06/02/2009

Conhecer a si mesmo...

Quando penso em exemplos de revalorizações póstumas, é comum que eu lembre do caso de Nelson Rodrigues – cuja obra teatral teve razoável reconhecimento (ainda que bastante polêmico e bastante censurado na sua época), mas cuja obra literária de crônicas, contos e romances só recentemente ganhou maior relevância e permanência. Se vivo fosse, Nelson certamente estaria feliz com o reconhecimento que ganhou postumamente e talvez se divertisse fazendo paródias do seu querido Dostoievski. Afinal de contas, talvez tudo se resuma à perda da certeza divina: se Deus está morto, todos somos críticos. Mais ainda: se a ciência não pode ocupar o lugar de Deus, não há nada que dê base a nós como críticos. Cada um por si - e na hora a gente vê para que lado o rebanho seguiu.

A crítica estética se vê cercada por esta armadilha do subjetivismo desde que o filósofo Kant iniciou a sua Analítica do Belo, capítulo da Crítica da Faculdade do Juízo, com as seguintes palavras:

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação não pelo entendimento ao objeto em visto do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou de desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aqui cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo. Toda referência das representações, mesmo a das sensações, pode porém ser objetiva (e ela significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer ou desprazer, pelo qual não é designado nada no objeto, mas no qual o sujeito sente a si próprio no modo como ele é afetado pela sensação.



Neste parágrafo Kant indicou o problema eterno da crítica – a crise permanente que se tornara o estabelecimento de um ponto-de-vista estético na era moderna. Se não há mais uma verdade e um bem divinos a comprovar a qualidade e a grandeza das obras artísticas; se a pretensão que norteia uma obra artística não é mais, obrigatoriamente, estabelecer a verdade e o bem coletivo – então, qual será a base que manterá a perspectiva construída para fazer um juízo de valor artístico sobre uma obra? Em essência, a história da crítica - da melhor crítica - é a história da resposta a esta questão: para alguns, a partir da análise dos signos da obra em questão; para outros, através da percepção das reincidências históricas ou pessoais; com tentativas de legitimação a partir de pretensos consensos; ou mesmo a partir de uma estilização do impressionismo subjetivista a que Kant reduziu os gostos pessoais. Tantos caminhos levam a lugar nenhum: o poder da crítica, seja grande ou pequeno, não lhe garante a base sonhada da objetividade - a avaliação crítica traça juízos de valor sombreada por um questionamento sem fim sobre o seu grau de acerto. Não há solução - somos bilhões de críticos, tão mais convictos quanto percebemos os possíveis equívocos alheios.

Resta à crítica mostrar interesse pelas obras e tentar perceber o que elas apresentam de único e mais significativo. Provavelmente Kant não concordaria com essa idéia, mas me parece que é o interesse direto e a curiosidade apaixonada (e, portanto, parcial) que dão maior relevo ao papel da crítica. Como já disse um outro, o crítico mais valioso é aquele que chama a atenção de seus pares para obras significativas cujo valor estava passando despercebido. É interessante lembrar dos casos de alguns dos mais conhecidos críticos brasileiros de cinema: no caso de uma geração mais velha o interesse pela produção local só surgiu após muitos anos de cinefilia e escrita (como aconteceu com Alex Viany e Paulo Emilio Salles Gomes); poucos anos mais tarde, Walter Hugo Khouri e Rubem Biáfora seriam celebrados por ter apontado mais cedo dois autores relevantes de um certo “cinema de arte” europeu, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni; num momento seguinte, figuras como Jairo Ferreira e Jean-Claude Bernardet, cada um a seu modo, envolveram-se profundamente na valorização de certos filmes locais, em alguns casos, e de ataque a outros modelos. É interessante contrapor nestas gerações o interesse em se manifestar, seja a favor ou contrariamente. Khouri esteve mais preocupado em produzir seu cinema e em defender a relevância de novos estilos internacionais do que em se envolver teórica e praticamente nas questões e escolhas da crítica do cinema de seu tempo e lugar, enquanto Jairo e Bernardet sempre se caracterizaram por tomar posições, certas ou erradas, diante do panorama dos filmes brasileiros. Isto me faz lembrar do depoimento dado por João Moreira Salles para o filme Crítico, de Kleber Mendonça Filho. Ali, Salles afirma que a crítica depende da qualidade da produção de sua época e sugere, como exemplo, a dificuldade que teria um crítico de samba que morasse no Japão. Há nesta fala um curioso equívoco: a inversão do surgimento da produção artística e da crítica; por esta lógica, poderíamos crer como algo natural que existisse um crítico especializado em um ritmo musical desconhecido antes mesmo deste ritmo ser tocado pela primeira vez. Na verdade, se um japonês se decide a criticar sambas, cabe a ele entrar em contato com a produção de sambas e fazer suas avaliações; se daí elas serão irrelevantes, isso já é outra questão. Mas, certamente, ao “crítico de sambas japonês” sempre caberá a alternativa de procurar outras produções musicais mais presentes e vigorosas no lugar e no tempo em que ele vive. Talvez Khouri e Biáfora, sob essa ótica, tenham sido bons “críticos de sambas”, enquanto os que começaram depois procuraram descobrir o que havia de mais interessante na produção que lhes era próxima.

Nelson Pereira dos Santos, mestre maior, costuma lembrar que a primeira crítica séria que um filme seu sofreu foi a do chefe de polícia. Por ocasião da estréia de Rio Quarenta Graus, o Delegado Municipal do então Distrito Federal resolveu proibir o filme porque este ofereceria uma visão “distorcida” sobre a realidade do Rio de Janeiro. Se não tiver poder de polícia, já disse Nelson mais de uma vez, a crítica pode ser livre para se manifestar como quiser, com maior ou menor dose de inteligência.

