06/02/2009

Lugares e momentos (sobre os filmes de Alain Resnais)




Hoje, após Alain Resnais assinar a realização de vários filmes ao longo de décadas, talvez nós possamos dizer que há um elemento decisivo que divide a sua produção em dois momentos: é exatamente a perspectiva histórica que os primeiros apresentam. Para além da obviedade rasteira de apontar que nos primeiros anos de carreira Resnais assinou diversos documentários e posteriormente só fez filmes de ficção, o que quero dizer é que esta noção de perspectiva histórica também pode ser apontada em Hiroshima Mon Amour e mesmo em O Ano Passado em Marienbad – que, talvez justamente por isso, são seus filmes mais lembrados e citados. Não é por acaso: de certo modo, até Marienbad o cinema de Resnais encarou questões centrais do que chamamos de era moderna; a partir de Muriel, seus filmes apresentam relações e questões que, de certo modo, já se faziam presentes em Hiroshima e em Marienbad – mas, se até este ponto os filmes assinados por Resnais tratavam de questões explicitamente próprias de um determinado momento, a partir de então seus filmes seguem outro caminho. Não estão mais no ambiente da reflexão histórica, mas nos ambientes das relações entre casais, da encenação dos personagens, dos sentimentos que eles apresentam, da imaginação... entre dramas e divertimentos, seus filmes passam a usar elementos atemporais.

Neste sentido, não é estranho que os primeiros projetos de Resnais tenham obtido maior ressonância. Ainda que eu tenha proposto a divisão mencionada no parágrafo anterior, é claro que qualquer filme – ou melhor, qualquer obra de arte – responde a seu tempo a partir das questões que escolhe para si – mas são raras, no entanto, as obras que refletem com tanta força sobre os aspectos críticos de seu tempo como estes filmes das primeiras décadas da carreira de Resnais. Me dei conta disso quando estava vendo o curta-metragem As Estátuas também morrem – que conjuga política e poesia, partindo da percepção do momento em que máscaras africanas se tornaram peças constantes de museus na Europa para refletir sobre etnocentrismo e racismo. É um pequeno filme impressionante sobre o papel social reservado ao negro na sociedade racista ocidental – feito em meados da década de 50. Este curta-metragem (co-assinado por Chris Marker) não é o único caso em que Resnais fez um filme que buscou refletir poeticamente sobre os aspectos e casos mais dramáticos do século XX – não é nem mesmo o primeiro: poucos anos antes, o curta Guernica partiu do célebre quadro de Picasso para tratar das feridas da guerra civil espanhola, que marcou a Europa pela violência dos combates e pela vitória do fascismo franquista; anos depois, ele assinou (com assistência do mesmo Marker) o impressionante Noite e Neblina, que apresentou os aspectos de planejamento e construção dos campos de extermínio nazistas e mostrou imagens documentadas no período de aprisionamento dos judeus pelo regime hitlerista; anos mais tarde, depois de já ter refletido sobre um dos dois grandes eventos trágicos que marcaram a metade do século XX – os campos de concentração nazistas -, Resnais realizou Hiroshima Mon Amour, um filme que refletiu sobre o outro evento trágico marcante daquele momento histórico, a explosão da bomba atômica. Como se sabe, além de, em sua primeira parte, exibir e relatar as conseqüências da bomba, o filme cria uma relação de amor entre uma francesa acusada de colaboracionismo com os nazistas e um japonês sobrevivente da guerra.

A idéia de que seria possível dividir os filmes da carreira de Resnais entre uma fase histórica e outra atemporal encontra o ponto de crise e virada no Ano Passado em Marienbad. Já é um filme ahistórico, até por ser um filme que confunde em forma de ficção as noções de tempo e memória. Mas, em meio a uma história de amor contada num interlúdio de tempo, Marienbad filia-se a um momento histórico do mesmo modo que Hiroshima, por conta de sua narrativa e do curto-circuito que ela provocava nas formas convencionais. Se, de certa forma, o interesse pelo ambiente das relações já guiava os dois filmes como guiaria os filmes seguintes de Resnais, Marienbad fez parte do seu tempo como os outros – cabe apontar a participação de Robbe-Grillet no projeto, em meio às suas defesas das inovações do Novo Romance e notar que o escritor (e mais tarde também cineasta) já havia trabalhado com narrativas enigmáticas em livros como La Jalousie.

Muito já se escreveu sobre a falência do projeto de modernidade europeu. No entanto, estes primeiros s filmes de Resnais podem oferecer uma síntese dos problemas que a corroeram: o racismo e a dominação étnica (As Estátuas também morrem), as conseqüências da guerra de bombardeios (Guernica) e, enfim, o uso do racionalismo científico para matar (Noite e Neblina) e destruir (Hiroshima mon amour); fez, em seguida, O Ano Passado em Marienbad: um filme sobre o que é narrar, o que é a memória, o que são personagens.

Daí em diante, a partir de Muriel, Resnais fez filmes que se apresentam como divertimentos (como A Vida é um romance, Quero voltar para casa e On connaît la chanson) e outros de tons mais graves. Seu cinema mergulhou nos mundos encenados destes personagens - e tanto Providence quanto o projeto Smoking/No Smoking tratam disso, de forma mais ou menos explícita (não por acaso, estão entre seus melhores momentos, junto com o belo Morrer de Amor).


texto publicado no catálogo da mostra Alain Resnais, ocorrida em agosto, setembro e outubro de 2008 nos CCBBs de Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília