23/08/2016

Jouez encore, payez encore

Jouez encore, payez encore é um documentário feito entre 1974 e 1975, um filme que desde o seu princípio teve uma trajetória especialmente aventureira. Ele foi rodado quase integralmente num sistema de vídeo – em fitas de ½ polegada, da Sony, uma tecnologia inovadora naquela época, que havia sido apresentada ao mundo poucos meses antes – para em seguida ser transferido para o tradicional suporte de película. É o segundo longa metragem dirigido por Andrea Tonacci, cuja trajetória estava profundamente ligada ao grupo que já se convencionou chamar de Cinema Marginal: depois de ter dirigido o curta Olho por olho, o média Blá blá blá e o longa Bang Bang, Tonacci foi contratado pela produtora Ruth Escobar para fazer este documentário com os registros do período de ensaio, os bastidores de produção e as apresentações da peça Autos Sacramentais, do texto clássico de Calderón de La Barca, feita sob a direção de Victor Garcia, que contou com atores como Sérgio Britto, Antonio Pitanga, Dionísio Azevedo, Jura Otero e Vera Manhães no elenco, entre outros.

O surgimento da tecnologia do vídeo já permitia então que o cineasta captasse som e imagem simultaneamente com a sua câmera, sem ser obrigado a contar com mais pessoas e equipamentos. Assim ele pôde registrar, entre outras coisas: os encontros de Ruth Escobar e Victor Garcia com financiadores da peça; a remontagem de uma grande máquina projetada pelo diretor da peça para ser usada em cena (máquina que, apesar dos problemas que provocou, acabou nunca ficando pronta para o espetáculo); alguns momentos de intimidade entre pessoas da equipe; e uma longa e tensa discussão entre a produtora, o diretor, o assistente de direção (Carlos Augusto Strazzer) e o elenco. Uma vez que Jouez encore, payez encore foi montado, esse material apresentava a narrativa de um período de tensões e disputas de poder até a redenção: os letreiros finais nos dão informações sobre o grande sucesso que o espetáculo obteve junto ao público.

Este enredo de superação, no entanto, não foi suficiente para impedir que os conflitos ocorridos durante o processo de ensaios se prolongassem ao longo de todo o processo de finalização e difusão do filme (e, de certo modo, até os dias de hoje). Insatisfeita com o retrato feito por Tonacci, a produtora Ruth Escobar – que havia financiado inteiramente a filmagem, dando liberdade ao diretor, e depois também pagou a transposição do material feito em vídeo para o suporte de negativo 16mm – não aceitou que o filme fosse exibido com o corte final determinado pelo cineasta. Depois de obter os negativos (produzidos num processo de transfer na época bastante raro), naquele momento ela decidiu que a única cópia do filme não poderia ser mais projetada e chegou a requisitar que a polícia interrompesse uma aula de Paulo Emilio Salles Gomes na USP para apreender essa cópia – sem sucesso nessa ocasião, pois a polícia foi enganada e acabou levando uma cópia de outro filme. Paulo Emilio escondeu a cópia em sua casa por alguns anos até falecer, quando sua viúva Lygia Fagundes Telles a devolveu para Tonacci.

Segundo longa de um cineasta do vulto de Andrea Tonacci, filmado com equipamento de vídeo nunca usado num filme brasileiro (usado em raríssimos filmes, na verdade), registrando uma peça de produção tão grandiosa, com elenco notável sob a batuta do chileno Garcia e a produção de Escobar, tornando-se posteriormente a base da longa controvérsia: todo esse percurso aventureiro já tornaria Jouez encore, payez encore um filme de considerável importância histórica. Mas, para além desse valor documental, o filme tem encantos próprios que o tornam bastante significativo. Antes de tudo, pelo estilo: Tonacci registra os fatos que se passam diante da sua câmera com agilidade e inquietação (como que se pudesse encontrar nos rostos das pessoas alguma origem para a obra que estavam fazendo); e, ao mesmo tempo, o filme demonstra ter consciência de que precisa inventar uma narrativa que nos dê caminhos para entender o que se passou.

Por isso, o filme indica e propõe sentidos para as cenas que nos apresenta, como se pudéssemos compreender um pouco mais o que é o processo de criação coletiva de uma peça. Assim, para poder traçar o percurso de crise e superação do grupo que produziu Autos Sacramentais, Jouez encore, payez encore precisa se tornar uma espécie de filme de investigação, um thriller de suspense (como hoje, quase quarenta anos depois, parece ter se tornado moda num certo cinema documental) que aos poucos vai delineando seus personagens. Em cada cena e em cada fala que precedem o conflito coletivo, o filme nos propõe desvendar o que está sendo dito e subentendido para entender a origem da crise – e, por que não?, também da superação que se seguiu

Alguns críticos já apontaram o evidente parentesco entre este filme e o chamado Cinema Direto, estilo de documentário desenvolvido nos EUA por cineastas como Richard Leacock e os irmãos Maysles em que, numa definição sucinta, a câmera pretende unicamente registrar a realidade, sem pretender intervir nela. No entanto, é preciso notar que, se Jouez encore, payez encore de fato se aproxima do Cinema Direto ao documentar o processo de encenação dos Autos Sacramentais, não o faz sem apontar problemas. Se muito já foi dito sobre a inevitável interferência nas atitudes dos personagens provocada pela presença de uma câmera ligada, isso é percebido com consciência pelas pessoas retratadas no filme – isso lhes é claro justamente porque eles próprios são atores, afinal de contas. Sendo assim, o filme apresenta momentos em que a presença da câmera é apontada por eles como algo desconfortável e também como possível provocadora de atitudes falsas, chegando ao ponto de precisar ser censurada e impedida de registrar determinados instantes.

