aumentou. De todo modo, ao compararmos os dados de Octavio Getino com as informações da Embrafilme nos anos 1980 e da Ancine nesta década, a venda de bilhetes no Brasil foi aproximadamente o dobro daquela na Argentina tanto em 1981 quanto em 2004 (com uma população cerca de quatro vezes maior).
O estabelecimento de vários estúdios cinematográficos durante os anos 1930 e 1940 criou a base para uma produção feita com domínio técnico superior à média dos filmes brasileiros do período (havia grandes técnicos no Brasil, como o Edgar Brazil ou Watson Macedo, mas havia menos gente do seu gabarito no Rio de Janeiro do que havia em Buenos Aires). Desse modo, embora muitos dos estúdios tenham sido fechados no princípio dos anos 1950, surgiu naquele contexto uma tradição sólida de artesãos, com realizadores que iniciaram suas carreiras entre o final dos anos 30 e meados da década seguinte, tais como Lucas Demare, Hugo Del Carril, Hugo Fregonese, René Múgica, Carlos Hugo Christensen e Leopoldo Torre Nilsson, entre alguns outros.

A partir do final dos anos 1950 e princípio dos anos 1960, um pouco antes de surgir a geração cinemanovista no Brasil, foram lançados os primeiros filmes da chamada “Geração dos 60” argentina, composta por cineastas como David José Kohon (diretor de Tres veces Ana, entre outros), José Martínez Suárez (de Dar la cara), Rodolfo Kuhn (que fez o notável Pajarito Gómez, uma vida feliz e foi um dos diretores do filme em episódios O ABC do Amor, que também contou com Eduardo Coutinho na direção), Manuel Antín (diretor de Circe e Intimidad de los parques, adaptações de contos de Julio Cortázar) e, mais tarde, Leonardo Favio (inicialmente ator, depois diretor de belos filmes como Cronica de un niño solo, El romance del Aniceto y la Francisca e, mais tarde, Nazareno Cruz y el lobo, até hoje o filme argentino de maior bilheteria). Os cineastas da Geração dos 60 obtiveram razoável repercussão nos círculos de cinema do seu país, mas o mesmo não aconteceu no exterior. Conforme apontou o historiador César Maranghello: “A crítica européia foi em geral desfavorável, uma vez que não havia o exotismo esperado de um produto latino americano.” É bastante difícil definir esse “exotismo esperado”, mas, como as bruxas do ditado espanhol, que ele existe, existe. De certa maneira, a divulgação do Cinema Novo brasileiro se beneficiou um bocado dele – não por acaso, o personagem mais célebre do cinemanovismo no exterior foi Antonio das Mortes, um matador de cangaceiros, enquanto o poeta-jornalista urbano Paulo Martins, para usar um filme do mesmo cineasta como exemplo, foi visto apenas como um alter ego do autor. Mesmo que vários filmes cinemanovistas não se encaixem em qualquer espécie de modelo de “exotismo”, é inevitável pensar no paralelo entre esse exotismo e a beleza selvagem das propostas do texto “A Estética da Fome”, que aos europeus da sua época pôde fascinar como os canibais fascinaram Montaigne alguns séculos antes.

Os cinemanovistas brasileiros logo perceberam a diferença entre suas propostas estéticas e aquelas que traziam os cineastas argentinos que eles encontravam nos festivais internacionais. No livro Revolução do Cinema Novo, Glauber Rocha fez um relato divertido sobre um conflito que teve com Torre Nilsson durante o III Festival de Cinema LatinoAmericano, realizado em 1962 em Sestri Levante, na Itália:

"Houve feroz debate entre eu e Torre Nilsson, traduzido por Gustavo Dahl para seiscentos jornalistas internacionais: enciumado porque Regina [Rozemburgo] fugiu pra Porto Fino com o produtor da gang, joguei Barravento na cara daquilo que denunciava: “linguagem alienada de uma burguesia subdesenvolvimento dialético!!! O cinema argentino era um devaneio estetizante que ocultava, nas imitações de Bergman, Antonioni e Resnais, o drama do povo, o drama dos pampas, o drama dos Martins Fierros de La vyda cujo representante era Che”...
As telas do festival vieram abaixo!
Les Lettres Françaises relatou: “... Era tal a agressividade do jovem autor de Barravento contra Torre Nilsson que o cineasta argentino, irritado, desafiou Rocha para um duelo, ao que o cineasta brasileiro respondeu:
- Não aceito porque você é três vezes maior do que eu."

