Realizada em agosto de 2007 e publicada no livro "Serras da Desordem" (ed. Azougue, 2008), coletânea de ensaios+entrevista+filmografia sobre o filme homônimo.
Para começar, eu gostaria que você comentasse um pouco
sobre todo o processo que te levou a fazer o filme, já que você havia feito
alguns filmes com comunidades indígenas, como Os
Arara e Conversas no Maranhão, e
o histórico de aproximação cultural com os índios sempre levou a um
questionamento da nossa sociedade a partir do contato com outra sociedade...
Bem, a gente fala hoje dos
índios porque eles sobreviveram, mas na verdade qualquer encontro como este,
entre culturas que nunca se viram, tem um processo de conhecimento - ou
desconhecimento - do outro. Esse me parece ser um movimento básico, quase
celular, da humanidade, e não apenas uma característica da nossa, vamos
generalizar, da nossa cultura branca em relação aos índios. Um índio pode ter a
mesma coisa em relação a outro índio ,como também pode ter em relação a
nós. Quando existe um contato que não é
na marra, que não é pela força como normalmente tende a ser, esse contato
eventualmente também pode ser um desejo do
outro, e não só nosso em encontrá-lo. Então eu acho que essa relação que
a gente estabeleceu com algumas tribos não é um caso particular, e acho que é
oportuno de ser observado porque é algo que a gente tem muito próximo aqui de
nós, esse outro que é o índio brasileiro, esse outro que fica isolado numa
floresta a quatro mil quilômetros daqui mas a gente já tem como ir até lá.
E para eles isso pode ser
assustador, porque o homem branco tem a pólvora, tem a força...
Bem, este processo é bastante louco. Teve uma vez, quando
eu fiz Os Arara, num período em que a gente ficou parado num posto de
vigilância da Funai no Pará, e ficou tudo calmo durante meses... Até que um
belo dia, num fim de tarde, os índios atacaram o posto. Teve gente flechada e o
cacete. Foi uma ação do tipo em que eles chegaram devagar e enfiaram as flechas
por entre as tábuas, silenciosamente, nas frestas, para flechar a gente lá
dentro. Mas o que gerou isso, quando durante aqueles meses todos houve troca de
presentes? Até então era aquela relação de visibilidade sem ver o outro, de uma
tentativa de aproximação sem agressividade... Que não era uma pacificação, na
verdade era uma tentativa de desarmar as tensões, já que pacificação parece ser
uma coisa na marra, e o que era feito era um esforço de desmontar a
agressividade Então, o que aconteceu? Bem, depois de alguns dias chegou a
informação de que, a uns tantos quilômetros, uns cinqüenta quilômetros de lá,
dentro do território dos índios, máquinas do Incra, a serviço de uma prefeitura
de não-sei-onde, pagas por um invasor qualquer para retirar madeira, entraram
no território indígena, derrubando tudo no caminho, para tirar madeira durante
uns três ou quatro dias – bem rápido, para não dar tempo do Ibama fazer nada.
Eles avançaram lá dentro e, no dia seguinte, os índios nos atacaram. Aquele
grupo não tinha conhecimento se o pessoal era o mesmo ou não. Para eles, era
tudo a mesma gente. Eram os outros que estavam ali, então é tudo a mesma turma.
Então tem muitos casos, muitas coisas que ocorrem nesse processo e mostram como
a gente não sabe do Outro. Essa questão do desconhecer o Outro sempre me foi
atraente, não particularmente por ser índio, mas porque o índio tem a
possibilidade de ser esse o mais outro possível. Mas esse Outro é o ser humano,
é você, é cada um de nós diante de alguém, é o mundão...
E como nasceu essa sua
vontade de ir aos índios para conhecer esse outro?
Isso nasceu de uma fantasia,
depois isso se comprovou para mim, era uma fantasia, uma ilusão, que aconteceu
assim: quando surgiu o vídeo portátil, eu percebi que a partir de então imagem
que se fazia podia ser projetada no mesmo instante. E aí é que eu percebo o significado
desse outro olhar, porque o cara pode ver na hora o que você está fazendo, já
não é o processo do filme que tem que revelar e só depois é visto – você tem no
próprio instante a relação com aquilo. Como acontecia também com as fotos de
polaroid, por exemplo, que todo mundo podia ver na hora.
Você começou a trabalhar
com vídeo bem cedo, já no meio da década de ’70, não é?
É, em 75 o trabalho com a
Ruth foi todo feito em vídeo, o Jouez Encore, Payez Encore foi o
primeiro vídeo, em preto-e-branco, feito num vídeo portátil comercial. Mas,
então, em determinado momento a forma de olhar o mundo, a forma de percebê-lo
visualmente do Outro, me parecia que através dessa tecnologia fosse possível
percebê-la, fosse possível ao ver essas imagens ver o mundo pelo olhar do
outro. Não que com isso eu esteja falando de antropologia visual, embora isso
faça parte da antropologia visual e eu tenha visto coisas lindas feitas pelos
Navajos em 1944 em película 35mm, e coisas feitas até antes disso pelos
próprios índios...
Mas isso também aconteceu
no Brasil?
Não sei, eu só vi isso dos
Navajos, dos EUA, mas provavelmente na época do Marechal Rondon o Major Reis
deve ter dado a câmera na mão dos outros. Não sei se eles reconheceram o
sentido disso, mas aposto que puseram. Se não se descobriu, é porque faltou um
olhar que descobrisse a diferença. Mas, voltando à minha ilusão inicial, eu
pensava que através da câmera na mão do outro eu poderia ter algo desse olhar,
que me permitisse perceber o mundo conforme alguma coisa, pelo menos, que seria
do outro. Isso foi durante algum tempo uma fantasia, e chegou a me levar aos
Arara, que eram índios isolados – eu queria botar a câmera na mão de índios
isolados, e não de um índio que, mesmo que separado, já tivesse visto fotografias
ou ouvido falar de televisão. Eu queria encontrar índios que não tivessem nem
idéia de que troço era aquilo. A prova disso é que, se você põe o objeto na mão
deles, eles não têm posição para as pessoas. Mas com o tempo isso já gerou
trabalhos, o próprio Vincent Carelli já falou sobre esse processo da câmera na
mão do outro, do período em que a gente fez o Conversas do Maranhão. Mas
o que eu entendo hoje é que o equipamento, principalmente equipamento de
imagem, como produção de linguagem e de estrutura narrativa que permita contar
coisas ou mostrar, interferir nos sentidos do outro, tudo isso é produto da
nossa cultura, da nossa estrutura mental e, sendo produzido tecnologicamente, a
gente materializa em termos de máquinas uma coisa que produz uma linguagem.
Isso faz parte da nossa cultura. A cultura desse índio onde eu fui, por
exemplo, nunca produziu nada que fosse tecnologicamente ligado a um método de
produção de imagens – e nem eles têm tradição de contar histórias, os Arara, no
caso. São passagens, contar não importa. O Carapiru me disse isso, que não tem
por que contar a vida dele: “Isso é a minha vida, aconteceu comigo, não tem
a ver com os outros. Não tem por que ficar contando. Eu só estou contando para
você porque você está me pedindo”.
Mas ele topou o projeto,
não?
Topou. Ele quis fazer, ele
entendeu e foi porque gostou da idéia de rever as pessoas, porque eu me
comprometi a levá-lo de volta. Isso levou dois a três anos para ficar acertado.
Mas eu estava falando da questão da câmera. Chegou uma hora em que me parece
que a câmera é simplesmente mais um instrumento da nossa dominação. O índio vai
fazer o que a gente faz se a gente der uma câmera e ensinar a usar, é gente
igual a gente e, se você fornece a estrutura...
Só o fato de fazer ele pensar em formular uma imagem
naquele padrão...
Ele já vai formular conforme
aquela tecnologia lhe dá estrutura para essa formulação. Quer dizer, ele pode
construir a imagem na frente da câmera do jeito que ele quiser, mas isso só depende
da criatividade de cada um, não importa tanto de onde ele vem, se tem cinco
pernas ou três cabeças. Mas o meio que permite a todo mundo criar é também o
que vai formatar.
