06/02/2009

Os corpos e algo além (sobre os filmes de Nagisa Oshima)




A forte presença da comunidade japonesa, sobretudo em São Paulo, sempre permitiu que perspectivas e relações bastante interessantes fossem percebidas pelos olhares daqui. Para nós do extremo ocidente por vezes as aproximações com esta cultura bastante distante da nossa são capazes de provocar alguns saudáveis abalos nas convicções - afinal, se a perspectiva latino-americana surge como uma versão alternativa, desterrada, da cultura eurocêntrica, o lugar oriental traz a impressão de um distante e milenar caminho alternativo, como sendo “o outro de nosso outro”. Nesse sentido, é especialmente intrigante quando podemos observar certos movimentos acontecerem em relativa sincronia entre lugares e culturas tão marcadamente separados - é o que acontece quando nos deparamos com diversos objetos artísticos que, num mesmo momento histórico (ou ao menos parecendo incluir-se numa mesma trajetória de fatos), são criados com a intenção de confrontarem tabus de seu tempo, sejam da sociedade ou do próprio meio de expressão. Isto pode ser percebido em alguns filmes de várias partes do mundo realizados durante os anos 50 a 70, todos eles com imagens que traziam inovações de linguagem e geravam uma ampla revisão dos cânones sociais e estéticos (já bem conhecida e estudada), nisso que se convencionou chamar de cinema moderno.

Não é novidade que uma motivação constante para as obras de arte seja seu papel como agente do confronto com as normas - isto nunca foi novidade na tradição ocidental. Mas, como foi notado por diversos artistas e críticos em diversos momentos, desde o período do romantismo (de Victor Hugo a Baudelaire...), nos últimos séculos a provocação de mal-estar e a visão do proibido se tornaram cada vez mais constantes. A sensação de equilíbrio e harmonia buscada pela beleza clássica, pouco a pouco, perdeu sua força e presença diante de um movimento de obras dispostas a incomodar e desestabilizar as crenças e paixões de quem vê: o papel da arte é incomodar.

Mas isto se deu no Ocidente europeu - pelo menos desde o momento que marca a modernidade, a Revolução Francesa, se lembrarmos dos escritos de Sade. Desde então, é constante o surgimento de obras que procuram gerar mal-estar para, assim, gerar uma alteração no humor de quem assiste para levar a um outro estado - o do contato com uma “verdade” que, se puder ser suportada, torna-o mais forte. No entanto, se essa constância na arte ocidental dos últimos séculos pode ser percebida e compreendida dentro de uma trajetória histórica do pensamento que procurou se libertar da tradição do idealismo e tratar das coisas próprias dos homens, o mesmo não valeria para as ressonâncias que essa trajetória despertou em outros lugares - como despertou dentro da história e da arte orientais.

Nesse sentido, parece-me realmente fascinante o incômodo que certos filmes de Nagisa Oshima buscam e conseguem causar nas suas platéias. Fascinante pelo grau de risco e entrega que estes filmes apresentam - e justamente devido a isso se tornam objetos de repulsa e proibição em diversos lugares do mundo. Essa simetria permite chegar a uma conclusão evidente - que o uso da arte como maneira de provocar transtornos na sensibilidade de quem vê não é uma característica apenas da modernidade européia e seus filhotes; que talvez seja uma atitude indiscernível da própria criação artística. Só que esta conclusão não diminui o efeito (que me parece ser inquietante até os dias de hoje, embora seja velhíssimo) de perceber a simultaneidade dos movimentos que ocorreram em vários países no mesmo período - uma simultaneidade indicando que, ainda que lugares como o Japão outro contexto cultural, inteiramente diverso, os efeitos da modernidade européia ressoaram mundo afora e obtiveram respostas ainda mais radicais do que as que nasciam internamente.

