Dos três principais elementos básicos do som no cinema – a
música, as falas e os ruídos – foi a música que recebeu maior destaque na
recepção aos filmes feitos nos primeiros anos da produção no Brasil. Sabemos
hoje que, mesmo antes de inventarem as técnicas de gravação simultânea de som e
imagem nas películas, foram comuns as projeções em que cantores dublavam ao
vivo as imagens na tela – eram os chamados filmes “cantantes”. E também sabemos
que um filme como Limite, celebrado
como um marco do cinema de invenção brasileiro, apresentava um diálogo contínuo
entre suas imagens e a trilha sonora escolhida pelo diretor Mário Peixoto
(apresentando compositores notáveis da arte moderna européia, como Erik Satie e
Claude Debussy). Desde então, o uso inventivo da música sempre foi um aspecto notado
e celebrado em diversos filmes – no seu livro “O som no cinema brasileiro”,
Fernando Morais da Costa fez um minucioso levantamento de algumas das principais
inovações que determinados músicos (como Remo Usai e Rogério Duprat) apresentaram
em parceira com diversos cineastas.
O uso expressivo de ruídos para compor ambientes ou sincopar
as narrativas, por sua vez, passou a ganhar espaço nos filmes graças ao trabalho
do sonoplasta Geraldo José, já comentado em outro texto dessa mesma edição. Neste
caso, embora José já tivesse feito outros trabalhos no cinema, foi somente com Vidas Secas, de Nelson Pereira dos
Santos, que seu trabalho ganhou maior destaque – mais de três décadas após os
filmes cantantes e Limite.
O terceiro elemento fundamental do som de cinema é a voz
humana. Na imensa maioria dos casos, é o primeiro elemento a ser montado, assim
como é o que conduz e elucida os enredos através de diálogos e narrações, quase
sempre obedecendo ao padrão do sincronismo labial e de outros aspectos
importantes para dar a impressão de realidade.
Sem desmerecer as muitas inovações no uso de músicas e
ruídos, foi na relação entre o uso da voz gravada e a crítica da “impressão de
realidade” que se desenvolveu a corrente mais inovadora esteticamente da
cinematografia brasileira. Se, por um lado, até hoje o que há de mais comum é o
uso convencional de vozes – em sincronismo, seguindo os padrões ditos
“industriais”, ou em narrações em off
com dramaticidade contida – alguns filmes fundamentais da nossa cinematografia
se caracterizaram fortemente pelo uso, digamos, transtornado do registro vocal.
O exemplo mais célebre é evidentemente o dos filmes do
baiano Glauber Rocha. Se já foi bastante comentado o uso de uma narração
cantada em cordel no filme Deus e o Diabo
na Terra do Sol, é preciso notar que o uso expressivo e não-realista da
narração em off de Terra em Transe
(que foi longamente analisado por Ismail Xavier no livro Sertão Mar e por Morais da Costa) foi na verdade uma primeira
experiência ainda tímida do cineasta numa seara em que se aprofundou nos filmes
seguintes. Se em Terra em transe a
voz do personagem Paulo Martins, criada pelo ator Jardel Filho, era excessiva e
desequilibrada em sua poesia militante (de forma coerente com todo o filme),
ali já poderia ser percebido o que mais tarde ficaria evidente nos outros
trabalhos de Glauber Rocha: as vozes “em off”
não se contentam em se manter “em off”,
elas invadem e reinterpretam a narrativa – um trabalho que, dali para diante, o
cineasta reservaria para si próprio. Assim, já em Câncer - um filme em que, até por razões técnicas, o uso do som
quebra inteiramente qualquer sugestão de realidade, já que as vozes foram
gravadas com uma ligeira distorção – em determinado momento a voz de Glauber
Rocha intervém na cena e participa dela, provocando insistentemente um ator em
quadro. Ele retomou esse procedimento de intervenção radical na cena filmada em
outras ocasiões nos anos seguintes, como num registro documental do filme Jorjamado no cinema. Depois de Câncer, em alguns dos seus filmes
seguintes como Claro e A Idade da Terra, a voz do cineasta ganhou
novo estatuto e, ao invadir a narrativa sem qualquer pudor, tratava de representar
e explicar o projeto integral do filme – eventualmente aos berros, invertendo o
papel tradicional com as imagens, que passavam a parecer então serem elas os comentários
ao discurso do autor. No seu curta-metragem Di
Glauber – Ninguém assistirá ao enterro
formidável da sua última quimera, somente a ingratidão, essa pantera, foi sua
companheira inseparável, a importância da voz e da narração de Glauber
Rocha é radicalizada: entre sambas, choros e batuques, o filme só existe e se
constrói a partir do seu discurso multitonal, fragmentado e não-linear, que
celebra e defende, com sua conhecida veemência poética e acústica, a
importância do pintor recém-falecido Di Cavalcanti.