Nesse sentido, é bem evidente uma certa evolução do seu
percurso, já que antes você entregou a câmera para os índios e no Serras da
Desordem você se manteve sempre como o narrador.
Sim, no Conversas do
Maranhão eu tentei fazer isso. No Os Arara isso também acontece num
material que nunca foi editado. Os Arara que a gente está falando são
três episódios e só dois foram editados, eles são totalmente lineares e foram
narrados pelo Sidnei de uma maneira bem confessional, filmados nas condições
que deu – nos suportes U-Matic, Beta, 16mm, cada hora era uma coisa, mesmo
tendo a Bandeirantes por trás. A verdade é que eles nunca deram suporte real
porque televisão precisa de tudo para o dia seguinte. Eles pensavam: “Se o
Andrea está indo hoje filmar os índios, na segunda que vem isso está indo ao ar”.
Mas não foi assim, e depois de dois anos eu levei um pé na bunda (risos).
Mas aí eu fiquei por lá, e só aí eu consegui fazer contato com eles, só depois.
E aí teve um dia em que pela primeira vez um velho, chamado Pipute, e o grupo
familiar dele queriam ir conhecer Altamira. Eles chegaram a levantar facão,
ameaçar as pessoas: “Eu quero conhecer a tua aldeia, e se você não levar a
gente lá...”, eles iam acabar indo embora pela Transamazônica, peladões. E aí
você já imagina, não pode, a Funai tem que cuidar... Isso foi depois de algum
tempo, quando já tinham conseguido vacinar todos eles e parou de morrer gente,
porque o primeiro contato... Mas, enfim, todos foram vestidos e levados para
Altamira. Eu fui acompanhando e documentando todo esse processo. E teve um dia,
não sei se você conhece Altamira, mas no Alto, onde tem a curva grande do
Xingú, tem o morro, tem o quartel do batalhão e no topo do morro você vê a
curva do rio e a cidade de Altamira lá embaixo, tem um cruzeiro e é o único
morro da cidade – e estava esse velho índio, que eu tinha visto pelado com seus
brincos, seu pau amarrado, suas pinturas em pretos de jenipapo nobre, ele está
desbotado, com olhos de quem está estranhando o mundo, de boné, roupa... E ele
olhava assim, meio catatônico... Nessa hora, foi como se tivesse terminado para
mim o meu ciclo indígena. E de fato depois do Os Arara eu só fiz coisas
com eles a pedido dos índios. O Serras da Desordem foi o primeiro
trabalho desde então que eu fiz por interesse próprio, mas esse eu já faço a
minha leitura, a visão de que nem mesmo a história dele lhe pertence mais, já
faz parte de uma narrativa.
E no Conversas no Maranhão você fez diferente disso.
Sim, no Conversas no
Maranhão eu fiz isso, antes de fazer Os Arara, o Conversas é
de 1977, é anterior ao Os Arara. E nesse a idéia era mesmo a de me
colocar a serviço.
A intenção era registrar
os discursos deles, então?
É, a idéia era usar aquele
instrumento de registro para pegar os discursos deles e levar para outro lugar.
Essa foi a explicação que a gente deu para eles entenderem o que a gente foi
fazer lá. Porque é essa a primeira pergunta: “O que você veio fazer aqui?”.
Depois querem saber mais: “O que é isso aí? Para quê que serve?”. Isso
não é só o índio não, no Conversas no Maranhão tem um velho matador que
aponta para a câmera e pergunta: “O que é isso aí? É de filmar?”. Ele
faz a pergunta porque entende que o aparelho está registrando, mas nem o
caboclão velho, que já andou bastante pelo mundo, nem ele sabia como funciona
essa história, como é que funciona o processo de registro da imagem. Então, me
parece que o Carapiru não sabe o que a história dele representou. Eu tenho uma
preocupação comigo mesmo sobre como preparar a exibição do filme na aldeia,
porque ainda não foi exibido lá. Eu tenho a intenção de chegar antes, conversar
com eles, fazer exatamente a mesma coisa de aproximação, num processo que
talvez leve tempo, assim como levou tempo o processo para conhecê-los, para ter
a confiança deles. Tem que tratar o filme como se fosse uma pessoa a ser
apresentada, explicar o que é, como é visto, o por quê... Mas eu desconheço o
que para eles pode significar as imagens em seqüência e que sentido se constrói
na leitura que eles vão fazer do filme. Porque eu não fiz o filme para os
índios, fiz o filme para a gente. Mas isso é engraçado, eu vou ir na escola de
Antropologia e Ciências Sociais da USP na semana que vem, para fazer uma
projeção lá, acho que vai ser interessante.