Numa carta a Paulo Emilio Salles Gomes, enviada logo após este festival (publicada há poucos meses no site da Filme Cultura – veja em http://filmecultura.org.br/11/2011/1546/), Gustavo Dahl voltou ao assunto:

O cinema argentino é aquilo que você deve conhecer. É completamente influenciado por uma visão citadina, é fácil compreender que Buenos Aires atrofia a cultura argentina. (....) Quando Glauber acusou os argentinos de decadência cultural, denunciando a constante escolha do problema particular-psicológico em detrimento do histórico-universal, e eu chamei a atenção para o problema das falsas elites que nós intelectuais latino americanos representamos (...), eles, meio chateados, entravam com a velha concepção clássica da arte dos problemas eternos, a transcendência, os mundos particulares, o artista etc etc.


Não é o caso de superestimar este conflito. Uma evidência de que as relações não eram belicosas é que o documento final deste festival realizado na Itália, a “Declaração do cinema latino americano independente”, contou com a assinatura de todos os cineastas ainda presentes: assinaram a carta, por exemplo, tanto os argentinos David J. Kohon e Rodolfo Kuhn como os cinemanovistas Glauber Rocha e Gustavo Dahl, assim como o cubano Alfredo Guevara e outros cineastas brasileiros que, nos anos seguintes, entrariam em conflito com os cinemanovistas, como Anselmo Duarte e Luís Sérgio Person. Outros documentos produzidos em festivais nos anos seguintes (como em Viña del Mar, 1967) também contaram com as assinaturas de cineastas destes grupos.

Ainda assim, mesmo que não seja simples definir as características “exóticas” esperadas de um filme latino americano na década de 1960, estes trechos que citei nos lembram que o grupo dos cinemanovistas tinha interesse em enfocar “o drama do povo” (nas palavras de Glauber Rocha) e o conflito “histórico-universal” em detrimento do “particular-psicológico”, nos termos de Dahl. Este movimento, francamente movido por um desejo militante de transformação social, provocou um interesse maior de festivais, críticos e cinéfilos desde então. Alguns dos mais talentosos cineastas do grupo cinemanovista foram beneficiados por essa onda de interesse por um cinema latino ativista e antiilusionista. Também foram beneficiados por esse interesse ideológico da crítica internacional os cineastas argentinos que se identificaram e participaram desse movimento: antes de todos, Fernando Birri, que, além de cineasta, também foi fundador da Escola Documental de Santa Fé; mais tarde, Fernando “Pino” Solanas, diretor de La hora de los hornos, de 1968, que teve codireção de Octavio Getino.

Sem desmerecer o talento destes cineastas, é preciso notar que esta disposição ativista em certo momento se tornou um bônus, um elemento de valor, uma espécie de commodity estética na visão de um discurso bastante disseminado. Assim, as relações que estes grupos vieram a estabelecer com a crítica e a historiografia foram bastante diversas: enquanto o Cinema Novo, descartadas suas questões internas, foi lembrado como um movimento de renovação de linguagem somada ao ativismo político, o que acabou por beneficiar a difusão dos seus filmes, os cineastas da Geração dos 60 foram menosprezados, caracterizados como conformistas, estetizantes e excessivamente devedores dos cineastas europeus da época.

No final da década de 1960, com uma diferença de pouco mais de um ano, começaram a surgir em ambos os países novas gerações com tendência de radicalização experimental: no Brasil, o dito Cinema Marginal; na Argentina, o caso mais conhecido (ainda assim, muito pouco) foi o auto-intitulado Grupo dos Cinco. No entanto, se existe alguma similaridade entre as gerações dos anos 1960, uma comparação entre as gerações seguintes de ambos os países evidencia um volume de produções e realizadores brasileiros do grupo marginalista consideravelmente mais numeroso do que aquele que se pode observar no cenário argentino da mesma época. E isso não diz respeito apenas ao número de filmes produzidos, mas também à diversidade de propostas e ao grau de conflito/continuidade em relação aos filmes que o precediam.

No final da década de 1960, a chamada Geração dos 60 vivia uma crise devido ao fim do apoio financeiro estatal, até então garantido pelo Instituto Nacional de Cinematografia, órgão público que foi encerrado em 1966. Alguns movimentos de renovação surgiram então de cineastas que se agregaram em torno de idéias comuns, denominando-se explicitamente como “grupos”. Fernando Solanas e Octavio Getino, diretores de La Hora de Los Hornos, compuseram o Grupo Cine Liberación; enquanto o documentarista Raymundo Gleyzer (mais tarde assassinado pela ditadura do general Onganía), por sua vez, criou o Grupo Cine de la Base. Foi nesse cenário que, em 1968, alguns amigos que faziam filmes publicitários e pretendiam produzir seus primeiros filmes criaram o chamado Grupo dos Cinco. Entre 1968 e 1969, este grupo surgiu com quatro filmes de longa metragem: Ricardo Becher lançou Tiro de gracia, Raúl De La Torre fez Juan Lamaglia y Sra., Néstor Paternostro exibiu Mosaico e Alberto Fischerman filmou The players vs. Ángeles caídos. Exceto por Juan Lamaglia y Sra., os outros filmes foram rodados em preto e branco e só foram exibidos em salas pequenas. O quinto cineasta do grupo foi Juan José Stagnaro, que então já se tornara um diretor de fotografia de prestígio (havia fotografado, por exemplo, El romance del Aniceto y la Francisca, o belo filme de Leonardo Favio). Em 1968, Stagnaro chegou a filmar e montar El proyecto, título azarado para um filme que nunca foi finalizado. De todos eles, apenas Ricardo Becher já havia feito um longa metragem anteriormente. Seu Tiro de gracia frequentemente é apontado como uma versão portenha do universo beatnik. De todos estes filmes, é o que mais permite uma aproximação com o universo estético do cinema marginal brasileiro. Anos mais tardes, Becher afirmou o seguinte sobre a relação com os colegas do Grupo: “O que nos uniu foi um approach do tipo empresarial. Queríamos ver o que podíamos fazer para promover melhor os nossos filmes, que caminhos deveríamos tomar... Mas tudo se desfez rapidamente. Nestes caminhos, não tínhamos muito a ver uns com os outros”.

