18/12/2016

Entrevista com Andrea Tonacci


Realizada em agosto de 2007 e publicada no livro "Serras da Desordem" (ed. Azougue, 2008), coletânea de ensaios+entrevista+filmografia sobre o filme homônimo.





Para começar, eu gostaria que você comentasse um pouco sobre todo o processo que te levou a fazer o filme, já que você havia feito alguns filmes com comunidades indígenas, como Os Arara e Conversas no Maranhão, e o histórico de aproximação cultural com os índios sempre levou a um questionamento da nossa sociedade a partir do contato com outra sociedade...

Bem, a gente fala hoje dos índios porque eles sobreviveram, mas na verdade qualquer encontro como este, entre culturas que nunca se viram, tem um processo de conhecimento - ou desconhecimento - do outro. Esse me parece ser um movimento básico, quase celular, da humanidade, e não apenas uma característica da nossa, vamos generalizar, da nossa cultura branca em relação aos índios. Um índio pode ter a mesma coisa em relação a outro índio ,como também pode ter em relação a nós.  Quando existe um contato que não é na marra, que não é pela força como normalmente tende a ser, esse contato eventualmente também pode ser um desejo do  outro, e não só nosso em encontrá-lo. Então eu acho que essa relação que a gente estabeleceu com algumas tribos não é um caso particular, e acho que é oportuno de ser observado porque é algo que a gente tem muito próximo aqui de nós, esse outro que é o índio brasileiro, esse outro que fica isolado numa floresta a quatro mil quilômetros daqui mas a gente já tem como ir até lá.

E para eles isso pode ser assustador, porque o homem branco tem a pólvora, tem a força...

Bem, este processo é bastante louco. Teve uma vez, quando eu fiz Os Arara, num período em que a gente ficou parado num posto de vigilância da Funai no Pará, e ficou tudo calmo durante meses... Até que um belo dia, num fim de tarde, os índios atacaram o posto. Teve gente flechada e o cacete. Foi uma ação do tipo em que eles chegaram devagar e enfiaram as flechas por entre as tábuas, silenciosamente, nas frestas, para flechar a gente lá dentro. Mas o que gerou isso, quando durante aqueles meses todos houve troca de presentes? Até então era aquela relação de visibilidade sem ver o outro, de uma tentativa de aproximação sem agressividade... Que não era uma pacificação, na verdade era uma tentativa de desarmar as tensões, já que pacificação parece ser uma coisa na marra, e o que era feito era um esforço de desmontar a agressividade Então, o que aconteceu? Bem, depois de alguns dias chegou a informação de que, a uns tantos quilômetros, uns cinqüenta quilômetros de lá, dentro do território dos índios, máquinas do Incra, a serviço de uma prefeitura de não-sei-onde, pagas por um invasor qualquer para retirar madeira, entraram no território indígena, derrubando tudo no caminho, para tirar madeira durante uns três ou quatro dias – bem rápido, para não dar tempo do Ibama fazer nada. Eles avançaram lá dentro e, no dia seguinte, os índios nos atacaram. Aquele grupo não tinha conhecimento se o pessoal era o mesmo ou não. Para eles, era tudo a mesma gente. Eram os outros que estavam ali, então é tudo a mesma turma. Então tem muitos casos, muitas coisas que ocorrem nesse processo e mostram como a gente não sabe do Outro. Essa questão do desconhecer o Outro sempre me foi atraente, não particularmente por ser índio, mas porque o índio tem a possibilidade de ser esse o mais outro possível. Mas esse Outro é o ser humano, é você, é cada um de nós diante de alguém, é o mundão...

E como nasceu essa sua vontade de ir aos índios para conhecer esse outro?

Isso nasceu de uma fantasia, depois isso se comprovou para mim, era uma fantasia, uma ilusão, que aconteceu assim: quando surgiu o vídeo portátil, eu percebi que a partir de então imagem que se fazia podia ser projetada no mesmo instante. E aí é que eu percebo o significado desse outro olhar, porque o cara pode ver na hora o que você está fazendo, já não é o processo do filme que tem que revelar e só depois é visto – você tem no próprio instante a relação com aquilo. Como acontecia também com as fotos de polaroid, por exemplo, que todo mundo podia ver na hora.

Você começou a trabalhar com vídeo bem cedo, já no meio da década de ’70, não é?

É, em 75 o trabalho com a Ruth foi todo feito em vídeo, o Jouez Encore, Payez Encore foi o primeiro vídeo, em preto-e-branco, feito num vídeo portátil comercial. Mas, então, em determinado momento a forma de olhar o mundo, a forma de percebê-lo visualmente do Outro, me parecia que através dessa tecnologia fosse possível percebê-la, fosse possível ao ver essas imagens ver o mundo pelo olhar do outro. Não que com isso eu esteja falando de antropologia visual, embora isso faça parte da antropologia visual e eu tenha visto coisas lindas feitas pelos Navajos em 1944 em película 35mm, e coisas feitas até antes disso pelos próprios índios...

Mas isso também aconteceu no Brasil?

Não sei, eu só vi isso dos Navajos, dos EUA, mas provavelmente na época do Marechal Rondon o Major Reis deve ter dado a câmera na mão dos outros. Não sei se eles reconheceram o sentido disso, mas aposto que puseram. Se não se descobriu, é porque faltou um olhar que descobrisse a diferença. Mas, voltando à minha ilusão inicial, eu pensava que através da câmera na mão do outro eu poderia ter algo desse olhar, que me permitisse perceber o mundo conforme alguma coisa, pelo menos, que seria do outro. Isso foi durante algum tempo uma fantasia, e chegou a me levar aos Arara, que eram índios isolados – eu queria botar a câmera na mão de índios isolados, e não de um índio que, mesmo que separado, já tivesse visto fotografias ou ouvido falar de televisão. Eu queria encontrar índios que não tivessem nem idéia de que troço era aquilo. A prova disso é que, se você põe o objeto na mão deles, eles não têm posição para as pessoas. Mas com o tempo isso já gerou trabalhos, o próprio Vincent Carelli já falou sobre esse processo da câmera na mão do outro, do período em que a gente fez o Conversas do Maranhão. Mas o que eu entendo hoje é que o equipamento, principalmente equipamento de imagem, como produção de linguagem e de estrutura narrativa que permita contar coisas ou mostrar, interferir nos sentidos do outro, tudo isso é produto da nossa cultura, da nossa estrutura mental e, sendo produzido tecnologicamente, a gente materializa em termos de máquinas uma coisa que produz uma linguagem. Isso faz parte da nossa cultura. A cultura desse índio onde eu fui, por exemplo, nunca produziu nada que fosse tecnologicamente ligado a um método de produção de imagens – e nem eles têm tradição de contar histórias, os Arara, no caso. São passagens, contar não importa. O Carapiru me disse isso, que não tem por que contar a vida dele: “Isso é a minha vida, aconteceu comigo, não tem a ver com os outros. Não tem por que ficar contando. Eu só estou contando para você porque você está me pedindo”.

Mas ele topou o projeto, não?

Topou. Ele quis fazer, ele entendeu e foi porque gostou da idéia de rever as pessoas, porque eu me comprometi a levá-lo de volta. Isso levou dois a três anos para ficar acertado. Mas eu estava falando da questão da câmera. Chegou uma hora em que me parece que a câmera é simplesmente mais um instrumento da nossa dominação. O índio vai fazer o que a gente faz se a gente der uma câmera e ensinar a usar, é gente igual a gente e, se você fornece a estrutura...

Só o fato de fazer ele pensar em formular uma imagem naquele padrão...

Ele já vai formular conforme aquela tecnologia lhe dá estrutura para essa formulação. Quer dizer, ele pode construir a imagem na frente da câmera do jeito que ele quiser, mas isso só depende da criatividade de cada um, não importa tanto de onde ele vem, se tem cinco pernas ou três cabeças. Mas o meio que permite a todo mundo criar é também o que vai formatar.

Nesse sentido, é bem evidente uma certa evolução do seu percurso, já que antes você entregou a câmera para os índios e no Serras da Desordem você se manteve sempre como o narrador.

Sim, no Conversas do Maranhão eu tentei fazer isso. No Os Arara isso também acontece num material que nunca foi editado. Os Arara que a gente está falando são três episódios e só dois foram editados, eles são totalmente lineares e foram narrados pelo Sidnei de uma maneira bem confessional, filmados nas condições que deu – nos suportes U-Matic, Beta, 16mm, cada hora era uma coisa, mesmo tendo a Bandeirantes por trás. A verdade é que eles nunca deram suporte real porque televisão precisa de tudo para o dia seguinte. Eles pensavam: “Se o Andrea está indo hoje filmar os índios, na segunda que vem isso está indo ao ar”. Mas não foi assim, e depois de dois anos eu levei um pé na bunda (risos). Mas aí eu fiquei por lá, e só aí eu consegui fazer contato com eles, só depois. E aí teve um dia em que pela primeira vez um velho, chamado Pipute, e o grupo familiar dele queriam ir conhecer Altamira. Eles chegaram a levantar facão, ameaçar as pessoas: “Eu quero conhecer a tua aldeia, e se você não levar a gente lá...”, eles iam acabar indo embora pela Transamazônica, peladões. E aí você já imagina, não pode, a Funai tem que cuidar... Isso foi depois de algum tempo, quando já tinham conseguido vacinar todos eles e parou de morrer gente, porque o primeiro contato... Mas, enfim, todos foram vestidos e levados para Altamira. Eu fui acompanhando e documentando todo esse processo. E teve um dia, não sei se você conhece Altamira, mas no Alto, onde tem a curva grande do Xingú, tem o morro, tem o quartel do batalhão e no topo do morro você vê a curva do rio e a cidade de Altamira lá embaixo, tem um cruzeiro e é o único morro da cidade – e estava esse velho índio, que eu tinha visto pelado com seus brincos, seu pau amarrado, suas pinturas em pretos de jenipapo nobre, ele está desbotado, com olhos de quem está estranhando o mundo, de boné, roupa... E ele olhava assim, meio catatônico... Nessa hora, foi como se tivesse terminado para mim o meu ciclo indígena. E de fato depois do Os Arara eu só fiz coisas com eles a pedido dos índios. O Serras da Desordem foi o primeiro trabalho desde então que eu fiz por interesse próprio, mas esse eu já faço a minha leitura, a visão de que nem mesmo a história dele lhe pertence mais, já faz parte de uma narrativa.