Certos filmes de Oshima atacam tabus acerca do que o cinema tem de mais duro e indomável - a visão dos próprios corpos - com uma radicalidade sem igual. É o caso de seu filme mais conhecido no Brasil, O Império dos Sentidos - que, como alguns de seus outros filmes (Max Mon Amour ou o mais recente Tabu, por exemplo), mostra os efeitos do desequilíbrio entre as relações causado pelo desejo. Mas O Império dos sentidos vai além: o filme mostra os corpos dos amantes se entregando a uma batalha interminável em busca do instante definitivo de amor, num movimento crescente de obsessão que por princípio não tem como ser apaziguado. Na história de entrega física do casal Kichizo e Sada, seus corpos se apresentam e se interpenetram diante dos nossos olhos sem pudores. Como disse, estes pudores se mostraram amplamente pelo mundo afora, sinalizando que os tabus de nudez e sexo explícito infringidos pelo filme são mais profundos do que a tradição cultural do lugar de onde vieram.

O que me interessa notar é que essa explicitação da entrega de corpos entre os amantes (para além da beleza própria que o filme mostra ao apresentá-los com notável paixão em sua visualidade) torna explícito, por conseqüência, como a entrega ao amor não suporta se restringir aos corpos - e talvez seja esta uma razão tão ou mais forte que a visão dos corpos nus ou do ato sexual, para o filme despertar tamanho incômodo a uma certa moral apaziguante (e por isso ter sido censurado em tantos lugares). Em O Império dos Sentidos a satisfação sexual nunca é o bastante para a sensação de plena entrega - como se fosse preciso entregar uma parte do corpo que não está no corpo, e por isso eles precisam se envolver e se entregar cada vez mais a cada momento, precisam ir cada vez mais além do que podem suportar. Por essa razão é que surge a possessividade e pela mesma razão é que é preciso envolver no jogo de sexo qualquer figura que se aproxime; por essa razão a entrega plena dos corpos passa a ser o único caminho para realizar de forma definitiva o amor - e, assim, congelar o tempo. Se até certo momento Kichizo procura esconder de sua esposa a relação com a empregada Sada, logo precisa abdicar dessa posição. Os instantes em que os dois permanecem juntos têm tamanho valor que a entrega sexual não pode permitir que haja tempo para limpar os aposentos, nem tampouco para qualquer alimentação que vá além do mínimo para seguir adiante. Mas cedo ou tarde o caminho dos amantes acaba por se mostrar inescapável, porque na verdade não há outra alternativa: para tamanha e tão constante entrega física , a sombra do tempo eterno é a morte. Romântico até o limite, o destino de Sada indica a ironia: ela perde seu amante e, com ele, a razão. No entanto, como nos conta a narração, sua história tornou-lhe um personagem relativamente popular, como de fato acontece quando as pessoas tomam conhecimento de personagens reais de enredos fabulosamente românticos. Mas a popularidade de Sada guarda essa ironia, segundo nos mostra O Império dos Sentidos: ela se tornou conhecida entre as pessoas do seu tempo pelo grau de entrega e paixão de sua relação com Kichizo - no entanto, como vimos, essa entrega em nenhum momento foi satisfatória o bastante. As pessoas a admiravam por acreditarem que ela alcançou algo que, na verdade, nunca conseguiu deixar de perseguir.

Esta inquietação que surge da capacidade de sugerir uma entrega trangressivamente máxima e o desejo de ter ido além do que foi fisicamente possível parece ser parte da ambição do próprio filme. Investir contra os tabus é pouco para O Império dos Sentidos: mais do que isso, o filme parece ambicionar uma conciliação definitiva similar à de seus protagonistas: uma conciliação entre corpo e obra, entre vida e arte - e, assim, ele sintetiza diversas questões que caracterizavam a produção artística de um outro contexto cultural, este que acontecia no lado europeizado do mundo. A ironia em relatar a “estranha popularidade” que sua protagonista ganhou após os incidentes narrados indica que é um filme ciente de seus limites, mas confiante na sua capacidade de rompê-los e transtornar quem o assiste, com sua aposta numa entrega dos corpos imensamente superior a que estamos acostumados a suportar.


texto publicado na edição nº 4 da revista Reserva Cultural, em agosto de 2008.