23/08/2016

E agora, André Sampaio?

Alguns dos seus filmes tinham uma relação satírica com o cinema de gênero. Em Strovengah, seu primeiro longa, essa relação é mais direta. Essa aproximação com os filmes de gênero é um caminho que te interessa no momento?

André Sampaio - Strovengah ultrapassa a paródia para ser um filme de gênero. Se pretende um suspense, beira o terror e vira filme de casal em crise. É filme de moto, de mulher nua, de boneco macabro e, no fim, um drama esotérico da miséria humana. De quebra, tem umas pontinhas de chanchada. É um filme de climas. Não é um filme naturalista, que é coisa muita chata e reacionária. E por aqui já temos uma penca de filmes naturalistas contemporâneos.
O filme de gênero é natural para quem viu muito filme nos cinemas de rua da Praça Saens Peña e nas sessões da tarde e corujão na televisão. Apesar de ter feito escola na UFF e ser filho do veterano montador Severino Dadá, meu gosto pelo cinema vem de curtir filmes e conversar com a rapaziada. Veio de preferir os gibis do Tex, do Fantasma e do Conan no papel-jornal às graphic novels dos anos 80.
Por conta do meu pai, acabei vendo bem mais filmes brasileiros que a média da minha geração. Era uma coisa que eu gostava muito, até o cinema entrar nessa de novo-rico, de não querer parecer filme brasileiro. O maior elogio que um cineasta contemporâneo pode receber é: “nem parece filme brasileiro!
Esse obscuro cinema brasileiro de gênero me marcou, de Psicose de Laurindo, do Nilo Machado, a Os amores da pantera, do Jece Valadão, ou mesmo Meu nome é Tonho, do Ozualdo Candeias - um filme de striptease, um policial e um bang-bang. São filmes que me pegam e pronto. E o cinema na minha cabeça é uma coisa iniciática, mediúnica, intuitiva e afetiva, uma patologia que me leva a observar coisas do cotidiano e me pegar desenvolvendo filmes mentais. E a vida se alimenta do próprio cinema, porque as pessoas já se comportam da maneira que o cinema ensinou. De certa forma, cada pessoa está dentro de um gênero de filme e, andando por aí, estão muitos filmes de gênero. É pelas encruzilhadas que o cinema de gênero entra nos filmes que faço, não dá para escapar. Você vê um ferro velho e imagina uma cena de perseguição policial. No banco, o segurança do carro-forte se comporta como um policial canastrão de filme de ação barato. O filme, o sonho e o estado de vigília são coisas que se embaralham nas cabeças das pessoas.


Muito se fala sobre uma geração "novíssima" do cinema brasileiro. Esse rótulo surgiu a partir de uma sessão mensal realizada no Cine Glória em 2009, cuja programação se iniciou com a exibição de um filme seu. Como você vê os filmes dessa nova geração e como se vê dentro dela?