E no Conversas no Maranhão você fez diferente disso.

Sim, no Conversas no Maranhão eu fiz isso, antes de fazer Os Arara, o Conversas é de 1977, é anterior ao Os Arara. E nesse a idéia era mesmo a de me colocar a serviço.

A intenção era registrar os discursos deles, então?

É, a idéia era usar aquele instrumento de registro para pegar os discursos deles e levar para outro lugar. Essa foi a explicação que a gente deu para eles entenderem o que a gente foi fazer lá. Porque é essa a primeira pergunta: “O que você veio fazer aqui?”. Depois querem saber mais: “O que é isso aí? Para quê que serve?”. Isso não é só o índio não, no Conversas no Maranhão tem um velho matador que aponta para a câmera e pergunta: “O que é isso aí? É de filmar?”. Ele faz a pergunta porque entende que o aparelho está registrando, mas nem o caboclão velho, que já andou bastante pelo mundo, nem ele sabia como funciona essa história, como é que funciona o processo de registro da imagem. Então, me parece que o Carapiru não sabe o que a história dele representou. Eu tenho uma preocupação comigo mesmo sobre como preparar a exibição do filme na aldeia, porque ainda não foi exibido lá. Eu tenho a intenção de chegar antes, conversar com eles, fazer exatamente a mesma coisa de aproximação, num processo que talvez leve tempo, assim como levou tempo o processo para conhecê-los, para ter a confiança deles. Tem que tratar o filme como se fosse uma pessoa a ser apresentada, explicar o que é, como é visto, o por quê... Mas eu desconheço o que para eles pode significar as imagens em seqüência e que sentido se constrói na leitura que eles vão fazer do filme. Porque eu não fiz o filme para os índios, fiz o filme para a gente. Mas isso é engraçado, eu vou ir na escola de Antropologia e Ciências Sociais da USP na semana que vem, para fazer uma projeção lá, acho que vai ser interessante.

Me parece que o filme tem uma perspectiva que até hoje é uma questão para os antropólogos, que é o filme assumir o relato como uma narração. Não se trata da realidade do Carapiru, mas de uma recriação, uma encenação, com a participação dele próprio, mas assumindo que é um relato seu.

É uma intervenção, que obviamente tem como ponto de partida uma realidade dele, mas eu interpreto o que conheci e entendi, com um outro senso crítico. O Carapiru mora lá e vive com as pessoas, ele não tem o senso crítico que o filme coloca através das imagens para diferenciar o que é o começo da narração e o que é a conclusão. Eu não sei se aquelas imagens do Brasil fazem algum sentido para ele. O que ele sabe do que é aquilo? Ele com certeza não vai identificar nem metade das referências visuais que vão aparecendo.

São imagens que dizem respeito diretamente à nossa sociedade, a todo mundo que tirou carteira de identidade no Brasil... Para nós, a história dele acaba nos trazendo a idéia de que é alguém que estava aqui antes de nós, já que os índios estavam aqui antes da nossa civilização trazida pelos portugueses. Parece ser um brasileiro que é mais brasileiro que nós, porque os índios já estavam aqui antes, então ele é um brasileiro que não fala a língua dos donos do pedaço, é marginalizado por ter chegado antes, então o filme tem esse aspecto de revisão da construção da nossa cultura... Mas você dizia que  terminou o trabalho com os Arara em 82?

Isso, em 82.

E a história do Carapiru veio à tona nessa época, não?

Não, ela veio à tona em 88. Em 77 e que houve o massacre, e foi o período em que eu estava no Maranhão, pertinho dali. Talvez o Carapiru tenha passado bem perto de onde eu estava naquela época, veja só...

E então nesses anos você ficou afastado dos trabalhos com os índios, até saber da história dele?

Bem, eu fiz algumas coisas nesse meio-tempo, fui até os Kraô, depois fiz um trabalho com os Guaranis na Fronteira Seca, que fica embaixo do Paraguai... Mas nessa época eu escrevi outros projetos, fiz outras histórias. Eu tenho outros roteiros, como um que se chamava O Anel De Fumaça, outro tinha um nome que eu nem lembro... Mas eram roteiros de histórias indígenas, histórias que eu ouvi, mas trabalhadas conforme o mito que a história conta, ou seja, a estrutura da história seguia um pouco a lógica do próprio mito. Então tinha dois sonhos, dois homens que tinham cada um o seu sonho, e aí as histórias dos sonhos se cruzam, um interferindo na realidade do outro...Eram umas tentativas por aí. Ou então tinha uma tentativa de amarrar um sentido geral: quatro velhos de quatro grandes nações indígenas, cada um de um lugar do mundo, um daqui, outro da Índia, outro da América do Norte, todos eles numa viagem em que o acaso faz com que eles se encontrem, e na verdade só eles sabem o porquê deste encontro e que devem ficar juntos para transmitir um conhecimento que vai ser maior do que eles teriam se não estivessem juntos, isso era um outro roteiro...

Mas nesses casos sempre havia a vontade de narrar histórias com personagens índios...

É, no fundo esse último roteiro tinha muito a ver com a história da América Latina, essa história que é apagada da Grande História ocidental, essa Grécia ou Egito que não participa com o mesmo peso da história ocidental, que não tem arqueólogos para tentar recuperar...

Foram dizimados e a memória que sobrou é quase nenhuma...

De qual?

Das nações indígenas. A memória foi apagada.

Ah, é.  Mas a partir de 1500 usaram armas e vírus que extinguiram nações inteiras.

No México há museus grandes.

No Brasil não se tem vestígios de crescimento em grupos maiores. Tem coisas incríveis, a gente acha coisas incríveis nesse meio. Uma vez, subindo um afluente do Xingu, ficamos dez dias viajando pelo rio bem na época da seca, então a gente ia pelo canal do rio e tudo que costuma ser coberto pela água é uma mata baixa, mas é uma mata. E os caras que conhecem os canais levam a gente para lá: “Quer Conhecer A Pedra Do Ó?”. Fomos lá, pegamos uma canoa e chegamos num lugar, no meio de uma mata baixa e tinha umas lajes de pedra bem grandes, como se fosse menir mesmo, que estavam tombadas e dava para entrar embaixo. E aí, quando você entra debaixo da pedra, você vê uma porção de desenhos, umas figuras, um grande “O”. Caceta, quem desenhou isso? E por quê? Eu fiquei imaginando que aquilo devia estar em pé originalmente, e numa época em que o Rio estivesse cheio devia ser visível de longe, como uma espécie de marco marítimo. Quem navegava por lá, que diabo era isso? E os estudiosos dizem que os desenhos podem ter dois mil anos, três mil anos, enfim... Tem coisas que aconteceram e a gente não  sabe. A gente ainda tem esse desconhecido muito próximo. E o índio nos permite ter mentalmente a existência desse desconhecido. E ainda bem, porque no dia que acabar...

E no Brasil a gente ainda convive com o fato de que ainda há tribos de índios que podem ter seu espaço respeitado, porque o crescimento do país destruiu muito, mas ainda não destruiu tudo. Nos EUA não sobrou nada.

Sim, aqui esse avanço ainda está acontecendo, é agora... Lá esse avanço já aconteceu com as carroças, aqui ainda está acontecendo, é feito de aviãozinho, helicóptero, trator... Nosso oeste é desse jeito, não foi mecanizado com carroças de quatro cavalos como lá. Lá o avanço foi com o trem de ferro,com os trilhos. Aqui já foi de avião e o trilho vem depois.

E como você chegou até o Carapiru?

Bem, isso acontece em 1993. O Sidnei tinha em mente a idéia de fazer um livro com as histórias que ele conhecia e as que ele tinha vivido, histórias pessoais, dos estados d’alma dele. E algumas vezes a gente sentou desse jeito, com um gravadorzinho, num pátio em Brasília, sempre que eu ia lá. Aí ele ficava contando as histórias e eu ia transcrevendo, dava uma consertada na narrativa, mas com a intenção de ele fazer um livro. Isso não chegou até o fim porque em dado momento ele contou a história do  Carapiru para mim. E foi num momento... Bem, aí já vou falar de um lado que é interpretação, que explica a coisa de um lado psico-qualquer-coisa... Mas porque na verdade nesse momento eu estava longe da minha família, estava me separando da minha mulher e sem ver meus filhos. Enfim, era um momento complicado, uma separação dolorida, uma daquelas coisas em que a gente sai de um mundo. É claro que hoje eu sei que está tudo aí, são pessoas que eu vejo sempre, amo e tudo mais. Mas naquele momento  a ruptura aconteceu sem saber o que vinha depois. E a história do Carapiru era a de uma ruptura que aconteceu sem saber o que vinha depois, mas que naquela altura a gente já sabia o que tinha vindo depois – que dez anos depois ele reencontrou um filho. Perdeu a família, mas reencontrou um filho, então tinha essa dimensão de perda – que tem a ver com o índio, com esse Outro isolado, esse homem só, que não tem a mão na roda do mundo e que no Bang Bang é um pouco o personagem do Pereio naquela estrutura. E essa história me pega, porque ela tem esse lado da perda e ao mesmo tempo da esperança de algo melhor no futuro. Então foram essas duas coisas: primeiro, a questão do índio isolado, uma série de coisas que me levaram a olhá-lo como uma pessoa interessante; e o outro lado porque eu identifiquei um pouquinho essa pessoa aqui dentro de mim, eu conhecia um pouco do sentimento que me parecia que esse homem podia ter. Então a minha pretensão foi nesse sentido – pretensão, ilusão, seja o que for. Aí eu comecei a levantar tudo que eu pude achar em jornais dos vários estados do Brasil, desde notinhas em jornais universitários até as notícias nos grandes centros, fosse em Belém, Brasília, São Luiz, São Paulo, tudo do período... E tudo o que aconteceu com os Guajás nesse período eu também tentei mapear, na região inteira, os vários processos de invasão, de ocupação, projetos do Incra, projetos de demarcação, todas as interferências na área. Eu cheguei a ter os mapas, com os nomes das fazendas e das pessoas, fui conhecendo a situação a ponto de, quando ia encontrar uma pessoa, eventualmente eu sabia citar referências bem próximas... E isso foi muito bom, muito bom. A partir daí fui descobrindo gente que tinha escrito a história, soube de um jornalista de São Luiz que tinha feito um livrinho que ele mesmo bancou e publicou, onde contava detalhes de toda a história dos Guajá e do Carapiru. E aí eu comecei a conhecer os lugares onde ele deveria ter estado, os nomes das pessoas que o ajudaram, através dos jornais, e eu montei com essas informações uma cronologia de eventos da vida do Carapiru. Aí eu fui atrás dessas história, para escrever fazendo esse percurso. Isso era em 1999 ou 2000. E durante todo esse tempo eu tinha outros projetos, como o do Agora Nunca Mais, que foram dez anos de tentativa através da Lei do Audiovisual e não  consegui um tostão, também era um roteirão do tipo livrão bem grande e também era a história de um pai e um filho. Engraçado, no mesmo período... Mas tinha outro roteiro, Debaixo da Árvore, também é desse período e não conseguiu um puto, foi na época dos últimos desmandos da Embrafilme, quando o Carlos Augusto Calil estava lá dentro... Aí eu mergulhei no projeto do Serras, abriu um concurso de bolsas da Vitae que tinha a possibilidade de pedir dinheiro para pesquisa para roteiro cinematográfico – coincidentemente o Calil fazia parte, mas na verdade quem julgou foi o Ismail Xavier, o Calil era só o presidente da Fundação. Aí o Ismail já entrou em contato com o projeto  - acho que ele tem todas as versões do roteiro, não sei se ele tem a última, mas sei que ele conheceu a história lá atrás, quando o projeto era uma ficção total, antes de virar essa mistura. Bem, aí saiu a bolsa e com esse dinheiro eu viajei e fiz o  percurso do Carapiru, já fazendo gravações em vídeo. No filme tem imagens feitas nessa época.