Naquela época, no entanto, seus companheiros tiveram fé no projeto conjunto. Nos anos de crise de financiamento, esses cineastas aproveitaram sua experiência na publicidade, beneficiando-se do acesso a estúdios e equipamentos e arcando com as despesas de seus filmes. Conforme revela o comentário de Becher, embora todos eles tivessem projetos autorais de cinema, o único ponto de união do projeto era o desejo de dirigir filmes – e seus filmes não apresentavam, em si, marcas comuns que os unissem. Foi, no entanto, o primeiro movimento na Argentina caracterizado pela produção de baixo custo, com equipes reduzidas, película ultra sensível e períodos curtos de filmagem. Na Argentina, aquele gesto marcou um rompimento com os modelos até então vigentes, até mais do que em outros países. A comparação com o caso brasileiro torna isso evidente: enquanto Sganzerla podia dizer para os jornalistas do Pasquim que os jovens realizadores do Cinema Marginal traziam “uma velha novidade”, na Argentina os ares de modernidade trazidos pela Geração dos 60 não foram tão marcados pela redução de custos quanto aqui. Mesmo que não fizessem produções de alto custo, não interessou (nem foi necessário) à maior parte dos realizadores da Geração dos 60 encontrar uma “estética da fome” similar à proposta por Glauber Rocha.

Da mesma maneira, tampouco o chamado Grupo dos Cinco radicalizou sua relação com o público e o sistema comercial de difusão. A atitude que tinham diante do mercado não era de recusa completa, mas de reformismo autorista, movidos pela crença de conseguirem ser bem sucedidos comercialmente. Esse otimismo não teve em vista um problema: os filmes europeus da época não contavam apenas com o valor de mercado dos nomes dos seus diretores; já havia também uma estrutura de distribuição  para estes filmes. Alberto Fischerman notou isso ao falar do público de The players vs. Ángeles caídos: ao notar que o filme tivera um público “equivalente ao de um filme de Godard ou de Skolimowski”, ele percebeu que os filmes desses realizadores tinham sustentação econômica por serem exibidos em vários países – coisa que não aconteceu com os filmes argentinos. Ironicamente, The players vs. Ángeles caídos, o mais radical de todos os filmes do Grupo dos Cinco, foi também o mais bem sucedido na sua carreira comercial. Razoavelmente bem acolhido na época de lançamento, este filme intrigante (que, ao nos mostrar um grupo de atores ensaiando A tempestade de Shakespeare, torna-se um filme sobre fazer um filme) acabou sendo um marco do cinema experimental argentino, deixando visíveis influências em outros filmes de teor semelhante feitos nos anos seguintes, como La família unida esperando la llegada del Hallewin (1971), de Miguel Bejo, e ... (de 1971, também conhecido como Puntos suspensivos), de Edgardo Cozarinsky. Alberto Fischerman teria uma trajetória bastante interessante dali em diante, tendo feito outros filmes de teor experimental (como Gombrowicz o la seducción) e outros dentro dos modelos do cinema “respeitável” (como Los días de junio), chegando a se dedicar à produção de comédias populares no final da sua carreira (como La clínica del dr. Cureta).


Mas o movimento do Grupo dos Cinco, apresentado por Fischerman numa cena de The players vs. Ángeles caídos, só voltou a ser relembrado alguns anos após morte do cineasta, já nos anos 2000, quando foi feita em Buenos Aires uma retrospectiva daqueles filmes que por anos estiveram esquecidos. Curiosamente, na mesma época em que uma mostra realizada nos CCBBs de São Paulo e Rio rememorou os filmes marginalistas para uma nova geração.


filmagem de The Players vs. Angeles Caídos, de Alberto Fischerman


Publicado na Filme Cultura nº 57, de outubro de 2012.