23/08/2016

Libreto sincopado: vozes e ruídos do cinema de invenção brasileiro

Dos três principais elementos básicos do som no cinema – a música, as falas e os ruídos – foi a música que recebeu maior destaque na recepção aos filmes feitos nos primeiros anos da produção no Brasil. Sabemos hoje que, mesmo antes de inventarem as técnicas de gravação simultânea de som e imagem nas películas, foram comuns as projeções em que cantores dublavam ao vivo as imagens na tela – eram os chamados filmes “cantantes”. E também sabemos que um filme como Limite, celebrado como um marco do cinema de invenção brasileiro, apresentava um diálogo contínuo entre suas imagens e a trilha sonora escolhida pelo diretor Mário Peixoto (apresentando compositores notáveis da arte moderna européia, como Erik Satie e Claude Debussy). Desde então, o uso inventivo da música sempre foi um aspecto notado e celebrado em diversos filmes – no seu livro “O som no cinema brasileiro”, Fernando Morais da Costa fez um minucioso levantamento de algumas das principais inovações que determinados músicos (como Remo Usai e Rogério Duprat) apresentaram em parceira com diversos cineastas.

O uso expressivo de ruídos para compor ambientes ou sincopar as narrativas, por sua vez, passou a ganhar espaço nos filmes graças ao trabalho do sonoplasta Geraldo José, já comentado em outro texto dessa mesma edição. Neste caso, embora José já tivesse feito outros trabalhos no cinema, foi somente com Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, que seu trabalho ganhou maior destaque – mais de três décadas após os filmes cantantes e Limite.

O terceiro elemento fundamental do som de cinema é a voz humana. Na imensa maioria dos casos, é o primeiro elemento a ser montado, assim como é o que conduz e elucida os enredos através de diálogos e narrações, quase sempre obedecendo ao padrão do sincronismo labial e de outros aspectos importantes para dar a impressão de realidade.

Sem desmerecer as muitas inovações no uso de músicas e ruídos, foi na relação entre o uso da voz gravada e a crítica da “impressão de realidade” que se desenvolveu a corrente mais inovadora esteticamente da cinematografia brasileira. Se, por um lado, até hoje o que há de mais comum é o uso convencional de vozes – em sincronismo, seguindo os padrões ditos “industriais”, ou em narrações em off com dramaticidade contida – alguns filmes fundamentais da nossa cinematografia se caracterizaram fortemente pelo uso, digamos, transtornado do registro vocal.

O exemplo mais célebre é evidentemente o dos filmes do baiano Glauber Rocha. Se já foi bastante comentado o uso de uma narração cantada em cordel no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, é preciso notar que o uso expressivo e não-realista da narração em off de Terra em Transe (que foi longamente analisado por Ismail Xavier no livro Sertão Mar e por Morais da Costa) foi na verdade uma primeira experiência ainda tímida do cineasta numa seara em que se aprofundou nos filmes seguintes. Se em Terra em transe a voz do personagem Paulo Martins, criada pelo ator Jardel Filho, era excessiva e desequilibrada em sua poesia militante (de forma coerente com todo o filme), ali já poderia ser percebido o que mais tarde ficaria evidente nos outros trabalhos de Glauber Rocha: as vozes “em off” não se contentam em se manter “em off”, elas invadem e reinterpretam a narrativa – um trabalho que, dali para diante, o cineasta reservaria para si próprio. Assim, já em Câncer - um filme em que, até por razões técnicas, o uso do som quebra inteiramente qualquer sugestão de realidade, já que as vozes foram gravadas com uma ligeira distorção – em determinado momento a voz de Glauber Rocha intervém na cena e participa dela, provocando insistentemente um ator em quadro. Ele retomou esse procedimento de intervenção radical na cena filmada em outras ocasiões nos anos seguintes, como num registro documental do filme Jorjamado no cinema. Depois de Câncer, em alguns dos seus filmes seguintes como Claro e A Idade da Terra, a voz do cineasta ganhou novo estatuto e, ao invadir a narrativa sem qualquer pudor, tratava de representar e explicar o projeto integral do filme – eventualmente aos berros, invertendo o papel tradicional com as imagens, que passavam a parecer então serem elas os comentários ao discurso do autor. No seu curta-metragem Di GlauberNinguém assistirá ao enterro formidável da sua última quimera, somente a ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável, a importância da voz e da narração de Glauber Rocha é radicalizada: entre sambas, choros e batuques, o filme só existe e se constrói a partir do seu discurso multitonal, fragmentado e não-linear, que celebra e defende, com sua conhecida veemência poética e acústica, a importância do pintor recém-falecido Di Cavalcanti.