Quais, por exemplo?

O plano final do Carapiru, quando ele está sentado e depois mostra o céu, foi a primeira coisa que eu filmei. O primeiro depoimento foi debaixo do mato... Não, na verdade esse foi o segundo, foi depois. Eu fui naquele lugar porque era mais silencioso e porque na aldeia todo mundo  ficava querendo ouvir a gravação. Mas o Luiz Ares mostrando a foto, sentado na sala da casa dele, com a mulher do lado, foi dessa primeira fase.

É curioso porque é a única hora em que o Carapiru parece contar algo para a câmera. A gente não entende, mas ele dá o seu depoimento ali.

O resto das imagens da Bahia já não é dessa época, é de 2002. Foi o tempo que levou – eu voltei, aí me dei conta de que precisava retraduzir tudo de novo e voltei mais uma vez. Nessa terceira vez o filme já tinha deixado de ser ficção a valer, com atores e cenografia, e também já tinha deixado de ser um documentário de estilo jornalístico...

Você também chegou a trabalhar nesse sentido, de fazer um documentário mais clássico?

Sim, ia virar uma narrativa em tom documentário, como a jornalística mesmo. Mas isso tudo foi insatisfatório, e eu tentei, para me liberar disso, fazer uma versão urbana da história do Carapiru, eventualmente com o Pereio como ator - a história de um cara que fica perdido durante dez anos numa cidade, depois encontra um filho - numa tentativa de narrar a mesma história dentro da nossa cultura.

E misturaria?

É, e eventualmente misturaria as histórias. Isso acontece nessa transformação, até chegar nesse roteiro em que tudo isso está fora, o Pereio já está fora e o Carapiru está lá, depois de uma pergunta minha. Um belo dia eu resolvi perguntar para o Sidnei e para o Carapiru se eles topavam, e o Carapiru foi o primeiro – aí ele me disse literalmente assim: “Andrea, você me traz de volta depois?”. Eu falei que sim, claro, e aí ele disse: “Então eu topo”.

Mas ele queria ter certeza de que ia voltar!

Sim, porque ele queria rever as pessoas, e também iria voltar a voar de avião... rever o Sidnei, que ele falava “Sidinêi”, ficava feliz em poder voltar para comer na casa do “Sidinêi”... Então foi uma combinação, ele gostou da idéia. A família topou, a aldeia topou, combinou-se através de um outro sertanista o quanto a gente pagaria para a aldeia, para o grupo, definimos o que podia ter a ajuda da Funai e etcétera. E o Sidnei foi a pessoa que abriu as portas para eu conseguir filmar – acelerou os processos como pôde...

Fez parte desde o início, então...

Sim, ele tentou, durante um período... Mas esse é o Sidnei, tem que entender o personagem dele, e isso ele sabe e confirma – porque existe essa imagem que se faz, do percurso do herói, que lhe é um pouco atribuída, mas que ele vive muito, como uma realidade mitológica mesmo.

Ele acredita no próprio papel.

Acredita, e se não acreditasse não faria o que faz. Porque eu já vi ele fazer coisas que um homem normal não faria de jeito nenhum (risos)... E o Sidnei no início, quando ele contava a história para mim, ele falava muito do personagem dele no filme como se fosse um herói – ele conquistava a professora, enfim... Mas, um pouco conscientemente, a gente foi transformando isso e no fim ele entendeu o caminho: “Poxa, que filme que você conseguiu fazer daquela história!”.

Ele esperava outra coisa?

É, acho que ele esperava ter alguém conhecido para interpretar o papel dele, um ator e etc... Mas ele faz muito bem e eu fico muito grato, porque ele faz coisas que, se ele não confiasse na minha maneira de tratar o personagem dele no filme e na minha maneira de perceber a história, ele correria um risco de ficar num papel ridículo. Porque ele se mostra em momentos muito pessoais delicados, como quando tem que mostrar o banheiro, a privada. E há uma afetividade e uma intimidade da parte dele que vai além dessa relação entre a autoridade da Funai e o índio. E ele tem uma postura clara sobre o assunto, tanto que foi mandado embora da Funai recentemente... Então ele foi um apoio muito grande para o filme – e vem aqui semana que vem, vai ficar hospedado aqui em casa. A gente ainda se encontra, esporadicamente mas sempre se encontra.

E o Carapiru?

O Carapiru até hoje não encontrei depois que terminamos de filmar. Mas se eu tiver dez mil reais – preciso de dez mil, já fiz a conta – vou montar um esqueminha de projeção para levar para dentro da mata. Para isso, só preciso de uns dez paus, para viajarem duas pessoas, para ficar viajando por uma semana. Leva mais ou menos uma semana ir para São Luiz, pegar o trem, saltar lá, armar a projeção, depois voltar...

É um trabalho e tanto.

É, vai precisar de gente de lá para ajudar a  carregar as coisas, atravessar o rio... Não pode ser nos próximos meses, porque começa a chover. Tem a época da seca e a da chuva. Mas, enfim, a história do Carapiru foi assim, e em 2001 abriu  concurso do B.O. [Baixo Orçamento], que eu não tinha entrado em anos anteriores, porque o filme era mais caro. Mas aí eu resolvi que ia ser B.O. mesmo, cortei os custos e pintou a grana. O próprio José Álvaro Moisés puxou a Petrobras com o dinheiro a mais para os projetos, porque ele ia sair e não queria deixar os projetos incompletos. Para o dinheiro  ser liberado era preciso já ter 60% dos recursos, que era R$ 600mil, mas nenhum dos projetos tinha isso, nenhum deles. Os projetos só tinham os R$ 400mil do prêmio do B.O. E o Moisés ia sair, o governo estava terminando, e para garantir que os filmes iam acontecer ele trouxe a Petrobras, com uma verba que aí sim permitiu a liberação dos recursos. Então esse momento político, de troca de governo, ajudou os projetos a irem adiante. Já a escolha do projeto dentro do concurso, como foi que ele foi escolhido, aí eu prefiro crer que ele foi escolhido por ter qualidades. Enfim, essa coisa da origem do filme é por aí, vem por uma questão pessoal, que pega um lado emocional meu e me liga a uma história que aconteceu, com personagens que existiam, uma história que se tornou pública.

E como foi a sua relação com eles, ao mesmo tempo como personagens reais e do seu roteiro? Eles participaram?

Bem, a história é do Carapiru, é só dele.

E do Sidnei também, não?

Sim, claro. Mas discussão de roteiro com o Carapiru? Não, nunca teve. Na hora era só instrução ao ator, ele não tinha a menos idéia de que tinha roteiro, de o que era um roteiro... Ele me via andando com umas coisas na mão...

E nas cenas ele não tentava mudar nada, não dizia que aconteceu de outro jeito?

Não, não.

E o Sidnei?

Olha, os índios se divertiam muito com o que a gente planejava. Aquelas cenas do tiroteio que tem no início, uma semana antes já eles estavam dando risada do que iam fazer, virou uma história na aldeia: “Olha, no dia tal o Andrea vai matar a gente!” (risos).

Se divertiam porque iam fingir ser mortos.

Se divertiam, davam risada e iam embora, “vamos fazer”. Mas tinha todo um momento preparativo antes de filmar, para definir o que eles iam fazer, uma discussão para saber como iam se comportar. Tinha sempre o Geí ajudando na tradução, o meu assistente indígena, e tinha a Dona Sueli, que também falava a língua deles, então a gente ia aos poucos. Teve uma progressão até chegar naquilo – aquelas cenas do tiroteio foram das últimas coisas que eu filmei. Está logo no início, mas foi uma das últimas coisas: para chegar naquilo demorou bastante.

E vem logo em seguida àquela longa introdução do cotidiano da família dele.

É, e essa primeira parte do filme foi justamente a última a ser filmada. Toda essa primeira parte foi a última coisa que a gente filmou.

Mas, voltando, então nenhum deles entrou na questão da história que você estava contando, mesmo sabendo que algumas passagens estavam sendo simplificadas, que não era possível fazer um filme que contasse cada pequeno detalhe.