Se boa parte das análises sobre os filmes da geração
marginalista atenta para a recorrência dos gritos e das falas exasperadas nas
bandas sonoras, o uso expressivo do som nos filmes desse grupo marcado pelo
desejo de invenções radicais não se ateve a este clichê expressivo. O hoje
clássico O bandido da luz vermelha,
de Rogério Sganzerla, também foi diversas vezes analisado pela sua inovação
narrativa, por fazer uso de dois narradores à moda dos programas
sensacionalistas de rádio. Mas não foi apenas neste primeiro longa que
Sganzerla inovou em relação ao uso do som. Se já em O bandido da luz vermelha o recurso da dublagem era apresentado de
forma não-realista, paródica, este procedimento foi radicalizado em filmes como
Nem tudo é verdade e O signo do caos. No primeiro filme, a
presença do personagem estrangeiro (Orson Welles) sugeria que o recurso à perda
de sincronia labial remetia ao universo da dublagem de estrangeiros; e, ao
mesmo tempo, indicava a presença da precariedade chanchadesca no projeto de
gênio wellesiano. Já em O signo do caos,
toda a construção sonora parece se desvincular da imagem para afirmá-la como um
espaço maldito, destrutivo – tal como o seu antifilme
se apresenta.
Nos seus dois outros filmes sobre a passagem de Orson Welles
pelo Brasil, Sganzerla fez uso de um método narrativo inteiramente baseado nos
recursos da fala: tanto em Linguagem de
Orson Welles quando em Tudo é Brasil,
a linha narrativa foi dada pelos documentos sonoros utilizados, como trechos
dos programas radiofônicos que Welles fez antes, durante e depois de sua
estadia no país. Em Tudo é Brasil, um
diálogo entre ele e Carmem Miranda no qual são apresentados os instrumentos
usados pelos sambistas se tornou uma investigação histórica sobre a formação de
um imaginário nacional nos moldes da ditadura varguista. Neste caso, a narração
em off ganhou novo sentido por sua
origem como documento histórico, permitindo ao filme a realização dessa
montagem crítica.
O uso irônico das dublagens não foi uma exclusividade de
Sganzerla – mais tarde, filmes de Carlos Reichenbach (como O império do desejo), Ivan Cardoso (em O escorpião escarlate) e Guilherme de Almeida Prado (em A hora mágica) procederam de maneiras parecidas em determinadas cenas. Os mesmos
cineastas também fizeram uso do recurso à narrativa radiofônica, cada um à sua
maneira – no caso de Cardoso e Almeida Prado, nestes mesmos filmes mencionados.
Já Reichenbach, por sua vez, no prólogo de Audácia!,
ou A fúria dos desejos (feito em parceria com Antonio Lima), fez uma bem-humorada
“homenagem” ao recurso dos narradores em dupla de O bandido da luz vermelha. Ao final, depois de mostrar uma
entrevista com José Mojica Marins, a voz do próprio Reichenbach apresenta a voz
de Sganzerla em um depoimento sobre Mojica – cujo cinema, conforme é dito,
representa “o homem brasileiro, boçal e recalcado”. Reichenbach também fez uso
eventual da presença da sua “voz do autor” em alguns dos seus filmes seguintes,
como em Alma Corsária e Falsa Loura. Mas seu uso mais expressivo
desse recurso foi em Extremos do prazer,
numa cena em que, ao som da Cavalgada das
Valquírias de Richard Wagner, um dos personagens, um dramaturgo, apresenta,
inicialmente com a voz do próprio ator, o universo dos seus colegas de enredo -
ao final da cena, a voz do personagem é trocada pela voz do próprio
Reichenbach, que assim apresenta o projeto estético do seu filme, apresentado
como forma de revelar seu próprio universo (“quero mostrar o corpo para falar
do espírito”); coisa que é sugerida pela imagem ao final do plano, quando este
personagem pega um espelho e aponta para a câmera, que revela a presença do
diretor – cuja voz então grita “ok, corta!”.