Se boa parte das análises sobre os filmes da geração marginalista atenta para a recorrência dos gritos e das falas exasperadas nas bandas sonoras, o uso expressivo do som nos filmes desse grupo marcado pelo desejo de invenções radicais não se ateve a este clichê expressivo. O hoje clássico O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, também foi diversas vezes analisado pela sua inovação narrativa, por fazer uso de dois narradores à moda dos programas sensacionalistas de rádio. Mas não foi apenas neste primeiro longa que Sganzerla inovou em relação ao uso do som. Se já em O bandido da luz vermelha o recurso da dublagem era apresentado de forma não-realista, paródica, este procedimento foi radicalizado em filmes como Nem tudo é verdade e O signo do caos. No primeiro filme, a presença do personagem estrangeiro (Orson Welles) sugeria que o recurso à perda de sincronia labial remetia ao universo da dublagem de estrangeiros; e, ao mesmo tempo, indicava a presença da precariedade chanchadesca no projeto de gênio wellesiano. Já em O signo do caos, toda a construção sonora parece se desvincular da imagem para afirmá-la como um espaço maldito, destrutivo – tal como o seu antifilme se apresenta.

Nos seus dois outros filmes sobre a passagem de Orson Welles pelo Brasil, Sganzerla fez uso de um método narrativo inteiramente baseado nos recursos da fala: tanto em Linguagem de Orson Welles quando em Tudo é Brasil, a linha narrativa foi dada pelos documentos sonoros utilizados, como trechos dos programas radiofônicos que Welles fez antes, durante e depois de sua estadia no país. Em Tudo é Brasil, um diálogo entre ele e Carmem Miranda no qual são apresentados os instrumentos usados pelos sambistas se tornou uma investigação histórica sobre a formação de um imaginário nacional nos moldes da ditadura varguista. Neste caso, a narração em off ganhou novo sentido por sua origem como documento histórico, permitindo ao filme a realização dessa montagem crítica.

O uso irônico das dublagens não foi uma exclusividade de Sganzerla – mais tarde, filmes de Carlos Reichenbach (como O império do desejo), Ivan Cardoso (em O escorpião escarlate) e Guilherme de Almeida Prado (em A hora mágica) procederam de maneiras parecidas em determinadas cenas. Os mesmos cineastas também fizeram uso do recurso à narrativa radiofônica, cada um à sua maneira – no caso de Cardoso e Almeida Prado, nestes mesmos filmes mencionados. Já Reichenbach, por sua vez, no prólogo de Audácia!, ou A fúria dos desejos (feito em parceria com Antonio Lima), fez uma bem-humorada “homenagem” ao recurso dos narradores em dupla de O bandido da luz vermelha. Ao final, depois de mostrar uma entrevista com José Mojica Marins, a voz do próprio Reichenbach apresenta a voz de Sganzerla em um depoimento sobre Mojica – cujo cinema, conforme é dito, representa “o homem brasileiro, boçal e recalcado”. Reichenbach também fez uso eventual da presença da sua “voz do autor” em alguns dos seus filmes seguintes, como em Alma Corsária e Falsa Loura. Mas seu uso mais expressivo desse recurso foi em Extremos do prazer, numa cena em que, ao som da Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner, um dos personagens, um dramaturgo, apresenta, inicialmente com a voz do próprio ator, o universo dos seus colegas de enredo - ao final da cena, a voz do personagem é trocada pela voz do próprio Reichenbach, que assim apresenta o projeto estético do seu filme, apresentado como forma de revelar seu próprio universo (“quero mostrar o corpo para falar do espírito”); coisa que é sugerida pela imagem ao final do plano, quando este personagem pega um espelho e aponta para a câmera, que revela a presença do diretor – cuja voz então grita “ok, corta!”.