Não, nem ele nem o Sidnei, os dois confiaram inteiramente. Isso é normal, tem dezenas de coisas que não estão no filme e poderiam ser narradas. Mas a gente tem que escolher, não tem como pôr tudo. Algumas cenas tentam ser sintéticas, quando acontecem ao mesmo tempo duas ou três coisas que aconteceram de verdade em momentos diferentes, até em lugares separados. Existem coisas que aconteceram e não têm como estar lá, porque se prolongariam narrativamente demais, ficaria explicativo. O que importava era ficar na intenção, deixar o espectador querendo saber da história – não precisava dos detalhes em si. Isso, essas coisas que aconteceram no percurso dele, poderia ser narrado em depoimentos, então se houver um DVD com extras, quem sabe? Tenho algumas idéias – se um dia der, vamos ver. E tinha outras coisas que eram gravadas pelo caminho porque apareceram e eu nunca usei, porque não era para o filme, mas coisa boa... Teve um dia em que a gente fez uma coisa num plano só. Eu peguei um velho doido, que o Milo, que trabalhava na produção, me chamou e mostrou: “Andrea, vem cá, pega a câmera e vamos gravar um velho louco que não pára de falar, toca flauta e é dono de um depósito de ferro-velho”. Fui lá conhecer a figura – o velho começou a falar e tocar flauta, doido a valer, mas era aquele tipo de louco que tem uma coerência. Mas aquilo era um trabalho pronto, e por quê? Porque aquele cara é um personagem inteiro. E o Carapiru também é assim. Então, com o roteiro já pronto, eu sentei com o Wellington e com o Sidnei umas duas ou três vezes, repassando o roteiro inteiro. Mas isso antes de ele virar o filme que é hoje, porque quando a gente vai filmar o roteiro muda - teve o acidente do Carapiru, que interrompeu as filmagens, retomando depois de seis meses... Então essa fase pré-filmagem foi bastante trabalhada mesmo, o Wellington veio aqui, ficou aqui uma semana e a gente ficava sentado todo dia  na mesa discutindo cena a cena, discutindo o que era verossímil, o que era fato e o que não era, como interpretar as coisas... Então teve um trabalho sim.

E então o Carapiru apenas deu o seu testemunho nessa fase, contou a própria vida a vocês e não se preocupou mais com o jeito que isso ia ser contado?

É, não participou dessa construção, só contou as coisas que aconteceram com ele.

Mesmo sendo ao mesmo tempo a fonte e o ator do enredo.

É, foi a fonte e o ator. E concordando em fazer as coisas pedidas a ele, mesmo contra a vontade. Porque teve coisas que... é complicado explicar, mas teve coisas que eu consegui e coisas que eu não consegui. Por exemplo: para fazer uma criança ser filmada como se estivesse morta, a gente precisava do filho de alguém, e nenhuma mãe permitiu. Então tem uma mãozinha, não sei se você se lembra, que aparece num momento e que foi gerada digitalmente, foi tirada de uma boneca e enfiada na imagem. Então teve coisas que eu não consegui. Já com o Carapiru... Bem, eu precisava aproveitar algumas situações onde as coisas pudessem ficar visíveis. Então, por exemplo, tem aquele momento do isolamento dele, quando a gente percebe que ele ficou meio isolado na tribo, comendo separado, era um gancho que a gente precisava. Então a gente filmou quando aquilo estava acontecendo realmente,  e não porque ele quisesse se separar – essa é a história que eu estou querendo contar – e sim porque ele estava com um diagnóstico de tuberculose. Então ele não podia misturar o prato dele com o dos outros, e por isso a Sueli cozinhava para ele no posto, e ele tinha que ir comer no posto indígena... Mas isso servia de gancho visual para a história que eu queria narrar. Poxa, se eu já tenho ele isolado, então eu vou documentar isso! “Documentar” entre aspas, claro...

E agora, com o filme pronto, ele está sendo bastante bem recebido, ganhou o prêmio em Gramado... Mas os filmes brasileiros ainda ficam bastante restritos, a maior parte deles fica restrita a pequenos grupos – podendo mexer profundamente com algumas pessoas.

Exato, é essa a intenção. O que vale, no caso, não é uma questão numérica, mas o quanto o filme consegue intervir na realidade, mexer com as pessoas.

E nem faz sentido que os filmes tenham sempre a expectativa de entrar numa dimensão maior de mídia.

Claro, não me interessa essa dimensão de mídia. Mas quando eu falo em pessoas, é claro que eu estou falando  também de mim, porque é um caminho de auto-conhecimento meu também, é um percurso de experiência pessoal também. O filme não é apenas a experiência que vai provocar em outras pessoas – é claro que existe a consciência disso e existe a intenção de falar de um assunto, de intervir na realidade, mexer com as coisas. Ou no mínimo levantar questões, o que é muito mais interessante do que ficar achando que tem as soluções – levantar questões, mostrá-las vivas para sair da letargia, da aceitação constante.

E quando a gente vê o que se diz e o que se cobra dos filmes hoje em dia, a gente nota que essas preocupações não  costumam ficar em primeiro plano.

Mas acho que a coisa vai espontaneamente acontecendo. Espontaneamente talvez não seja a palavra adequada, mas talvez a gente não tenha ainda a palavra - porque essa complexidade, essa multiplicidade de pontos de vista, esse paradigma sendo alterado, permitindo que você tenha hoje muitas perspectivas de uma realidade que começa a ser “globalizada”, essas perspectivas criam subliminarmente a consciência de que a gente não pode mais tomar partido de um jeito absoluto, porque sempre tem algo a mais. Se você entende que não é mais uma foto fixa e sim um movimento, você vai começar a olhar para o movimento, e não para a imagem fixa. E eu acho que assim vai haver uma aceitação maior e uma necessidade maior desses filmes que não estão agora em primeiro plano. Então, se existe uma cobrança de alguns e uma frustração de outros, isso me lembra a pintura feita por alguns no século retrasado e no século passado, quando movimentos inteiros foram criticados no momento em que as pessoas estavam vivas e, um século depois, eles se revelam mais fortes, como inovadores, antecipadores, visionários. Eu acho que o cinema é muito novo, o cinema tem cem anos – mesmo que a fotografia seja de 1850...

A narração de enredos no cinema tem cerca de cem anos...

E se a gente pensar nessa amplitude maior, tem cinqüenta anos, porque a televisão só tem cinqüenta anos. Se a gente pensar nessa multiplicação mais recente, que é maior ainda, não tem nem vinte e cinco anos – faz pouco tempo que aumentou o número de pessoas que têm computador.

E o cinema que se fazia antes desses fenômenos era outro, né? O cinema mudou com tudo isso.

Se você olhar o movimento, a transformação faz parte disso. Se você ficar muito tempo no sol, vai começar a usar sombrinha, e a pele fica morena... Enfim, eu estou tentando encontrar palavras para falar do olhar que mantém a coisa em movimento, sem parecer fixa em determinados pontos do tempo.

E como foi a sua relação com os filmes e a cinefilia ao longo dos anos, entre esses períodos de afastamento mais longo?

Já tive épocas de ver tudo e já fiquei períodos sem querer ver nada! Tinha dias em que ia ver tudo que era possível...

Quando era mais novo?

É, depende do momento...

Na juventude, quando começou a fazer filmes?

É, via muito filme, vivia vendo filmes.

Seu primeiro curta foi feito junto do Rogério Sganzerla e do Otoniel Serra. Eu imagino que vocês deviam discutir muito sobre os filmes em geral, né?

A gente discutia mais era como fazer os filmes, mais do que sobre a linguagem ou coisas assim. O Rogério é que era o mais focado nas questões teóricas, e isso eu admirava muito. Aprendi muito com o Rogério, com o Julio. O Rogério escrevia muito bem sobre cinema e ele tinha, ainda bastante novo, um surpreendente distanciamento crítico, com uma leitura inteligente sobre a cinematografia, então era um aprendizado ler as coisas dele. Mas entre nós não havia muitas discussões críticas sobre cinema. Claro, a gente falava, mas a gente discutia muito mais os projetos que a gente tinha, como fazê-los, como iria filmar isto ou aquilo, e íamos nos lugares para escolher locações de filmes que nunca saíram, coisas assim...

Isso tem um pouco no curta dele, o Documentário, são os caras falando de cinema, escolhendo que filmes iriam ver... Você falou no distanciamento crítico, mas o Sganzerla também teve momentos de defender e atacar filmes por conta de circunstâncias diversas, como aconteceu com os filmes do grupo do Cinema Novo, que primeiro ele defendeu, depois atacou e, no caso específico do Glauber Rocha, voltou a defender anos depois...

Mas o Rogério era muito político, muito estratégico. O Rogério era uma pessoa muito, muito inteligente, e com uma... não sei se a palavra é “matemática”, mas com uma visão estratégica, de raciocínio com a visão do próprio personagem de si próprio no mundo real. Isso ele tinha muito claro, ele entendia o papel que cumpria. No fundo, o Rogério tem uma importância muito grande para mim, porque eu fazia o primeiro ano da universidade quando a gente se conheceu e, enfim, filmava umas coisinhas, fazia fotografia, era uma época em que eu pintava, fazia gravuras, coisas com imagem mesmo. E eu me lembro que a gente ficava assistindo a esses filmes de viagem que eu tinha feito, já muito ligados.

Eram filmes em Super-8?

Ainda não tinha Super-8 nessa época, eram filmes em 8mm. O Super-8 veio depois, antes veio o 16mm, mas isso também só mais tarde, quando pintou uma Bolex e a gente usou, uma Bolex de corda.... Acho que foi meu pai que tinha comprado, ele gostava de fazer uns filminhos. Eu tenho guardadas essas coisas e adoraria poder... salvar, entendeu? Mas isso é um projeto que custa grana e quem vai...? Porque é muito material que vai se perdendo. Esse material com os índios de que a gente falava, isso tudo está se perdendo, porque é tudo vídeo!

E de lá pra cá mudou completamente o suporte...