Isso ocorre num momento-chave do filme, quando a discussão entre produtora e elenco chega ao seu momento mais tenso. E este é outro encanto fundamental de Jouez encore, payez encore: o episódio narrado pelo filme é bastante intrigante e revelador – não da personalidade de uma ou outra pessoa que aparece diante da câmera, mas sobretudo dos processos, traumas e consequências de um projeto de criação coletiva, tal como é a produção de uma peça de teatro encenada ao longo de meses antes de se apresentar. Ao longo do período filmado, existe uma questão bastante complicada em torno da produção da tal grande máquina, que seria usada por Victor Garcia para que os atores fizessem suas cenas em diferentes planos espaciais. Esta máquina, que não chegou a ficar pronta para as apresentações, é um dos motivos para que as discussões se tornem tensas, até chegar o momento em que, instado pelos questionamentos severos da produtora Ruth Escobar, o grupo passa por uma discussão bastante agressiva e catártica.

O filme nos mostra a trajetória em busca de recursos para a montagem da máquina, o processo dos ensaios, alguns instantes de intimidade e, finalmente, este momento de confronto entre produtora, diretor, assistente de direção e atores do elenco. Este tipo de bate-boca já é uma espécie de clichê em montagens teatrais, uma constante já reconhecível para quem é da área. No entanto, estes momentos de crise revelam de forma bastante clara os papéis escolhidos por cada um, determinantes em suas trajetórias. Nesse sentido, se o filme nos mostra a força irada com que Escobar investe contra os diretores e não nos esconde o constrangimento explicitado por Carlos Augusto Strazzer, assistente de direção (é ele quem aponta a câmera e questiona Escobar sobre o “numerozinho” em frente ao elenco), Jouez encore, payez encore visivelmente escolhe um herói, aquele que afirma a sua força e sua dignidade: é Antonio Pitanga que enfrenta os questionamentos com firmeza. Aquilo que Strazzer denuncia é tornado explícito pelo filme: de certa maneira, ele nos leva a perceber que um registro documental sobre o processo teatral precisa compreender os aspectos teatrais das relações humanas. Desse modo, podemos decifrar os papéis que cada um assume diante das circunstâncias. Não é por acaso que pouco depois vemos Pitanga no palco, cheio de energia durante a apresentação da peça.

No entanto, ao retratar essa movimentação coletiva Jouez encore, payez encore não se resume a heroificar a atitude de Antonio Pitanga, explicar as razões de Victor Garcia ou mostrar o trabalho de Ruth Escobar - mais do que isso, o registro dos conflitos do processo para constituir uma obra de arte (a peça teatral) acaba por revelar sentimentos e questões humanas com um grau de verdade e força que só grandes trabalhos conseguem. Desse modo, Jouez encore, payez encore acaba se tornando o duplo perfeito de Bang bang, o outro lado da moeda do primeiro longa de Tonacci: se Bang bang teatralizava a própria experiência narrativa, abandonando a realidade em favor da invenção, Jouez encore, payez encore narra a experiência teatral, tirando sua força da capacidade de enxergar a vida por trás do teatro. A potência dessas experiências talvez tenha sido decisiva para que o cineasta viesse a reorientar sua câmera para registrar outras formas de relações sociais: nos anos seguintes, como se sabe, Tonacci se dedicou a fazer filmes documentários em comunidades indígenas, junto com seus integrantes, como fez em Conversas no Maranhão e na série Os Arara.


Quanto a Jouez encore, payez encore, sempre esteve praticamente inacessível – somente em 1995 Andrea Tonacci e Ruth Escobar chegaram a um acordo inicial para que fosse feita uma versão mais curta do filme, que circulou desde então em sessões de cineclubes e mostras de cinema. Felizmente, depois de muitos anos de conversas, a produtora terminou por autorizar expressamente a circulação e difusão do filme em sua versão integral. Isso, no entanto, até hoje não bastou para que Jouez encore, payez encore se tornasse acessível. Mais do que isso, nos dias de hoje está em risco a sobrevivência deste filme. De posse dos negativos, atualmente Tonacci procura resolver os derradeiros pormenores jurídicos e obter apoio financeiro para promover a restauração do filme, agora em sua versão integral, com a produção de uma nova cópia para que enfim possa ser visto pelo público. A nós, resta torcer e fazer votos para que isso aconteça o mais rápido possível.


















Publicado na revista Filme Cultura nº 56, de junho de 2012.