Me parece que o filme tem uma perspectiva que até hoje é
uma questão para os antropólogos, que é o filme assumir o relato como uma
narração. Não se trata da realidade do Carapiru, mas de uma recriação, uma
encenação, com a participação dele próprio, mas assumindo que é um relato seu.
É uma intervenção, que obviamente tem como ponto de
partida uma realidade dele, mas eu interpreto o que conheci e entendi, com um
outro senso crítico. O Carapiru mora lá e vive com as pessoas, ele não tem o
senso crítico que o filme coloca através das imagens para diferenciar o que é o
começo da narração e o que é a conclusão. Eu não sei se aquelas imagens do
Brasil fazem algum sentido para ele. O que ele sabe do que é aquilo? Ele com
certeza não vai identificar nem metade das referências visuais que vão
aparecendo.
São imagens que dizem respeito diretamente à nossa
sociedade, a todo mundo que tirou carteira de identidade no Brasil... Para nós,
a história dele acaba nos trazendo a idéia de que é alguém que estava aqui
antes de nós, já que os índios estavam aqui antes da nossa civilização trazida
pelos portugueses. Parece ser um brasileiro que é mais brasileiro que nós,
porque os índios já estavam aqui antes, então ele é um brasileiro que não fala
a língua dos donos do pedaço, é marginalizado por ter chegado antes, então o
filme tem esse aspecto de revisão da construção da nossa cultura... Mas você
dizia que terminou o trabalho com os
Arara em 82?
Isso, em 82.
E a história do Carapiru
veio à tona nessa época, não?
Não, ela veio à tona em 88.
Em 77 e que houve o massacre, e foi o período em que eu estava no Maranhão,
pertinho dali. Talvez o Carapiru tenha passado bem perto de onde eu estava
naquela época, veja só...
E então nesses anos você ficou afastado dos trabalhos com
os índios, até saber da história dele?
Bem, eu fiz algumas coisas
nesse meio-tempo, fui até os Kraô, depois fiz um trabalho com os Guaranis na
Fronteira Seca, que fica embaixo do Paraguai... Mas nessa época eu escrevi
outros projetos, fiz outras histórias. Eu tenho outros roteiros, como um que se
chamava O Anel De Fumaça, outro tinha um nome que eu nem lembro... Mas
eram roteiros de histórias indígenas, histórias que eu ouvi, mas trabalhadas
conforme o mito que a história conta, ou seja, a estrutura da história seguia
um pouco a lógica do próprio mito. Então tinha dois sonhos, dois homens que
tinham cada um o seu sonho, e aí as histórias dos sonhos se cruzam, um
interferindo na realidade do outro...Eram umas tentativas por aí. Ou então
tinha uma tentativa de amarrar um sentido geral: quatro velhos de quatro
grandes nações indígenas, cada um de um lugar do mundo, um daqui, outro da
Índia, outro da América do Norte, todos eles numa viagem em que o acaso faz com
que eles se encontrem, e na verdade só eles sabem o porquê deste encontro e que
devem ficar juntos para transmitir um conhecimento que vai ser maior do que
eles teriam se não estivessem juntos, isso era um outro roteiro...
Mas nesses casos sempre havia a vontade de narrar
histórias com personagens índios...
É, no fundo esse último
roteiro tinha muito a ver com a história da América Latina, essa história que é
apagada da Grande História ocidental, essa Grécia ou Egito que não participa
com o mesmo peso da história ocidental, que não tem arqueólogos para tentar
recuperar...
Foram dizimados e a memória que sobrou é quase nenhuma...
De qual?
Das nações indígenas. A
memória foi apagada.
Ah, é. Mas a
partir de 1500 usaram armas e vírus que extinguiram nações inteiras.
No México há museus grandes.
No Brasil não se tem
vestígios de crescimento em grupos maiores. Tem coisas incríveis, a gente acha
coisas incríveis nesse meio. Uma vez, subindo um afluente do Xingu, ficamos dez
dias viajando pelo rio bem na época da seca, então a gente ia pelo canal do rio
e tudo que costuma ser coberto pela água é uma mata baixa, mas é uma mata. E os
caras que conhecem os canais levam a gente para lá: “Quer Conhecer A Pedra
Do Ó?”. Fomos lá, pegamos uma canoa e chegamos num lugar, no meio de uma
mata baixa e tinha umas lajes de pedra bem grandes, como se fosse menir mesmo,
que estavam tombadas e dava para entrar embaixo. E aí, quando você entra
debaixo da pedra, você vê uma porção de desenhos, umas figuras, um grande “O”.
Caceta, quem desenhou isso? E por quê? Eu fiquei imaginando que aquilo devia
estar em pé originalmente, e numa época em que o Rio estivesse cheio devia ser
visível de longe, como uma espécie de marco marítimo. Quem navegava por lá, que
diabo era isso? E os estudiosos dizem que os desenhos podem ter dois mil anos,
três mil anos, enfim... Tem coisas que aconteceram e a gente não sabe. A gente ainda tem esse desconhecido
muito próximo. E o índio nos permite ter mentalmente a existência desse
desconhecido. E ainda bem, porque no dia que acabar...
E no Brasil a gente ainda convive com o fato de que ainda
há tribos de índios que podem ter seu espaço respeitado, porque o crescimento
do país destruiu muito, mas ainda não destruiu tudo. Nos EUA não sobrou nada.
Sim, aqui esse avanço ainda
está acontecendo, é agora... Lá esse avanço já aconteceu com as carroças, aqui
ainda está acontecendo, é feito de aviãozinho, helicóptero, trator... Nosso
oeste é desse jeito, não foi mecanizado com carroças de quatro cavalos como lá.
Lá o avanço foi com o trem de ferro,com os trilhos. Aqui já foi de avião e o
trilho vem depois.
E como você chegou até o
Carapiru?
Bem, isso acontece em 1993. O
Sidnei tinha em mente a idéia de fazer um livro com as histórias que ele
conhecia e as que ele tinha vivido, histórias pessoais, dos estados d’alma
dele. E algumas vezes a gente sentou desse jeito, com um gravadorzinho, num
pátio em Brasília, sempre que eu ia lá. Aí ele ficava contando as histórias e
eu ia transcrevendo, dava uma consertada na narrativa, mas com a intenção de
ele fazer um livro. Isso não chegou até o fim porque em dado momento ele contou
a história do Carapiru para mim. E foi num
momento... Bem, aí já vou falar de um lado que é interpretação, que explica a
coisa de um lado psico-qualquer-coisa... Mas porque na verdade nesse momento eu
estava longe da minha família, estava me separando da minha mulher e sem ver
meus filhos. Enfim, era um momento complicado, uma separação dolorida, uma
daquelas coisas em que a gente sai de um mundo. É claro que hoje eu sei que
está tudo aí, são pessoas que eu vejo sempre, amo e tudo mais. Mas naquele
momento a ruptura aconteceu sem saber o
que vinha depois. E a história do Carapiru era a de uma ruptura que aconteceu
sem saber o que vinha depois, mas que naquela altura a gente já sabia o que
tinha vindo depois – que dez anos depois ele reencontrou um filho. Perdeu a
família, mas reencontrou um filho, então tinha essa dimensão de perda – que tem
a ver com o índio, com esse Outro isolado, esse homem só, que não tem a mão na
roda do mundo e que no Bang Bang é um pouco o personagem do Pereio
naquela estrutura. E essa história me pega, porque ela tem esse lado da perda e