É, mudou totalmente, e nunca tinha sido reproduzido. Horas e horas, quer dizer, se a gente fala de frustração do  trabalho por conta da memória... Mas o que importa em fazer o trabalho é a vida que ele tem na hora. O retorno, no caso desse investimento de vida tão grande, era o quê? Algumas pessoas em aldeias que ficavam maravilhadas em se ver naquilo – esse era o público. Essa história de grande público, isso é coisa de grana, é uma outra história, de manipulação. Os filmes nascem não para objetivos externos, estratégicos ou coisa parecida – não tem como, eles são simplesmente caminhos de conhecimento, de descoberta, de revelação, um processo vivo. Isso me lembra um pouco o Rosselini – “profissão: ser humano”. O Rogério tinha um espírito assim, ele dizia: “Eu cometo filmes”. Num sentido de estar intervindo mesmo...

Lembro de uma imagem que você usou numa outra entrevista, sobre os filmes não serem as pedras do riacho, e sim os espaços entre elas.

É... A gente usa muitas palavras e na verdade estamos sempre tentando falar do movimento.

Da velha questão de saber se relacionar com o permanente e o transitório, de como é que a gente lida de forma criativa com as transformações.

Mas não há como fechar em raciocínios exclusivistas entre “o que fica” e “o que vai”. O que eu estava falando sobre o movimento é que o processo acaba por ensinar que não dá mais para ficar falando assim, não é esse o único ângulo possível, que há uma hora em que ambas as coisas existem sim, e isso a física já provou.

É transitório e permanente ao mesmo tempo...?

Sim, e isso é escolha sua no momento. Mas do quê que a gente sabe, não é?... E é interessante como os silêncios falam da inércia e do rastro da potência desse tipo de percepção, porque eles se prolongam com a reflexão. Isso acontece em cinema, na narrativa, não apenas em conversas pessoais. É quando se abrem janelas, pequenas que sejam, onde a gente pode dar uma viajada. Eu acredito nesses espaços, em criar esses espaços intencionalmente, que sejam isentos o mais possível de símbolos que te conduzam demais. Pode ser um instante de vazio – mas você sabe que a rede está lá embaixo. Bem, aí eu já estou começando a interpretar... Mas é uma sensação assim.

Mas há uma diferença de posturas, não é? Num certo momento você filmou os índios deixando eles usarem a câmera, e no Serras da Desordem existe uma narrativa.

É, no Serras não tem essa, não tem conversa, eu estou narrando um filme.

Assume o papel da narração de forma bem clara, e não só por aparecer no fim.

É, a gente pode dizer que...  Bem, a palavra “manipulação” é mais uma dessas palavras não expressam um sentido correto, porque ainda está ligado às mãos: manipular uma massa, manipular um corpo... Mas a consciência de que eles todos representavam objetos da minha narrativa, isso eu tive, e é ficção por isso. Mesmo os momentos mais documentais, momentos de observação. E isso tem a ver com trabalhar em equipe e fazer as escolhas, tem a ver com as características de cada pessoa mesmo. Lembro de momentos em que o Fernando Coster filmava e eu orientava ele para fazer apenas uma determinada coisa e só ela. Porque eu tinha que orientar para indicar o que a câmera tinha que olhar, tinha que dirigir para o que eu estava querendo que ele olhasse. Quando é dada essa indicação, aí o câmera já sabe o que você quer e como enquadrar a tua intenção.  Isso quando é um câmera bom, que sabe ouvir, porque tem vezes em que você está com a pessoa do lado, você fala de uma coisa e o cara está vendo uma outra história – na cabeça mesmo, ele está narrando uma história diferente. E é sempre muito difícil entrar na história do outro, mergulhar para poder acompanhar... O trabalho em equipe tem muito isso.

E era complicado orientar o Carapiru nesses sentidos?

Nada, rapaz...Com ele é gratidão total. Ele é uma pessoa muito especial, afora tudo isso. Então mesmo na pior das situações de maior dificuldade, elas nunca foram dificuldade, sempre ficaram na palavra. Eu posso estar viajando ou ter pirado, mas se realmente existe gente mais iluminada em termos de consciência, o Carapiru é uma dessas pessoas, é um desses e está no Brasil - nós temos um Budão andando por aí...

Você falou das orientações para a equipe, e acho interessante que não tenha havido diferenças de sintonia com ele.

Sim, e ele aceitou os momentos mais difíceis. Uma vez eu pedi para acordá-lo mais cedo, intencionalmente, para que ele tivesse um pouco de mau-humor. Ele estava cansado, mas inteiro, porque sabia que eu ia chamá-lo. Eu não pedi licença, tinha um sentido que eu queria criar, e era esse o sentido da manipulação que eu falei, porque o resultado está na tela, e era o resultado narrativo que nos interessava. Então acontece isso nessa hora: o Carapiru vem, senta num canto, de bode, ele não quer saber da festa. Depois ele entra na festa, mas era aquele momento isolado que era preciso para a narrativa – narrativamente, a história conta que ele queria se isolar porque não se sentia parte dali. Nesse sentido, Carapiru é Andrea, Carapiru é um alter ego da minha leitura, como ser humano, das ameaças que existem no mundo. E botei aquele aviãozão no fim porque é igual, tá na nossa cabeça, talvez mais do que na dele. Aquele tipo de ameaça, mais na nossa do que na dele.

No filme, a imagem do trem chegando no início me parece até mais agressiva do que o avião no final.

Bem, mas uma imagem de um jatão carregado de bombas é um bocado agressiva. O Ismail fez uma interpretação interessantíssima porque, desde o princípio, o filme narra em três blocos a mesma coisa, ele se repete: são três famílias, três situações familiares, e são três viagens... E desde o início vai sendo narrada a história do fogo, em que o espectador está assistindo ela sem saber, vendo a criança cuidando do fogo, o fogo sendo aceso, para ela só ser contada no final. E aparece o fogo no filme fisicamente, tem as bombas... E o Ismail sugeriu que o jatão é a última tecnologia do fogo, aquela coisa da turbina do jato mesmo. Aí foi mais longe do que eu esperava!... Isso numa estória narrada no filme, a estorinha do fogo – você apaga aquele fogo, que pode ter cem anos de preservação, e aí você apaga uma história.

Mas o Carapiru é capaz de fazer o fogo...

É, ele é capaz de fazer o fogo. Mas na verdade ele sempre conserva o fogo, ele não deixa apagar. Não tem por quê se dar ao trabalho de produzir o fogo de novo, se ele pode carregar.

E não domina a arma de fogo...

Mas os índios usam, agora. Lembra da cena dos macacos? Pois é, ela começa assim, com todos aqueles macacos no chão e, de repente, vem um monte de tiros. E tem lá um índio com uma espingardona na mão. Quer dizer, a arma já está lá, no final.

Nem tem como impedir...

E inclusive não há como segurar. Você não tem que segurar nada, já está invadido, meu querido! Está invadido, eu sou um invasor desse território e sou um invasor da alma do Carapiru, da história dele. Só que a minha intenção é a melhor possível. Mas, se eu olhar factualmente para as coisas, é assim que elas são: no fundo, é uma apropriação. Com direitos ou não? Aí tem essa coisa, porque é uma história real, mas tem roteiro registrado, tem um autor e essa porra toda. E é disso que nós estamos falando...

Voltando ao assunto do cinema, a gente falava sobre a sua relação com esse universo de cinefilia de modo geral. Você comentou que tinha épocas em que via de tudo e outras em que não via nada...

Sim, circunstancialmente sim. Quando fiquei meses no Pará eu não via filme nenhum, só botava na televisão, lá em Altamira, as imagens que eu tinha gravado. Mas não havia nada, não tinha cinema.

E nos últimos vinte anos, houve momentos em que você acompanhou mais o que foi feito em cinema?

Sim, teve momentos. Agora, por exemplo – nessa semana não, mas, percebendo que tinha um tempo com o filme pronto até lançar, um momento meio vazio porque você não quer botar nenhum outro projeto para andar, por conta disso eu aceitei alguns convites para fazer parte de júris, ler roteiros... E vi, sei lá, cento e cinqüenta curtas-metragens, coisa que eu não fazia há muito tempo. Li uns vinte roteiros... E eu achei interessante, achei isso muito bom, é um momento em que eu posso fazer isso sem apego, com uma percepção boa do que está rolando, do que está sendo feito. Agora, para ir ver, só vou ver o que me interessa. A gente já tem informação suficiente para saber o que é que está passando – quando é uma surpresa eu vou, quero ver e etcétera. Mas os anos em que eu realmente fui muito ao cinema foram os anos que eu fiquei fora do Brasil, os dois anos em que eu fiquei fora – lá era como se eu conseguisse fazer isso como um padrão diário – e na época da juventude, das idas à Cinemateca com o Rogério, quando era na Sete de Abril, e às aulas do Paulo Emílio na USP, quando ele passava filmes. Mas essencialmente o meu aprendizado de cinema era o que passava nas salas da Liberdade e da Cinemateca. Na Cinemateca era diário – dois, três, quatro filmes por dia. Seria como, hoje, você morar no Largo da Cinemateca, onde tem sessão todo dia, a tarde inteira e a noite inteira. Se você começa a ficar lá dentro, acaba criando um padrão que vira parte da sua vida, você passa a viver mergulhado naquilo.

É bom embarcar nesse mundo.

Podendo, não é?

Claro, tem que ter condições financeiras para isso.

É o mínimo possível, mas é isso mesmo. Mais jovem, eu vivia nessa época na casa dos meus pais, ainda antes da faculdade.

Esse procedimento de usar material documental em narrativa ficcional tem uma tradição, dá para lembrar até do Welles no It’s All True, mas sobretudo no final dos 80 e início dos 90 isso se torna uma incidência constante em vários filmes. E o uso dos próprios Carandiru e Sidnei, o uso da reportagem da Globo, isso tem uma antenação com esse espírito. Minha curiosidade era saber como foi que isso se antenou, se é pensado ou se é algo intuitivo, como nas sintonias intergalácticas que o Jairo Ferreira falava

É, não sei se... Bem, no filme está tudo aí – o que eu tento é tirar um pouco a divisão e deixar isso mais ambíguo. É o estado em que eu queria que ficasse indefinido: “Não sei se é, será que é?... É? Não é?”. É isso, esse é o trajeto: é nesse espaço de indefinição que o sentimento possível pode transitar, porque é onde a gente fica um pouco menos ancorado a definições, à segurança das coisas. Agora, se a gente pegar como exemplo a televisão, outro dia eu estava passeando pelos canais, eu e a Cristina [Amaral], e, naquele vai-e-vem dos canais, em determinado momento eu fiquei confuso, achando que estava vendo coisas repetidas em canais diferentes. Aí a gente foi, voltou e eu entendi: estava passando um filme sobre a Guerra do Iraque no canal da Warner e, ao mesmo tempo, uma reportagem sobre a Guerra do Iraque na CNN.

Um filme e uma reportagem sobre o mesmo assunto...

E a narrativa era igual. Eu fiquei, por um instante, na dúvida entre qual era a ficção e qual não era. E a Cristina também percebeu a semelhança: “É verdade, a gente está olhando a mesma história nos dois canais”. Mas a gente insistiu no vai-e-vem e aí dava para ver o discurso jornalístico num e o discurso moralista no outro. Nesse discurso moralista, o soldado americano ficava indignado com a tortura e as injustiças, se perguntando por quê a ONU não agia... E, ao mesmo tempo, o torturador está com a mesma roupa que ele, norte-americana, mas quando ele abre a boca a gente vê que é um latino-americano, que está lá arrebentando o iraquiano, torturando o iraquiano para obter as informações. Então, a ideologia se revela claramente na narrativa ficcional, e a outra versão, jornalística, te traz a narrativa de condicionamento, digamos assim. Só que a imagem é a mesma. É a mesma história que eu acho que acontece com a imagem digital, porque assim você pode criar imagens e outras realidades, pode fazer aparecer uma pessoa - não por meio de trucagem ou superposição, mas no próprio relevo. Então a partir daí a credibilidade da imagem é nula, já acabou esse negócio de dizer que a imagem corresponde à realidade. A imagem é uma realidade que a gente quiser construir, uma outra coisa, uma representação. E você sabe que mesmo a forma que só reproduz já é uma representação do real, porque depende do olhar, de todos os sentidos que permitem construir uma imagem. Enfim, a gente pode divagar... Se a gente seguir falando, acaba sempre pensando nisso: “o que eu sei, afinal?”...

Mas é nessas divagações que as idéias vão se transmitindo.

É, claro. De alguma maneira, é falar de algo que eu estou tentando olhar, perceber.

Um dos filmes a que o Serras da Desordem faz referência é o Iracema, uma Transa Amazônica.

É, eu uso a cena do Pereio com a garota.

É um filme aparentado?

É um antecessor, ou um antecedente, digamos assim. É um antecedente na passagem por esse tipo de situação que permite gerar um trânsito do olhar, que transforma o documental em ficcional e revela o que existe de ficcional no documental. Porque aquilo está lá e você pode ajudar a construir a situação – eu fiz isso e o filme do Bodanzki fez isso. O Pereio é uma interferência ao vivo como ator dentro da história – mas, se você não souber quem é o Pereio, o filme cumpre mesmo assim a sua função. E não é só uma citação cinematográfica que eu quis pôr não. Por uma sintonia de imagem e de situação, que é esse percurso na realidade brasileira, tem uma cena do filmes deles no meio da seqüência de madeiras sendo derrubadas – tanto que é a única imagem de um filme de ficção que entre no meio de imagens de documentário, todo o resto é composto por imagens de documentação de arquivo. E ela passa como parte da narrativa – é ela que dá, para quem vê cinema e conhece, aquela sensação de que tudo é uma ficção, em meio a um monte de imagens jornalísticas montadas para ter um certo significado de tempo e de transformação, de violência...

Mas também é um filme muito sintonizado com o tempo, já que essa relação entre real e ficcional é algo cada vez mais constante. Eu me lembrei bastante do Close-Up, do Kiarostami. O filme me parece ligado a um caminho para criar novas formas de dramaturgia...

Certo... Bem, isso que você falou sobre tempo é com relação ao nosso período histórico, não é? Com certeza o filme tem uma maneira de falar, mas isso não é uma busca consciente de, para usar as suas palavras, criar uma nova dramaturgia. Talvez ele seja o espelho do que é a reflexão sobre essa busca por uma outra forma de conhecer as coisas. Mas, se existe uma forma, eu tenho certeza de que ela vem de um movimento interior. Existem cenas que eu sei que vêm totalmente do meu imaginário. A cena da matança é do tipo que é criado com olho fechado, só na imaginação. Essas imagens vêm, não sei por que raio de coisa que role, mas elas vêm da imaginação – não vou dizer que são sonhadas, porque nunca pensei em imagens de sonho como algo que pudesse contribuir, mas foram como se sonhadas conscientemente, durante o dia. Por exemplo, a cena do aparecimento dos matadores, no meio da mata, cheios de folhas – você vê a mata e ela fica viva num instante... No dia da filmagem eu cheguei ali e fiquei duas horas parado, sentado num canto, olhando as coisas para visualizar os acontecimentos, antes mesmo de montar o acampamento para filmar.. E teve um instante assim mesmo, quando eu estava olhando para aquela mata fechada, ela ficou viva e eu pensei: ‘Ah, eles vão sair armados dali de dentro e vêem na direção da câmera”. Depois eu uso umas imagens da memória do filho e imagens reais. Mas a cena é imaginada nessa soma que resulta de estar na locação, vivendo no espaço do filme. Não é uma cena de roteiro, apesar do roteiro descrever um ataque - ela aparece nesse momento. Para isso, é preciso olhar internamente para a situação narrativa, digamos. E lá ela se compõe, os elementos se materializam – quando você escolhe a locação, ela se apresenta e bota os personagens em movimento.

Já o depoimento do Sidnei parece ser documental mesmo.

O depoimento do Sidnei é anterior à filmagem, e o Sidnei foi uma das primeiras coisas a serem filmadas. Agora que você falou, lembro que foi a primeira coisa a ser filmada, o depoimento do Sidnei. Que foi feito a caminho do Maranhão, quando eu estava subindo de carro, eu parei em Brasília e tudo foi gravado no terraço da casa do André Luiz de Oliveira. Nós sentamos lá uma manhã e gravamos várias coisas – passamos o dia lá, com ele contando histórias e eu questionando detalhes.

Ali é a verdade dele...

E foi já tendo essa história que nós fomos ao Maranhão, que foi quando eu conheci o Carapiru. Foi gravado antes de eu conhecer o Carapiru, e está no filme.

É, tem toda aquela parte em off, no momento em que o Carapiru vai para a casa dele, quando o Sidnei conta como a coisa foi - ali tem um estatuto de verdade própria do Sidnei, intervindo na narrativa.

Sim, e ele é personagem da história. Quando eu gravei, eu não tinha nem idéia do formato que o filme viria a ter e nem imaginava que iria usar aquilo. Em certo momento aquilo esteve excluído – quando nós começamos a montar o filme, nada disso iria entrar.

A criação é fluida, vai acontecendo... Quando se fala em narrativa e manipulação, parece que tudo é arquitetado previamente, mas não é assim que acontece.

Claro que não. O que existe é aprender a nadar dentro disso.

“Aprender a nadar” é uma boa expressão - é o nome de um disco do Jards Macalé... Mas de fato a coisa vai se construindo pouco a pouco, não é?

Eu acho que, se tem alguma verdade, se existe alguma vida na obra, ela vem desse processo. Se isso consegue ser impregnado na narrativa, mantém o frescor para quem vê e tem a descoberta. É isso que me interessa.




Entre o caos e a desordem

(Texto publicado no livro "Serras da Desordem" - Ed. Azougue, 2008, coletânea de ensaios+entrevista+filmografia sobre o filme homônimo)


Andrea Tonacci e Rogério Sganzerla começaram a fazer cinema nos agitados anos 60. O início foi em parceria: em 1966, Tonacci fez a direção de fotografia do primeiro curta de Sganzerla, Documentário, e Sganzerla fez a montagem do primeiro curta de Tonacci, Olho Por Olho – dois filmes produzidos numa empreitada coletiva (juntamente com O Pedestre, de Otoniel Santos Pereira). E assim ambos os realizadores começaram suas carreiras naquele momento crucial na trajetória da criação em cinema: internacionalmente, as formas clássicas estavam sendo confrontadas em diversos aspectos – no modelo de filmagem em grandes estúdios, no formato de desenvolvimento de enredos, na tipificação de heróis e psicologismo de personagens, no encadeamento visual e rítmico dos filmes etc; e, no plano nacional, num movimento sintonizado com o que ocorria em outros países, a produção de cinema no Brasil estava adquirindo um respeito inédito junto à “opinião pública” e aos festivais internacionais a partir da aparição de filmes que consolidaram naquele momento a posição central do grupo cinemanovista, com cujo cinema os então jovens cineastas tiveram uma forte relação de continuidade e negação. Algumas preocupações se tornaram explícitas naquele contexto, sempre a partir de um questionamento primeiro que não tem resposta definitiva: o da relação entre cinema e realidade. Em torno desta relação aparecem determinadas questões interligadas entre si: quais são as formas narrativas possíveis ao cinema; de que modos ele pode registrar a realidade; em que aspectos o registro de cinema afeta o real; qual a relação de compromisso se deve ter com esta realidade; enfim, qual a ambição que o cinema deve ter como modo de expressão artística, seja ela derivada da realidade, da imaginação ou de ambas. Havia ainda algo que logo se refletiu nos primeiros longas-metragens de ambos os realizadores: um questionamento constante sobre a condição cultural da produção brasileira. Todas estas questões marcantes para a geração que surgiu nos anos 60 são fundamentais nas motivações e escolhas determinantes nas narrativas tanto de Serras da Desordem quanto de O Signo do Caos, as produções de Tonacci e Sganzerla realizadas na primeira década do século XXI.