Tô no bolo dessa história, mas não me vejo entre seus iluminados. Inclusive, sou anterior a essa onda, já não sou tão novíssimo assim. Quem começou a produzir curta nos anos 90 com um cinema livre e poético acabou por ter vez entre os novíssimos de novo. É o meu caso e de outros tantos, como o pessoal da Paraísos Artificiais, de São Paulo, que já trabalhava com o repertório caro a essa geração: o coletivo e a experimentação. Conceição é um filme experimental artesanal de um coletivo.
Nós dos anos 1990 demoramos a chegar nos longas, como uma espécie de elo perdido entre a película e o digital. Ali eu era da turma dos esquisitos. Continuamos esquisitos, mas agora mais gente nos compreende. No processo histórico, o digital desbitolou geral e culminou numa explosão da produção independente de qualquer coisa. Quem surge nesse momento chega com menos pudores, livre dos engessamentos dos modos de produção, distante dessas noções que atrofiam a liberdade e esclerosaram muita gente boa que virou político ou escoteiro do mito da indústria cinematográfica brasileira. No final, é um mesmo barco onde viajam classes distintas.
Essa linha evolutiva do cinema brasileiro de invenção parte de Luiz de Barros e persiste, fortalecida e revigorada, no barateamento dos meios de produção. O negócio é não cair em cacoetes geracionais já perceptíveis entre os ditos novíssimos como aquilo que uma vez chamei de fetiche da chaleira: um ultra-realismo no apego ao tempo morto - essa invenção da televisão ao vivo, aqueles planos repetidos e estendidos da arquibancada que surgiam por conta de uma falha na transmissão. São coisas já ultrapassadas na década de 60, que agora teimam em repercutir como caducas novidades. E outra coisa que eu percebo é um grande medo de errar, que leva a fugir da mise-en-scène, da dramaturgia, da decupagem. Você vai tirando tudo, para não ter chance de errar, e faz um cinema sem erro. Para não errar no movimento, trava a câmera. Contra o erro na ação e na narrativa, elimina a dramaturgia. O ator pode canastrar, então esvazia a interpretação. Limpa tudo e não dá chance para o erro. Isso não me agrada, afinal quem tem medo de cagar vive de tomar sorvete.


Como são seus próximos projetos?

Acabei de ganhar um edital do MinC para desenvolver o roteiro de Alô! Alô! Cinédia! O Último Carnaval, uma ficção que vai articular filmagens atuais com cenas e personagens de filmes do passado (produções da Cinédia dos anos 1930, 40 e 50). Um filme de fantasmagoria, uma comédia musical carnavalesca com um dos maiores elencos do cinema brasileiro, gente como Procópio Ferreira, Oscarito, Dercy Gonçalves, além de números musicais de Mário Reis, Carmem Miranda e muito mais.
Em paralelo, venho tocando com a Cavídeo a produção da Arca de Noé, um longa metragem que reinterpreta o livro do Genesis, da Bíblia Sagrada, à luz da cultura rastafari. Uma livre releitura do mito de origem da cultura ocidental. Um épico sem orçamento. Uma ópera reggae afro futurista. Um filme de juventude. Breve!



FILMES FARÓIS

Numa outra ocasião posso citar diferentes filmes, mas agora são estes os que passam na minha cabeça.

O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla
Por me fazer compreender que existia um cinema para além do que eu achava que era o cinema, que podia ser inventivo, livre e popular.

As aventuras amorosas de um padeiro, de Waldir Onofre
Por ser tudo que os teóricos do nacional popular tanto pregaram. É um dos mais importantes filmes políticos do país.

O amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos
Era o filme que o meu pai estava montando quando eu nasci e é um filmaço de máfia sobrenatural.

Berlim na Batucada, do Luiz de Barros
Profetiza a Belair e antecipa a onda neo-realista do cinema novo, com Francisco Alves no papel de sambista da Mangueira. É Luiz de Barros o pai do cinema brasileiro.

Gordos e Magros, de Mário Carneiro
Um gordo rico quer comprar a fome de um faquir miserável num dos filmes mais anárquicos e livres que já vi.

Zero de Conduta, de Jean Vigo
Para ficar nos anárquicos. Crianças no poder!

Crueldade Mortal, de Luiz Paulino dos Santos
O martírio de um velho migrante nordestino linchado na Baixada Fluminense, numa espécie de Paixão de Cristo Homem.

Conceição – autor bom é autor morto, de direção coletiva
Passamos dez anos nessa batalha e vou para sempre viver nesse filme. É o filme da minha turma.

A Montanha Sagrada, de Alejandro Jodorowski
Outro desses filmes para além do cinema. Um filme didático da possibilidade de um cinema transcendente e xamânico. Devagar o cinema ainda chega lá.

Ouro e Maldição, de Erich Von Stroheim
O sujeito cheio de ouro algemado a um cadáver, ao lado de um cavalo morto, esperando uma tempestade no deserto é o melhor final do cinema.

André Sampaio


Entrevista publicada na Filme Cultura nº 58, de janeiro de 2013