Jouez encore, payez
encore é um documentário feito entre 1974 e 1975, um filme que desde o seu
princípio teve uma trajetória especialmente aventureira. Ele foi rodado quase
integralmente num sistema de vídeo – em fitas de ½ polegada, da Sony, uma tecnologia
inovadora naquela época, que havia sido apresentada ao mundo poucos meses antes
– para em seguida ser transferido para o tradicional suporte de película. É o
segundo longa metragem dirigido por Andrea Tonacci, cuja trajetória estava profundamente
ligada ao grupo que já se convencionou chamar de Cinema Marginal: depois de ter
dirigido o curta Olho por olho, o
média Blá blá blá e o longa Bang Bang, Tonacci foi contratado pela
produtora Ruth Escobar para fazer este documentário com os registros do período
de ensaio, os bastidores de produção e as apresentações da peça Autos Sacramentais, do texto clássico de
Calderón de La Barca, feita sob a direção de Victor Garcia, que contou com
atores como Sérgio Britto, Antonio Pitanga, Dionísio Azevedo, Jura Otero e Vera
Manhães no elenco, entre outros.
O surgimento da tecnologia do vídeo já permitia então que o
cineasta captasse som e imagem simultaneamente com a sua câmera, sem ser
obrigado a contar com mais pessoas e equipamentos. Assim ele pôde registrar,
entre outras coisas: os encontros de Ruth Escobar e Victor Garcia com
financiadores da peça; a remontagem de uma grande máquina projetada pelo
diretor da peça para ser usada em cena (máquina que, apesar dos problemas que
provocou, acabou nunca ficando pronta para o espetáculo); alguns momentos de
intimidade entre pessoas da equipe; e uma longa e tensa discussão entre a produtora,
o diretor, o assistente de direção (Carlos Augusto Strazzer) e o elenco. Uma
vez que Jouez encore, payez encore
foi montado, esse material apresentava a narrativa de um período de tensões e
disputas de poder até a redenção: os letreiros finais nos dão informações sobre
o grande sucesso que o espetáculo obteve junto ao público.
Este enredo de superação, no entanto, não foi suficiente
para impedir que os conflitos ocorridos durante o processo de ensaios se prolongassem
ao longo de todo o processo de finalização e difusão do filme (e, de certo
modo, até os dias de hoje). Insatisfeita com o retrato feito por Tonacci, a
produtora Ruth Escobar – que havia financiado inteiramente a filmagem, dando
liberdade ao diretor, e depois também pagou a transposição do material feito em
vídeo para o suporte de negativo 16mm – não aceitou que o filme fosse exibido
com o corte final determinado pelo cineasta. Depois de obter os negativos (produzidos
num processo de transfer na época bastante
raro), naquele momento ela decidiu que a única cópia do filme não poderia ser
mais projetada e chegou a requisitar que a polícia interrompesse uma aula de
Paulo Emilio Salles Gomes na USP para apreender essa cópia – sem sucesso nessa
ocasião, pois a polícia foi enganada e acabou levando uma cópia de outro filme.
Paulo Emilio escondeu a cópia em sua casa por alguns anos até falecer, quando
sua viúva Lygia Fagundes Telles a devolveu para Tonacci.
Segundo longa de um cineasta do vulto de Andrea Tonacci,
filmado com equipamento de vídeo nunca usado num filme brasileiro (usado em
raríssimos filmes, na verdade), registrando uma peça de produção tão grandiosa,
com elenco notável sob a batuta do chileno Garcia e a produção de Escobar,
tornando-se posteriormente a base da longa controvérsia: todo esse percurso
aventureiro já tornaria Jouez encore, payez
encore um filme de considerável importância histórica. Mas, para além desse
valor documental, o filme tem encantos próprios que o tornam bastante
significativo. Antes de tudo, pelo estilo: Tonacci registra os fatos que se
passam diante da sua câmera com agilidade e inquietação (como que se pudesse
encontrar nos rostos das pessoas alguma origem para a obra que estavam
fazendo); e, ao mesmo tempo, o filme demonstra ter consciência de que precisa
inventar uma narrativa que nos dê caminhos para entender o que se passou.
Por isso, o filme indica e propõe sentidos para as cenas que
nos apresenta, como se pudéssemos compreender um pouco mais o que é o processo
de criação coletiva de uma peça. Assim, para poder traçar o percurso de crise e
superação do grupo que produziu Autos
Sacramentais, Jouez encore, payez
encore precisa se tornar uma espécie de filme de investigação, um thriller
de suspense (como hoje, quase quarenta anos depois, parece ter se tornado moda
num certo cinema documental) que aos poucos vai delineando seus personagens. Em
cada cena e em cada fala que precedem o conflito coletivo, o filme nos propõe
desvendar o que está sendo dito e subentendido para entender a origem da crise
– e, por que não?, também da superação que se seguiu
Alguns críticos já apontaram o evidente parentesco entre
este filme e o chamado Cinema Direto, estilo de documentário desenvolvido nos
EUA por cineastas como Richard Leacock e os irmãos Maysles em que, numa
definição sucinta, a câmera pretende unicamente registrar a realidade, sem pretender
intervir nela. No entanto, é preciso notar que, se Jouez encore, payez encore de fato se aproxima do Cinema Direto ao
documentar o processo de encenação dos Autos
Sacramentais, não o faz sem apontar problemas. Se muito já foi dito sobre a
inevitável interferência nas atitudes dos personagens provocada pela presença
de uma câmera ligada, isso é percebido com consciência pelas pessoas retratadas
no filme – isso lhes é claro justamente porque eles próprios são atores, afinal
de contas. Sendo assim, o filme apresenta momentos em que a presença da câmera
é apontada por eles como algo desconfortável e também como possível provocadora
de atitudes falsas, chegando ao ponto de precisar ser censurada e impedida de
registrar determinados instantes.