            O processo de modernização narrativa por que passou o cinema na metade do século XX teve nos primeiros filmes de Orson Welles momentos decisivos. No entanto, a partir de sua decadência em Hollywood o realizador foi posto à margem: se os filmes que realizou, de Cidadão Kane a Badaladas À Meia-Noite, caracterizavam-se pela engenhosidade dos enredos e pelo uso fortemente expressivo de enquadramentos, cortes e sons em narrativas sobre o desmoronamento da falsa grandeza de seus personagens, os estilos predominantes nas correntes centrais do cinema moderno nasceram de outras ambições. Estas correntes seguiram, de diversos modos, o caminho aberto pelos neo-realistas de usar a arte como forma de apresentar a realidade – tenha sido pelo uso de não-atores e de locações reais, pela desmistificação do espetáculo ou pela busca de questões e sensações do cotidiano. Sganzerla retorna ao ponto trágico de Welles na sua passagem pelo Brasil, justamente quando ele planejava uma obra que, segundo sugere O Signo do Caos, anteciparia todo este caminho que na Itália ganhou o nome de neo-realismo ao apresentar num filme as faces e dramas do “povo brasileiro”. A história é bem conhecida: naquele momento Welles estava sendo descartado pela Hollywood que havia lhe dado carta branca até então. Seu primeiro filme representara uma aposta imensa da indústria de cinema num jovem talento, mas o retorno imediato se deu mais em polêmicas do que em bilheteria – e não era possível prever o culto que se formou com o tempo em torno de Cidadão Kane. Diversos lances do azar dificultaram suas relações com os produtores e, assim, ele acabou por perder o controle tanto sobre o filme que estava em fase de montagem (The Magnificent Ambersons) como sobre o filme que estava sendo rodado (It’s All True). Foi naquele instante - quando ele mal havia começado a mostrar as idéias que tinha para criar filmes, mas já mostrara que iria se caracterizar por uma imaginação inquieta e uma construção narrativa e visual barroca e complexa - que sua carreira chegou ao ponto de virada e entrou em permanente decadência no que concerne à continuidade de produção, sempre com dificuldades de produzir novos projetos. Dali em diante Orson Welles e seus filmes imaginativos e complexos se tornaram párias, exilados tanto pela indústria que o desprezou (e que entraria numa fase de crise) quanto pelo cinema moderno caracterizado pelo realismo. O fantasismo cinematográfico saiu de moda[1] - e, após muitos anos marginalizado e restrito ao trabalho de alguns realizadores ou pequenos espaços, voltou a ser hegemônico no final dos anos 70 justamente a partir da produção industrial, num movimento de infantilização e confortabilidade inteiramente contrário ao que caracterizava o cinema de Welles. Se Cidadão Kane e The Magnificent Ambersons têm estruturas fabulares que se diferem um bocado dos códigos de realismo que seriam adotados dali em breve (assim como os filmes seguintes de Welles, Macbeth, A Dama de Shanghai e Otelo), é evidente que o tom de seus enredos e personagens e a relação que estabelecem com o espectador é inteiramente diferente do que se veria a partir de Star Wars, Indiana Jones e o que se seguiu a eles. Triste ironia: poderia ter sido outro o percurso da imaginação no cinema se os projetos de Welles tivessem sido bem-sucedidos junto à indústria e seu público. Seu fracasso condenou a indústria à covardia.

O Signo do Caos trata do instante fatal da crise de It’s All True para denunciar este corte abrupto e definitivo no caminho da criação cinematográfica e, a seu modo, criar um novo caminho a partir deste beco sem saída que fora abandonado na década de 40. Assim, o filme de Sganzerla parece demonstrar que, retornando a este modo de narrativa abandonado décadas atrás, é possível fazer um cinema muito mais interessante - mais criativo, ousado e emocionado - do que aquele que se fez desde então e continua a ser feito hoje; e, desta forma, denunciar a gravidade daquele acontecimento, que pôs em jogo todo o caminho por que passaria o cinema no mundo. Não é por acaso que no filme se ouve uma frase dita por Welles numa entrevista: “É preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos!” No entanto, O Signo do Caos também mostra como este caminho da criatividade, uma vez tolhido, cortado, escondido e destruído, só pode renascer a partir de constantes revisões e recomeços – não por acaso, ele parece estar dividido em blocos, como se cada proposta de recomeço logo fosse encerrada e precisasse ser substituída por uma nova. Assim, temos uma metade inicial, em preto-e-branco fortemente contrastado, que também parece se dividir em dois momentos: primeiro, o de obter o material do filme maldito; em seguida, o de examiná-lo e decidir o seu destino, quando diversas falas indicam a analogia presente entre a criação de Welles e toda a criação cinematográfica, de modo geral - em que se inclui evidentemente a de Sganzerla (que também foi acusado ocasionalmente de não ter feito uma carreira à altura de seu primeiro filme, O Bandido da Luz Vermelha). Deste modo, O Signo do Caos se constrói motivado por uma “paixão crítica”, conforme a expressão de Octavio Paz sobre a poesia moderna[2]: ele recusa toda a banalidade cinematográfica do seu tempo e, para recriar sua arte, encontra um antepassado por ele descoberto (ou inventado).

A segunda metade do filme, de cores acentuadas, por sua vez também se divide em duas: primeiro, o festejo pelo fim do projeto se junta a uma visão alegórica das belezas do Brasil, encarnadas por Camila Pitanga; em seguida há um ritual funéreo para queimar o filme maldito – e, quando novamente se explicita a consciência moderna do diálogo que O Signo do Caos propõe com este cinema perdido, agora ela tem um teor auto-reflexivo mais intenso e agônico. A acusação de auto-boicote é enunciada pela personagem de Helena Ignez: “Ele descobriu seu maior inimigo: ele mesmo.” Uma amarga auto-complacência se faz evidente na resposta, feita por um defensor da obra: “Vocês não compreenderam, isto é o Brasil. Com suas pequenezas, mas também suas belezas e suas grandezas”. O cortejo é interrompido por uma fábula contada a uma criança – enquanto segue por uma estrada cercada pela beleza esverdeada das plantas, ela ouve que o mundo não possuía cores até os anos 1940 (como o cinema), mas os pintores de então faziam quadros já prevendo as cores porque os artistas são uns loucos; no entanto, as cores de fato só surgiram depois – as cores não eram visíveis no tempo dos artistas, mas teriam se tornado notáveis com a passagem do tempo. Esta fábula de razoável otimismo surge nos minutos finais de um filme que apresentou até então somente perspectivas sombrias para a criação artística – mas este momento de respiro não dura muito, pois em seguida nada resta senão a perspectiva amarga de mostrar o filme maldito sendo queimado. Não é sem razão que Sganzerla definiu a obra que dirigiu como um “anti-filme”: como uma recriação amarga de um projeto de arte que não chegara a se realizar, O Signo do Caos cria para si próprio a cilada em que se obriga a ser a realização definitiva de uma imaginação maldita. Já se disse que a crise que move a arte moderna é a consciência da morte[3]: pois O Signo do Caos é a encarnação em cinema desta consciência, como um fecho em que, por analogia, o próprio realizador se apresenta como personagem trágico em defesa da sua arte; e, ao mesmo tempo, a obra também parece ser uma tentativa última de salvamento desta arte ao menos através de sua própria existência, de sua possibilidade de ser vista (nem que seja “na parede de um mictório infecto”, conforme pragueja o personagem Dr. Amnésio) e assim contagiar quem assiste. Talvez seja por isso que, em consonância com a amargura de seu tema, o filme emita uma certa força radioativa, que sustenta sua colagem visual e dá sentido ao seu lamento agônico.

            Afirmei acima que as principais correntes do cinema moderno, nos anos seguintes ao declínio de Welles, seguiram caminhos de cunho mais realista, e me parece interessante notar que a crise instaurada pela relação entre cinema e realidade - depois de gerar diversos filmes que procuraram usar as câmeras para retratar o cotidiano (seja em documentário ou ficção), após esse momento decisivo dos anos 40 abordado por O Signo do Caos - poucos anos mais tarde gerou filmes que procuravam fazer o público se questionar sobre o próprio espetáculo cinematográfico, justamente por não crer que o cinema pode pretender ser fiel à realidade. Assim, depois de um primeiro movimento em favor de um cinema que levasse o espectador a ver a realidade das coisas, surgiu um movimento que apontava ao espectador a realidade do seu próprio gesto de estar vendo um filme. O reconhecimento das características de espetáculo próprias da narrativa cinematográfica, no entanto, não esvazia o interesse em trazer as questões mais fortes do cotidiano para a tela – sua conseqüência é o redimensionamento das possibilidades, limites e formas de fazê-lo, implicando numa permanente posição crítica sobre os procedimentos de abordagem, representação e narrativa (e, de certo modo, este é um motor fundamental de Serras da Desordem). A crença na pretensa capacidade de apresentar o real através do cinema esteve presente em muitas outras obras, de dramas íntimos a épicos históricos, de enredos psicologizantes a reproduções do cotidiano. O realismo, em suas diferentes facetas, tornou-se uma ética amplamente difundida na criação cinematográfica (e para alguns talvez tenha se tornado mesmo uma religião) ao mesmo tempo em que esteve permanentemente em crise e sob ataque. Serras da Desordem não apenas se mostra consciente desta crise como se estrutura a partir dela e, deste modo, torna-a explícita: o filme com o próprio Carapiru mistura entrechos encenados com outros que parecem ser documentais, adicionando a esta narrativa a memória da construção de uma linguagem cinematográfica, a memória de uma imagem de nação e também a memória da relação com as tribos indígenas. Assim, o filme se constrói a partir da exibição de sua própria estrutura e deixa visível esta crise da representação pretensamente realista: é o próprio Carapiru diante da câmera, ora realizando encenações ditas “realistas” de fatos passados, ora sendo registrado em momentos que sugerem espontaneidade; além disso, a história de Carapiru é mostrada em conjunto com as imagens de arquivo que o filme apresenta. Estas imagens, que denotam toda a carga histórica de representações audiovisuais com que trabalha Serras da Desordem (como já apontou Luís Alberto Rocha Melo em outro texto deste livro), trazem ao filme a evidência que restava para findar com a herança realista: desta forma ele se assume como fábula. Não se trata de “mostrar tudo que ocorreu” a Carapiru, mas sim de representar a sua trajetória de forma crítica, tornando consciente o que significa relatar seu percurso através do cinema.

