Como você vê o seu cinema em relação aos filmes do outros jovens realizadores dos últimos anos? Quais são as proximidades e as distâncias que você percebe?
Helvécio Marins: Eu
não me identifico com isso que chamam de “novíssimo”. Eu costumo brincar com a
expressão do “cinema de caixinha”. A cada hora surge uma para encaixar os
filmes que estão sendo feitos: agora é a caixinha do cinema dos coletivos, dos
“novíssimos”, antes era o da “videoarte” e por aí vai... Pessoalmente eu me identifico com alguns dos
chamados novíssimos, mas artisticamente estou noutra. Além disso, sou de uma
geração intermediária, que lidou com a mudança de tecnologia, as formas de
produção. Até mesmo a cinefilia: a gente tinha que ver os filmes em VHS,
cinematecas, festivais, cineclubes... Há pouco tempo, em 2001 ou 2002, os
festivais no Brasil ainda estavam engatinhando para aceitar filmes em
diferentes suportes. Antes os filmes eram separados em competições diferentes,
competição em 35mm, 16mm, vídeo. A minha geração ainda associou o cinema à
película, montei o meu primeiro curta na moviola, quer dizer, eu não sou tão
“novíssimo” assim. (este ano chego aos 40). Não quero ser leviano, eu gosto de
alguns filmes dessa galera, mas a maioria não me agrada.
Por outro lado, pouco
depois que você e a Clarissa Campolina filmaram o curta Trecho, Cao Guimarães fez o Andarilho – e são dois filmes com várias
características em comum, mesmo que vocês sejam de gerações diferentes.
Pois é, tem essa relação mesmo. E, como um pessoal precisa
achar uma caixinha para dar nome, já começaram a falar na “vídeo-arte mineira”,
apesar dos filmes terem fotografia naturalista, cortes secos etc - ou seja,
linguagem cinematográfica. Há quanto tempo que não se revê esse conceito de
vídeo-arte? Depois que eu tanto reclamei da “videoarte”, virou “experimental”,
uma nova caixinha. Enfim, eu acho que essa proximidade tão grande entre os
filmes acabou sendo uma “infeliz coincidência”, mesmo que o projeto de Trecho tenha sido pensado em 2003 e
filmado em 2005 - Andarilho foi feito
anos depois. Mesmo assim, acho os dois filmes bem diferentes, principalmente em
termos de abordagem e na forma de tratar os personagens. Mas para os que adoram
uma caixinha foi um belo presente!
Tanto Trecho como Girimunho procuram “ouvir uma voz”, registrar uma certa prosódia popular – tanto
que Girimunho foi relacionado muitas
vezes com os textos do Guimarães Rosa.
Guimarães Rosa... é complicado. Grande Sertão: Veredas talvez seja a
obra de arte da minha vida, mas já falaram também que Nascente era inspirado em A
terceira margem do rio. Eu agradeço, é uma honra, mas eu nunca pensei
nisso, cada um no seu lugar, jamais quero me comparar ao um artista do nível do
Rosa. Claro que existe alguma inspiração - se você ouvir a Bastu ou a Dona
Maria falando, naturalmente o fraseado delas remete a alguns personagens do
Guimarães Rosa, não só do Grande Sertão,
mas também do Magma, onde há um poema
chamado Batuque, e por aí vai... Coincidências
existem, mas nada foi escolhido em função disso. Girimunho tem personalidade própria, é um filme de um Brasil
interiorano, contemporâneo, desconhecido dos próprios brasileiros, com seu
vocabulário e sintaxe regional. E este regional é autêntico, sintetiza a
condição humana e psicológica das personagens - isso vem de uma longa
observação da vida sertaneja, da vida deles, da paixão que tenho por aquele
lugar, por aquelas pessoas. Foi um prazer enorme e aprendi muito com eles
durante os oito anos de pesquisa (eu continuo indo visitá-los, anos após o filme)
E essa experiência documentária, essa convivência e intimidade durante tanto
tempo, deu lugar a um estudo profundo, a observação daquele cotidiano e à
invenção da história (devo muito a Felipe Bragança) que contamos no filme. Como
diz Antônio Cândido: “Tudo se transforma em significado universal graças à
invenção, que subtrai a obra do regionalismo para fazê-lo exprimir os grandes
lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor,
morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco
é acessório e, na verdade, o Sertão é o mundo”.
E seus próximos
projetos?
Desde que saí da Teia, ando escrevendo muito. Aprendi muito
com o Bragança. Dois projetos estão mais adiantados. Um deles é A mulher do homem que come raio laser,
inspirado pela canção O circo chegou,
do Jorge Ben. Não é um filme de circo, e eu já nem sei se vou usar a canção –
mas este é um filme digamos, 100% ficção e com “atores profissionais”. O outro ainda
tem título provisório, por enquanto se chama Fazenda bordada, mas deve mudar. Esse é um filme mais próximo de Girimunho, com personagens reais
interpretando a si mesmos, e se passa numa fazenda no noroeste de Minas.
Filmes faróis
Odeio listas. Recentemente rejeitei um convite de uma
revista inglesa, pois julgava impossível eleger apenas dez filmes da história
do cinema. Dessa vez, o convite da Filme Cultura era irrecusável, mas consegui
convencer a equipe da revista a me deixar fazer uma lista com dez filmes
internacionais e dez brasileiros. Para minha sorte, aceitaram. A única ressalva
é que, por motivos de espaço, os curtíssimos comentários sobre as obras se
restringiram apenas à primeira lista. Tentei... Provavelmente amanhã escolheria
outros dez filmes.
Da lista dos dez internacionais, antecipo duas calamidades
gravíssimas. Não tem nenhum filme dos Estados Unidos! E nenhum filme do Godard,
o cara que sempre considerei meu cineasta favorito! Vai entender... por essas,
odeio listas! Qualquer um dos dez brasileiros poderia estar listado junto dos dez
“gringos”. Estão em ordem alfabética e eu optei por não repetir filmes de um
mesmo cineasta.
1 – A Noite, de
Michelangelo Antonioni
Antonioni é pra mim a elegância na forma de abordar e
filmar. Blow up, O Eclipse...
2 – Os irmãos da
família toda, de Yasujiro Ozu
Ozu é quem mais me fez amar o cinema.
3 – Close-up, de Abbas Kiarostami
Filme-Cinema. Talvez o meu mestre contemporâneo.
4 – Era uma vez no
Oeste, de Sergio Leone
Pra deixar um Ford fora da lista, só mesmo Leone.
5 – Ivan Rublev,
de Andrei Tarkovsky
O cineasta que mais me instigou e fez pensar (até um minuto atrás seria O Espelho... e Stalker?)
6 – O Espírito da
Colméia, de Victor Erice
O mais puro encantamento que um filme provocou em mim.
7 – O Rio, de Jean
Renoir
O filme que é mais a minha cara.
8 – Persona, de
Ingmar Bergman
O realizador que mais contribuiu para elevar os meus
sentidos.
9 – Shoah, de
Claude Lanzmann
Jamais senti tanta dor ao ver um filme. E tem quase dez
horas de duração.
10 – Um condenado à
morte escapou, de Robert Bresson
O realizador que mais me inspirou a fazer cinema.
+ dez brasileiros:
1 – A hora e a vez de
Augusto Matraga
2 – Cabaret mineiro
3 – Cabra marcado para
morrer
4 – Iracema, uma
transa amazônica
5 – Limite
6 – O bandido da luz
vermelha
7 – São Bernardo
8 – Serras da desordem
9 – Terra em transe
10 – Vidas secas
Nota de pesar: Ganga
Bruta de fora? Como?
Entrevista publicada na Filme Cultura nº 59, de abril de 2013
Entrevista publicada na Filme Cultura nº 59, de abril de 2013