ao mesmo tempo da esperança de algo melhor no futuro. Então foram essas duas
coisas: primeiro, a questão do índio isolado, uma série de coisas que me
levaram a olhá-lo como uma pessoa interessante; e o outro lado porque eu
identifiquei um pouquinho essa pessoa aqui dentro de mim, eu conhecia um pouco
do sentimento que me parecia que esse homem podia ter. Então a minha pretensão
foi nesse sentido – pretensão, ilusão, seja o que for. Aí eu comecei a levantar
tudo que eu pude achar em jornais dos vários estados do Brasil, desde notinhas
em jornais universitários até as notícias nos grandes centros, fosse em Belém,
Brasília, São Luiz, São Paulo, tudo do período... E tudo o que aconteceu com os
Guajás nesse período eu também tentei mapear, na região inteira, os vários
processos de invasão, de ocupação, projetos do Incra, projetos de demarcação,
todas as interferências na área. Eu cheguei a ter os mapas, com os nomes das
fazendas e das pessoas, fui conhecendo a situação a ponto de, quando ia encontrar
uma pessoa, eventualmente eu sabia citar referências bem próximas... E isso foi
muito bom, muito bom. A partir daí fui descobrindo gente que tinha escrito a
história, soube de um jornalista de São Luiz que tinha feito um livrinho que
ele mesmo bancou e publicou, onde contava detalhes de toda a história dos Guajá
e do Carapiru. E aí eu comecei a conhecer os lugares onde ele deveria ter
estado, os nomes das pessoas que o ajudaram, através dos jornais, e eu montei
com essas informações uma cronologia de eventos da vida do Carapiru. Aí eu fui
atrás dessas história, para escrever fazendo esse percurso. Isso era em 1999 ou
2000. E durante todo esse tempo eu tinha outros projetos, como o do Agora Nunca
Mais, que foram dez anos de tentativa através da Lei do Audiovisual e não consegui um tostão, também era um roteirão do
tipo livrão bem grande e também era a história de um pai e um filho. Engraçado,
no mesmo período... Mas tinha outro roteiro, Debaixo da Árvore, também é desse
período e não conseguiu um puto, foi na época dos últimos desmandos da
Embrafilme, quando o Carlos Augusto Calil estava lá dentro... Aí eu mergulhei
no projeto do Serras, abriu um concurso de bolsas da Vitae que tinha a
possibilidade de pedir dinheiro para pesquisa para roteiro cinematográfico –
coincidentemente o Calil fazia parte, mas na verdade quem julgou foi o Ismail
Xavier, o Calil era só o presidente da Fundação. Aí o Ismail já entrou em
contato com o projeto - acho que ele tem
todas as versões do roteiro, não sei se ele tem a última, mas sei que ele
conheceu a história lá atrás, quando o projeto era uma ficção total, antes de
virar essa mistura. Bem, aí saiu a bolsa e com esse dinheiro eu viajei e fiz
o percurso do Carapiru, já fazendo
gravações em vídeo. No filme tem imagens feitas nessa época.
Quais, por exemplo?
O plano final do Carapiru,
quando ele está sentado e depois mostra o céu, foi a primeira coisa que eu
filmei. O primeiro depoimento foi debaixo do mato... Não, na verdade esse foi o
segundo, foi depois. Eu fui naquele lugar porque era mais silencioso e porque
na aldeia todo mundo ficava querendo
ouvir a gravação. Mas o Luiz Ares mostrando a foto, sentado na sala da casa
dele, com a mulher do lado, foi dessa primeira fase.
É curioso porque é a única
hora em que o Carapiru parece contar algo para a câmera. A gente não entende,
mas ele dá o seu depoimento ali.
O resto das imagens da Bahia já não é dessa época, é de
2002. Foi o tempo que levou – eu voltei, aí me dei conta de que precisava
retraduzir tudo de novo e voltei mais uma vez. Nessa terceira vez o filme já
tinha deixado de ser ficção a valer, com atores e cenografia, e também já tinha
deixado de ser um documentário de estilo jornalístico...