            Desse modo, Serras da Desordem traz ao espectador uma ampla perspectiva de um imenso painel histórico audiovisual, ao mesmo tempo em que se mostra em sintonia com outras obras que puseram em questão a pretensão de realismo. Partindo do universo de construção de imagens que une o Nanook de Robert Flaherty aos filmes de Luiz Thomaz Reis, o documentarista responsável pelos registros cinematográficos de índios brasileiros feitos pela Comissão Rondon, e aos de Jean Rouch, o documentarista francês cujos filmes na África simultaneamente registram o cotidiano de seus habitantes e refletem a sua própria realização; recriando um imaginário de nação que revisa a tradição de imagens oficiais para o grande público, dos documentários de Jean Manzon às matérias do programa Globo Repórter; unindo as estratégias de representação e abordagem do mundo de Iracema, uma Transa Amazônica, o filme de ficção que se imbrica com documentário de Jorge Bodanzki e Orlando Senna, ao filme de Abbas Kiarostami Close-up, que usa como atores os próprios personagens do enredo que conta: é com a consciência destes predecessores que se monta Serras da Desordem. É através do encontro destes caminhos amplos - ao se organizar como uma sucessão de atmosferas e ambientações para retratar a odisséia de Carapiru e ao se formar a partir da soma de diversos gêneros de cinema - que o filme dirigido por Tonacci aponta para novas formas da velha tradição de narrar uma história. Através da justaposição de um discurso explicitamente narrativo com outro de apreensão do real (complementados por imagens de arquivo), o filme põe abaixo a crise entre teorias formalistas e realistas com a imagem constante do próprio Carapiru a validar seu traço de real e sua força fabular – a presença visual do próprio personagem-ator torna inviável qualquer separação definitiva entre o registro ficcional e a realidade deste registro. A aparição de Andrea Tonacci ao final do filme - assumindo seu papel como mediador desta narrativa sobre a trajetória de Carapiru, o índio desterritorializado, em eterna viagem desde a perda de seu espaço vital – gera uma crise revitalizadora ao questionar o espaço deste próprio filme na relação entre um homem que teve sua forma de vida atacada e a civilização que primeiro colonizou o seu espaço e posteriormente se apropriou de sua imagem e de sua história para poder refletir sobre si mesma. Com esse somatório de camadas de registro, que permite ampliar a perspectiva sobre o que é mostrar a trajetória de Carapiru, Serras da Desordem imbrica a percepção de real dentro de um projeto de fábula e, assim, pode dar conta do seu projeto ambicioso: relacionar a narrativa da vida de um homem a uma ampla revisão crítica das formas de representação em cinema e a um retrato da violência gerada pela expansão de uma sociedade na perspectiva de um personagem à margem desde sua origem.

            Não são poucas as oposições que, como reversos de uma moeda, parecem ligar os personagens principais de O Signo do Caos e Serras da Desordem. Orson Welles e Carapiru: se no primeiro filme a figura central é invisível, no segundo filme a câmera mostra seu protagonista em diferentes ambientes e registros (incluindo fotos e reportagens). O primeiro fala inglês, a língua que permite o contato com muitas tribos mundo afora - e, além disso, produz cinema, a arte que pode reunir múltiplas formas de expressão; o segundo fala somente a língua dos Awa-Guajá, “tupi arcaico” que nenhuma outra tribo domina com fluência. O primeiro vem de seu país para o Brasil como participante de um programa político colonialista (a política da boa vizinhança) e, uma vez aqui, é impedido de criar sua arte por ações do Estado brasileiro; o segundo faz parte de uma etnia que habita um pedaço da terra chamada Brasil há mais tempo que a sociedade que aqui se estruturou como nação (portanto, neste caso nós outros somos os colonizadores) – e teve o seu espaço invadido e sua família dizimada por grileiros. O primeiro, Orson Welles, que não se vê e cujo nome quase não se menciona, parece ser uma máscara em que se identifica o realizador do filme, Rogério Sganzerla; o segundo, Carapiru, que está sempre visível e ganha mais de um nome ao longo do filme, encontra-se ao final da narrativa com o realizador que construiu aquele retrato, Andrea Tonacci. Ao final, ambos foram levados a retornar para os respectivos lugares de origem sem levar nada herdado do período de trânsito pelo Brasil a não ser suas lembranças. São duas trajetórias simbolicamente significativas e em ambos os filmes há um questionamento silencioso mas sempre presente: qual a medida das conseqüências que estes homens sofreram em suas vidas por conta destas trajetórias, Welles em sua empreitada milionária fracassada e Carapiru em sua odisséia marginal? Ambos os filmes partem dos momentos decisivos em que eles foram impedidos de levar adiante seus projetos: Welles o de fazer a sua arte com liberdade; Carapiru o de viver a sua vida em paz. Já lembrei que Welles produzia cinema – e cabe contrapor que Carapiru sabe produzir o fogo.

Cada um dos dois filmes faz uma nova trilha, a seu modo, a partir de um dos caminhos definidos por realizadores fundamentais na renovação que a criação de cinema teve entre os anos 40 e 60. Em O Signo do Caos revemos o universo da imaginação barroca e moderna de Welles que nasce em Cidadão Kane: todo o filme se estrutura como um lamento pela trajetória que esta arte teria a partir do momento decisivo em que um filme foi interditado e massacrado – é um lamento sobre o futuro que foi reservado ao cinema, uma vez constatada a destruição dos espaços para a livre imaginação criadora. Já a obra de Tonacci, embaralhando o processo ficcional com entrechos documentais, revê todo o histórico de construção do verismo cinematográfico a partir do relato da trajetória de um homem que poderia representar uma outra humanidade – e faz isso numa perspectiva ampla das relações que o cinema teceu com a realidade cotidiana de seus personagens, uma tradição que reúne  de Luiz Thomaz Reis a Roberto Rosselini (realizador que usou atores não-profissionais para representarem personagens da mesma origem), passando por Jean Rouch e muitos outros mais. Serras da Desordem amalgama esta perspectiva numa narrativa sobre sociedade, história e humanidade que, através dessa colagem de registros, memórias e ambientes, parece tornar possível a criação de um novo cinema. É isso que cada filme põe em jogo: num, o futuro do cinema; noutro, o cinema do futuro. O Signo do Caos lamenta a censura a um cinema da imaginação, representado por Orson Welles e seu filme (ironicamente, intitulado É Tudo Verdade); Serras da Desordem gera um novo cinema de apreensão do real, a partir de Carapiru e de toda a produção audiovisual que pode ser referida a ele (ou seja, a partir de toda a produção audiovisual visível). O Signo do Caos recria Welles e procura ir além num terreno abandonado da criação para encontrar o caminho da arte mais pura em sua inventividade - enquanto Serras da Desordem parece seguidamente dinamitar e reconstruir criticamente o caminho cimentado da história do realismo cinematográfico para refletir sobre o que significa apontar a câmera para um homem, que sempre será outro.

A criação cinematográfica sempre se supôs dividida entre estes dois pólos: imaginação e realidade. Parece-me que a comparação desta dupla de filmes realizados no Brasil dos primeiros anos do século XXI nos deixa perceber toda a imensa história de conflitos e conciliações travadas entre filmes, realizadores e espectadores a partir destes dois conceitos. O que me parece mais intrigante, no entanto, é o diagnóstico que estas duas realizações de uma dupla de amigos de adolescência trazem sobre o seu próprio lugar histórico - e, por extensão, tanto do cinema brasileiro como da própria condição cultural da sociedade em que se encontram - ao apontar a falência do espaço para a imaginação, no caso de O Signo do Caos, e a necessidade de reinvenção a partir da própria realidade que se dá em múltiplos movimentos e registros, no caso de Serras da Desordem. Entre a agonia e a diáspora, o imenso panorama cinematográfico que se constrói na relação entre os dois filmes traz à luz um novo cinema, inicialmente marginal, periférico - e, ao fim de tudo, vitalmente afirmativo: ambos os filmes se mostram conscientes de que se justificam por sua própria existência; e apenas por existir tornam mais complexos e ambiciosos tanto a arte quanto o mundo de que tomam parte. Do encontro entre cinema e realidade, O Signo do Caos traz uma revisão mortífera do passado censor; em contrapartida, Serras da Desordem tira deste encontro a pulsão vital diante de um futuro incerto. Como duas faces de uma moeda cujo valor é nítido e luminoso: o cinema, uma arte agora renovada.





[1] É comum a lembrança da decadência por que passaram gêneros clássicos como musicais, filmes épicos e faroestes; mesmo no caso de desenhos animados, o coelho Pernalonga deu lugar ao núcleo familiar dos Flintstones. É claro que várias exceções podem ser apontadas em vários países – diversas na Itália, na Espanha, no México e na União Soviética, por exemplo. Mas eu pretendi apontar aqui que na indústria de Hollywood os filmes de fantasia estiveram restritos à produção de baixo custo ou a poucos nomes significativos como Hitchcock. Do mesmo modo, ainda que haja exceções como, por exemplo, os filmes de Fellini, o dito cinema moderno era realista, fosse pela vertente social ou psicologista.
[2]Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixão crítica e é, assim, uma dupla negação, como crítica e como paixão, tanto das geometrias clássicas como dos labirintos barrocos. Paixão vertiginosa, pois culmina com a negação de si mesma: a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora.” PAZ, Octavio, Os Filhos do Barro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Estas palavras indicam que, segundo Paz, uma obra moderna, caracterizada pela ruptura com seu passado imediato, origina-se de uma atitude crítica apaixonada pelo seu próprio meio. Mais à frente, ele aponta que “uma das máscaras que a modernidade ostenta” é a descoberta de produtos artísticos antigos como forma de romper com seu tempo, exatamente como O Signo do Caos procede com It’s All True: “A tradição moderna apaga as oposições entre o antigo e contemporâneo e entre o distante e o próximo. O ácido que dissolve todas essas oposições é a crítica.
[3]A imagem poética configura uma realidade rival da visão do revolucionário e da visão do religioso. A poesia é a outra coerência, não constituída de razões, mas de ritmos. Não obstante, há um momento em que se rompe a correspondência; há uma dissonância que se chama, no poema, ironia e, na vida, mortalidade. A poesia moderna é a consciência dessa dissonância dentro da analogia.” Novamente estou citando Os Filhos do Barro, de Octavio Paz.