Isso ocorre num momento-chave do filme, quando a discussão
entre produtora e elenco chega ao seu momento mais tenso. E este é outro
encanto fundamental de Jouez encore, payez
encore: o episódio narrado pelo filme é bastante intrigante e revelador –
não da personalidade de uma ou outra pessoa que aparece diante da câmera, mas
sobretudo dos processos, traumas e consequências de um projeto de criação
coletiva, tal como é a produção de uma peça de teatro encenada ao longo de meses
antes de se apresentar. Ao longo do período filmado, existe uma questão bastante
complicada em torno da produção da tal grande máquina, que seria usada por
Victor Garcia para que os atores fizessem suas cenas em diferentes planos
espaciais. Esta máquina, que não chegou a ficar pronta para as apresentações, é
um dos motivos para que as discussões se tornem tensas, até chegar o momento em
que, instado pelos questionamentos severos da produtora Ruth Escobar, o grupo
passa por uma discussão bastante agressiva e catártica.
O filme nos mostra a trajetória em busca de recursos para a
montagem da máquina, o processo dos ensaios, alguns instantes de intimidade e,
finalmente, este momento de confronto entre produtora, diretor, assistente de
direção e atores do elenco. Este tipo de bate-boca já é uma espécie de clichê
em montagens teatrais, uma constante já reconhecível para quem é da área. No
entanto, estes momentos de crise revelam de forma bastante clara os papéis
escolhidos por cada um, determinantes em suas trajetórias. Nesse sentido, se o
filme nos mostra a força irada com que Escobar investe contra os diretores e
não nos esconde o constrangimento explicitado por Carlos Augusto Strazzer,
assistente de direção (é ele quem aponta a câmera e questiona Escobar sobre o
“numerozinho” em frente ao elenco), Jouez
encore, payez encore visivelmente escolhe um herói, aquele que afirma a sua
força e sua dignidade: é Antonio Pitanga que enfrenta os questionamentos com
firmeza. Aquilo que Strazzer denuncia é tornado explícito pelo filme: de certa
maneira, ele nos leva a perceber que um registro documental sobre o processo
teatral precisa compreender os aspectos teatrais das relações humanas. Desse
modo, podemos decifrar os papéis que cada um assume diante das circunstâncias.
Não é por acaso que pouco depois vemos Pitanga no palco, cheio de energia
durante a apresentação da peça.
No entanto, ao retratar essa movimentação coletiva Jouez encore, payez encore não se resume
a heroificar a atitude de Antonio Pitanga, explicar as razões de Victor Garcia
ou mostrar o trabalho de Ruth Escobar - mais do que isso, o registro dos
conflitos do processo para constituir uma obra de arte (a peça teatral) acaba
por revelar sentimentos e questões humanas com um grau de verdade e força que
só grandes trabalhos conseguem. Desse modo, Jouez
encore, payez encore acaba se tornando o duplo perfeito de Bang bang, o outro lado da moeda do
primeiro longa de Tonacci: se Bang bang
teatralizava a própria experiência narrativa, abandonando a realidade em favor
da invenção, Jouez encore, payez encore
narra a experiência teatral, tirando sua força da capacidade de enxergar a vida
por trás do teatro. A potência dessas experiências talvez tenha sido decisiva
para que o cineasta viesse a reorientar sua câmera para registrar outras formas
de relações sociais: nos anos seguintes, como se sabe, Tonacci se dedicou a
fazer filmes documentários em comunidades indígenas, junto com seus
integrantes, como fez em Conversas no
Maranhão e na série Os Arara.
Quanto a Jouez
encore, payez encore, sempre esteve praticamente inacessível – somente em
1995 Andrea Tonacci e Ruth Escobar chegaram a um acordo inicial para que fosse
feita uma versão mais curta do filme, que circulou desde então em sessões de
cineclubes e mostras de cinema. Felizmente, depois de muitos anos de conversas,
a produtora terminou por autorizar expressamente a circulação e difusão do
filme em sua versão integral. Isso, no entanto, até hoje não bastou para que Jouez encore, payez encore se tornasse
acessível. Mais do que isso, nos dias de hoje está em risco a sobrevivência
deste filme. De posse dos negativos, atualmente Tonacci procura resolver os derradeiros
pormenores jurídicos e obter apoio financeiro para promover a restauração do
filme, agora em sua versão integral, com a produção de uma nova cópia para que
enfim possa ser visto pelo público. A nós, resta torcer e fazer votos para que
isso aconteça o mais rápido possível.
Publicado na revista Filme Cultura nº 56, de junho de 2012.
Publicado na revista Filme Cultura nº 56, de junho de 2012.