Não foram esses os únicos cineastas da geração marginalista a
desenvolver idéias pouco convencionais em relação ao som. Já foi bastante comentado,
por exemplo, o procedimento de Ozualdo Candeias em A Herança, filme em que o Hamlet shakespeareano ganha uma versão
rural na qual os personagens não têm voz humana, tendo todas as suas falas
substituídas por sons de animais (exceto o célebre “To be or not to be”). No seu livro, Fernando Morais da Costa
analisa também os casos dos filmes de Andrea Tonacci, como Bang-Bang, e sobretudo dos de Julio Bressane, como O Anjo Nasceu e A família do barulho, entre outros, apontando o uso expressivo dos
silêncios e da trilha sonora. Além deles, vale lembrar também os trabalhos de
Jairo Ferreira em alguns dos seus filmes realizados em Super-8, como O vampiro da cinemateca e O insigne ficante. Nestes filmes, o
cineasta e crítico apresentou um procedimento interessante na sua narração em off, feita por ele próprio. Assim,
desenvolvem-se princípios de narrativas de ficção, calcadas em imagens muitas
vezes registradas de forma documental - e a narração de Jairo Ferreira
embaralha tudo isso explicitamente, misturando sem pudor as idéias ficcionais,
os registros em forma de diário e os comentários de crítica e história
não-oficial do cinema. É preciso observar, de todo modo, que a própria
precariedade técnica dos registros em Super-8 levou vários realizadores a
inventar narrações em off bastante
invulgares para seus filmes – foi o caso, por exemplo, dos filmes de Edgard
Navarro feitos na bitola, como Alice no
país das mil novilhas.
Entre outros cineastas que experimentaram novas formas de
elaborar os registros sonoros vocais – como a multiplicação de vozes em alguns
dos documentários de Joel Pizzini ou a repetição obsessiva e fragmentada nos
filmes de Carlos Adriano – há sobretudo o caso de Arthur Omar, cujo interesse
pelo uso expressivo da banda sonora o levou inclusive a centrar no assunto um
dos seus filmes mais conhecidos, O Som ou
O tratado de harmonia. Neste curta (cujo trabalho de criação sonora já foi devidamente
esmiuçado pela pesquisadora Guiomar Ramos em sua dissertação de mestrado), Omar
logo rompe com a idéia de sincronia entre som e voz ao mostrar um técnico com
seu microfone, enquanto a banda sonora nos apresenta sons diversos de uma
orquestra e ruídos que não aparecem em quadro, além de uma breve voz em off. Depois, um ator recita com voz
solene e ecoante alguns versos da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, para que em
seguida uma voz em off nos sugira
que, caso fosse outra a atmosfera terrestre, feita de gás hélio as vozes se
tornariam mais finas e esganiçadas, impedindo qualquer chance de criar a
ambientação necessária ao espetáculo trágico. O ator respira então um pouco do gás
mencionado, que assim o deixa com uma voz tão esganiçada como sugere a narração
– então, quando o ator repete um trecho do texto de Sófocles, ele se torna
ridículo. Mais ao final, uma nova voz em off
(entre tanta usadas no filme) apresenta em tom emocionado e pessoal um possível
projeto estético do filme (“eu quero tudo que não é onipotência, eu quero
escancarar a fragilidade”). No entanto, a voz é feminina – e em seguida, ao se
iniciarem os créditos, o filme revela o nome do seu diretor, quebrando a possibilidade
de associação imediata e acrítica entre a voz e o autor (algo que o filme
subverte desde o princípio, com sua diversidade de falas em off com vozes não identificadas).
Tendo em vista essa “tradição de rupturas” no uso das vozes,
é tão curioso quanto revelador observar o conservadorismo comodista presente
tanto na feitura quanto na recepção da maior parte dos filmes recentes. Se a
narração em off, na maior parte das vezes em que foi usada no cinema, permitiu
trazer um aspecto reconfortante de distanciamento da ação, no cinema brasileiro
do princípio da década isso se tornou um procedimento padronizado. A despeito
do alto nível técnico que o trabalho na área sonora ganhou com a implementação
das tecnologias digitais, as inovações estéticas se fizeram presentes, por
ironia poética, sobretudo na seara do documentário. Nas raras exceções entre as
ficções, o trabalho passou praticamente despercebido, como se pode ver pela
recepção dada aos filmes mais recentes já citados aqui.
Texto publicado na Filme Cultura nº 58, de janeiro de 2013
Texto publicado na Filme Cultura nº 58, de janeiro de 2013