Não foram esses os únicos cineastas da geração marginalista a desenvolver idéias pouco convencionais em relação ao som. Já foi bastante comentado, por exemplo, o procedimento de Ozualdo Candeias em A Herança, filme em que o Hamlet shakespeareano ganha uma versão rural na qual os personagens não têm voz humana, tendo todas as suas falas substituídas por sons de animais (exceto o célebre “To be or not to be”). No seu livro, Fernando Morais da Costa analisa também os casos dos filmes de Andrea Tonacci, como Bang-Bang, e sobretudo dos de Julio Bressane, como O Anjo Nasceu e A família do barulho, entre outros, apontando o uso expressivo dos silêncios e da trilha sonora. Além deles, vale lembrar também os trabalhos de Jairo Ferreira em alguns dos seus filmes realizados em Super-8, como O vampiro da cinemateca e O insigne ficante. Nestes filmes, o cineasta e crítico apresentou um procedimento interessante na sua narração em off, feita por ele próprio. Assim, desenvolvem-se princípios de narrativas de ficção, calcadas em imagens muitas vezes registradas de forma documental - e a narração de Jairo Ferreira embaralha tudo isso explicitamente, misturando sem pudor as idéias ficcionais, os registros em forma de diário e os comentários de crítica e história não-oficial do cinema. É preciso observar, de todo modo, que a própria precariedade técnica dos registros em Super-8 levou vários realizadores a inventar narrações em off bastante invulgares para seus filmes – foi o caso, por exemplo, dos filmes de Edgard Navarro feitos na bitola, como Alice no país das mil novilhas.

Entre outros cineastas que experimentaram novas formas de elaborar os registros sonoros vocais – como a multiplicação de vozes em alguns dos documentários de Joel Pizzini ou a repetição obsessiva e fragmentada nos filmes de Carlos Adriano – há sobretudo o caso de Arthur Omar, cujo interesse pelo uso expressivo da banda sonora o levou inclusive a centrar no assunto um dos seus filmes mais conhecidos, O Som ou O tratado de harmonia. Neste curta (cujo trabalho de criação sonora já foi devidamente esmiuçado pela pesquisadora Guiomar Ramos em sua dissertação de mestrado), Omar logo rompe com a idéia de sincronia entre som e voz ao mostrar um técnico com seu microfone, enquanto a banda sonora nos apresenta sons diversos de uma orquestra e ruídos que não aparecem em quadro, além de uma breve voz em off. Depois, um ator recita com voz solene e ecoante alguns versos da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, para que em seguida uma voz em off nos sugira que, caso fosse outra a atmosfera terrestre, feita de gás hélio as vozes se tornariam mais finas e esganiçadas, impedindo qualquer chance de criar a ambientação necessária ao espetáculo trágico. O ator respira então um pouco do gás mencionado, que assim o deixa com uma voz tão esganiçada como sugere a narração – então, quando o ator repete um trecho do texto de Sófocles, ele se torna ridículo. Mais ao final, uma nova voz em off (entre tanta usadas no filme) apresenta em tom emocionado e pessoal um possível projeto estético do filme (“eu quero tudo que não é onipotência, eu quero escancarar a fragilidade”). No entanto, a voz é feminina – e em seguida, ao se iniciarem os créditos, o filme revela o nome do seu diretor, quebrando a possibilidade de associação imediata e acrítica entre a voz e o autor (algo que o filme subverte desde o princípio, com sua diversidade de falas em off com vozes não identificadas).


Tendo em vista essa “tradição de rupturas” no uso das vozes, é tão curioso quanto revelador observar o conservadorismo comodista presente tanto na feitura quanto na recepção da maior parte dos filmes recentes. Se a narração em off, na maior parte das vezes em que foi usada no cinema, permitiu trazer um aspecto reconfortante de distanciamento da ação, no cinema brasileiro do princípio da década isso se tornou um procedimento padronizado. A despeito do alto nível técnico que o trabalho na área sonora ganhou com a implementação das tecnologias digitais, as inovações estéticas se fizeram presentes, por ironia poética, sobretudo na seara do documentário. Nas raras exceções entre as ficções, o trabalho passou praticamente despercebido, como se pode ver pela recepção dada aos filmes mais recentes já citados aqui.


Texto publicado na Filme Cultura nº 58, de janeiro de 2013