Isso pode parecer uma anedota singular, mas está longe de ser caso único. A pior crítica sofrida pelos poetas, cineastas e demais artistas soviéticos foi o patrulhamento stalinista. A mais violenta crítica escrita num texto não se compara a impedir fisicamente a veiculação da obra e mesmo a prender o artista (ou fazer coisa pior). A arte, qualquer arte, naturalmente se propõe a desafiar os parâmetros vigentes – e isso pode render reações contrárias bastante incivilizadas. Certamente, é preferível a grosseria escrita ao autoritarismo pleno...

E esta questão está presente desde o início das discussões sobre estética. Como se sabe, os primeiros textos da filosofia a discorrerem sobre o que é a beleza foram os de Platão – nos diálogos Fedro, O Banquete e, sobretudo, no livro X de A República. Neste, Platão, pelas palavras atribuídas a Sócrates, chega à conclusão de que os artistas deveriam ser expulsos da sociedade ideal – entre outros motivos, porque a beleza de suas obras poderia confundir a atenção diante daquilo que, para Platão, é o valor supremo: o conhecimento da verdade. A arte, que sempre é um duplo do universo, torna-se ameaçadora para o conhecimento deste universo em si. Isto poderia parecer apenas um discurso retórico, não fosse o caso de Eurípides, o criador de peças como Medéia e As Bacantes. Eurípides, que era acusado de fazer obras com personagens que continham as piores características dos homens, terminou sua vida exilado de Atenas – expulso da cidade onde apresentou seu trabalho por décadas. Ele, que séculos mais tarde, ironicamente, seria acusado por Nietzsche de ter trazido a filosofia socrática para os palcos onde até então predominava o espírito trágico e grandioso, foi expulso de Atenas quando Platão ainda era um jovem estudante. Se, após ter sido testemunha da condenação de Eurípides ao exílio, o filósofo mais tarde defenderia medidas parecidas para seu mundo ideal, não é tarefa muito fácil ignorar a carga de agressividade do discurso platônico ao questionar o papel da arte na sociedade ideal.

É bastante interessante lembrar de outros aspectos do caso de Eurípides ao pensar na importância da crítica e na pertinência dos seus julgamentos. Se Ésquilo e, mais do que ele, Sófocles colecionaram anualmente vitórias seguidas nos concursos anuais de peças trágicas, Eurípides venceu-as pouquíssimas vezes (com Medéia, com a segunda versão de Hipólito...). Ao fim da vida foi obrigado a exilar-se, depois de, entre outros desgostos, ter sido acusado por Aristófanes (em As Rãs) de trazer o pior do caráter humano para os textos trágicos. No entanto, das suas dezenas de peças, dezenove chegaram até os dias de hoje com o texto integral. Ou seja, a posteridade mostrou preferência pelo que ele criou - tanto de Sófocles quanto de Ésquilo restaram sete peças e nenhum texto integral dos demais poetas trágicos daquele tempo sobreviveu à passagem do tempo. A posteridade, que cumpre o papel de crítica definitiva, fez uma escolha diferente da proferida pelos cidadãos de Atenas. Ela reconheceu como qualidade nas obras de Eurípides aquilo que para seus detratores foi a sua falha - estas peças trouxeram para os palcos a obscuridade do espírito humano, as falhas de caráter e os sentimentos mesquinhos ou pretensamente imorais. A covardia de um pai ao aceitar o sacrifício da própria filha em Ifigênia em Áulis; a arrogância de um sujeito insolente diante de um deus na terra em As Bacantes; o desejo de uma mulher mais velha por seu enteado em Hipólito; o ressentimento assassino de uma mulher após ser trocada por outra pelo marido em Medéia: os exemplos se sucedem por toda a obra de Eurípides para indicar que Aristófanes e Nietzsche podem estar certos em suas percepções sobre as características deste teatro, mas certamente o juízo de valor que fizeram é inteiramente diferente do juízo coletivo de uma tradição, evidenciado pela memória dos povos do teatro.

O que resta é a posteridade, e não há nada a garantir que seus julgamentos são infalíveis. As obras podem perecer, perder o seu sentido inicial, ou podem, em reverso, ganhar novos sentidos com o passar dos anos - se conseguirem sobreviver inteiras até lá. A crítica pode declarar afetos e apontar sentidos nas obras (ou mesmo ampliar os sentidos a partir de analogias), pode procurar decifrar os mecanismos destas “máquinas de produção de significados” que são os objetos artísticos. Mas o seu julgamento de valor sempre caminha sob a sombra dos equívocos que o tempo vai deixar evidente. Quando fala das obras, o crítico se baseia em valores da sua época e do seu lugar que rapidamente podem se tornar arcaicos. Por isso, prefiro acreditar que não há alternativa senão escolher o caminho sugerido por Eurípides e se filiar ao que há de mais humano nas obras; correr o risco do interesse e da aproximação, da percepção das falhas e do contexto - porque a crítica só faz sentido se está disposta a se manifestar sobre o mundo em que se encontra. E, sendo assim, o equívoco faz parte da regra do jogo: para quem tem o que dizer, é melhor correr o risco de se ver corrigido pelo decorrer dos anos do que manter-se em silêncio enquanto o tempo se vai. É deste risco que nasce a crítica de nossa época que mais me interessa.


Texto publicado na edição nº 3 da revista Reserva Cultural, em maio de 2008.