26/02/2009

Câmera, morte, vida e vida - sobre Camera, de David Cronenberg

Photography is death. A fotografia , ao registrar um instante, registra a morte daquele instante. O rosto filmado de um ator é como uma máscara mortuária – o ator se transformará futuramente, e aquele rosto nunca mais vai existir senão em sua representação fotográfica. Atira-se (to shoot, em inglês, o mesmo termo usado para ‘filma-se’) em nome de quê? Da vida – ou do entretenimento. Não é assim mesmo?

O filme Câmera é um curta-metragem de pouco menos de sete minutos, escrito e dirigido por David Cronenberg e produzido em comemoração ao aniversário de 25 anos do Festival de Cinema de Toronto. Os diretores do Festival queriam ter um pequeno filme que falasse do cinema. Tiveram Câmera. Saíram no lucro.

Pode-se resumir a narrativa a um ensaio de um ator enquanto filmagens estão sendo preparadas à sua volta – e, quando começa a rodar o texto que estava sendo ensaiado, ele parece compreender e emocionar-se com o que disse até então. Esse é só o truque narrativo, porque há detalhes insólitos que terminam por justificar plenamente o estado de choque em que entra o ator quando vai repetir seu discurso. Para começar, quem nos fala é um senhor que parece tecer comentários sobre o que estamos vendo – um bando de crianças que, inexplicavelmente, estão preparando uma filmagem como autênticos profissionais de cinema. É assim que começa o filme, apresentando de cara esta situação – ouvimos a narração: "Um dia, as crianças trouxeram para casa uma velha câmera, não sei onde a encontraram, e ficaram terrivelmente excitadas. Resolveram fazer um filme...", enquanto vemos a cena bizarra de várias crianças pilotando uma câmera profissional numa grua dolly (com rodinhas).

Se esta cena é insólita, o depoimento por sua vez é o mais plausível que seu tom agônico permite. Depois de nos apresentar este estranho mundo do cinema das crianças, o narrador nos conta que era ator e que perdeu o interesse por câmeras e filmagens – afinal, como ele nos diz, fotografia é morte, e isso para um ator não é um tema abstrato. Ele não queria que aquele filme fosse adiante – crianças e morte são uma péssima combinação, como ele nos adverte. Conta-nos então de um pesadelo que teve, de estar presente numa sessão de um filme em uma sala de cinema e perceber que ele e todos os presentes estavam sendo envelhecidos rapidamente enquanto assistiam ao filme, como se da tela saísse uma "doença do filme" – pesadelo esse que o acordava apavorado. E, no entanto, agora o pesadelo era real. Conforme o tempo passou, assistindo aos seus filmes antigos, percebeu que o pesadelo se transformava em realidade – fotografia é morte – e nos convida a confirmar isso em seu rosto envelhecido.

Mas, enfim, não adianta ele chegar a todas essas conclusões, as crianças resolveram brincar a sério com a câmera, vão rodar um filme e ele vai ter que fazer parte disso – "as crianças, vocês sabem, quando teimam em fazer uma coisa...". Além disso, com o tempo, ele reconhece, ele já foi assimilando melhor as idéias, passando a ter uma relação não mais que "melancólica" com a câmera. Afinal de contas, a câmera também já está velha, já lhe parece uma conhecida de longa data. E é importante lembrar que as crianças estavam se divertindo, e tudo aquilo parecia ser ‘puro e inocente’ – "ainda que nada nesse caso possa ser considerado puro ou inocente".

Então, tudo pronto, hora de rodar – a imagem que víamos até então era feita em vídeo digital. A criança que representa o diretor-autor do grupo dá o sinal: "ação!", e então surge para nós o plano filmado – o único feito em película em Câmera. Nosso narrador, maquiado e bem-iluminado como não esteve em nenhum outro momento, começa seu discurso: "Um dia, as crianças trouxeram para casa uma velha câmera, não sei onde a encontraram, e ficaram terrivelmente excitadas...". Ele repete a fala inicial. Neste momento entendemos que todo aquele depoimento emocionado era um "ensaio". Só então que isso fica claro – era um ator ensaiando o discurso feito por um ator. Mas aí algo acontece. Como dizem os paulistas, cai a ficha. Não há mais para o ator distância entre ele e o personagem – a câmera o desnudou. Nessa hora, o discurso ensaiado já foi dito, e basta o silêncio – do qual somos cúmplices – e a tristeza que se abate por parecer saber o script de cor.

Se há cinema para as crianças, mal ou bem, todos podemos ser um pouco crianças – e que bom que as crianças sabem se divertir. A câmera pode matar o instante que registra, mas é ela que cria os instantes que por si só nunca existiriam – como o filme nos mostra, a câmera traz à tona o silêncio final e a vida transborda no filme. As crianças se divertem – e que bom que podemos participar, que bom que somos todos crianças. Se filma-se e atira-se por entretenimento, se a fotografia é morte de forma tão infantil, que a nossa melancolia nos conceda que, por vezes, isso pareça ‘puro e inocente’, ainda que ‘puro e inocente’ sejam termos que raramente podem ser aplicados nesses casos.

Cronenberg fez um filme de sete minutos que explicitou e denunciou a ‘doença da tela’ – mas que mal faz ela por si só? Não será que ela apenas nos espelha?

Ao olhar o cinema, é um filme que fala da velhice e da juventude, da morte, da vida, da vida que se renova e que produz, irresponsável e teimosa. Só que é um filme amargo, melancólico como só ele – em seus poucos instantes nós nos damos conta de como somos crianças empolgadas e como somos velhos melancólicos, e como uma coisa sucede a outra natural(e cruel?)mente.

Curto como é, no entanto é também, possivelmente, o maior filme do ano. Se, por um lado, retoma vários dos temas que sempre interessaram a Cronenberg (como a tal ‘doença do filme’ ou a transformação causada pelas estranhas relações com a tecnologia), esse filme se torna um marco em sua carreira pela melancolia definitiva (e até carinhosa) que dá tom ao filme, como a nenhum outro até então – além disso, há um sincero e revelador carinho pelos filmes que as crianças fazem.

É preciso acrescentar, finalmente, que a atuação de Leslie Carlson é de entrar para a história da velhice melancólica – que bom que uma câmera a registrou.



Texto publicado em dezembro de 2001