Você também chegou a
trabalhar nesse sentido, de fazer um documentário mais clássico?
Sim, ia virar uma narrativa em tom documentário, como a
jornalística mesmo. Mas isso tudo foi insatisfatório, e eu tentei, para me
liberar disso, fazer uma versão urbana da história do Carapiru, eventualmente
com o Pereio como ator - a história de um cara que fica perdido durante dez
anos numa cidade, depois encontra um filho - numa tentativa de narrar a mesma
história dentro da nossa cultura.
E misturaria?
É, e eventualmente misturaria
as histórias. Isso acontece nessa transformação, até chegar nesse roteiro em
que tudo isso está fora, o Pereio já está fora e o Carapiru está lá, depois de
uma pergunta minha. Um belo dia eu resolvi perguntar para o Sidnei e para o
Carapiru se eles topavam, e o Carapiru foi o primeiro – aí ele me disse
literalmente assim: “Andrea, você me traz de volta depois?”. Eu falei
que sim, claro, e aí ele disse: “Então eu topo”.
Mas ele queria ter certeza
de que ia voltar!
Sim, porque ele queria rever
as pessoas, e também iria voltar a voar de avião... rever o Sidnei, que ele
falava “Sidinêi”, ficava feliz em poder voltar para comer na casa do
“Sidinêi”... Então foi uma combinação, ele gostou da idéia. A família topou, a
aldeia topou, combinou-se através de um outro sertanista o quanto a gente
pagaria para a aldeia, para o grupo, definimos o que podia ter a ajuda da Funai
e etcétera. E o Sidnei foi a pessoa que abriu as portas para eu conseguir
filmar – acelerou os processos como pôde...
Fez parte desde o início, então...
Sim, ele tentou, durante um
período... Mas esse é o Sidnei, tem que entender o personagem dele, e isso ele
sabe e confirma – porque existe essa imagem que se faz, do percurso do herói,
que lhe é um pouco atribuída, mas que ele vive muito, como uma realidade
mitológica mesmo.
Ele acredita no próprio papel.
Acredita, e se não
acreditasse não faria o que faz. Porque eu já vi ele fazer coisas que um homem
normal não faria de jeito nenhum (risos)... E o Sidnei no início, quando
ele contava a história para mim, ele falava muito do personagem dele no filme
como se fosse um herói – ele conquistava a professora, enfim... Mas, um pouco
conscientemente, a gente foi transformando isso e no fim ele entendeu o
caminho: “Poxa, que filme que você conseguiu fazer daquela história!”.
Ele esperava outra coisa?
É, acho que ele esperava ter
alguém conhecido para interpretar o papel dele, um ator e etc... Mas ele faz
muito bem e eu fico muito grato, porque ele faz coisas que, se ele não
confiasse na minha maneira de tratar o personagem dele no filme e na minha
maneira de perceber a história, ele correria um risco de ficar num papel
ridículo. Porque ele se mostra em momentos muito pessoais delicados, como
quando tem que mostrar o banheiro, a privada. E há uma afetividade e uma
intimidade da parte dele que vai além dessa relação entre a autoridade da Funai
e o índio. E ele tem uma postura clara sobre o assunto, tanto que foi mandado
embora da Funai recentemente... Então ele foi um apoio muito grande para o
filme – e vem aqui semana que vem, vai ficar hospedado aqui em casa. A gente
ainda se encontra, esporadicamente mas sempre se encontra.
E o Carapiru?
O Carapiru até hoje não
encontrei depois que terminamos de filmar. Mas se eu tiver dez mil reais –
preciso de dez mil, já fiz a conta – vou montar um esqueminha de projeção para
levar para dentro da mata. Para isso, só preciso de uns dez paus, para viajarem
duas pessoas, para ficar viajando por uma semana. Leva mais ou menos uma semana
ir para São Luiz, pegar o trem, saltar lá, armar a projeção, depois voltar...
É um trabalho e tanto.
É, vai precisar de gente de
lá para ajudar a carregar as coisas,
atravessar o rio... Não pode ser nos próximos meses, porque começa a chover.
Tem a época da seca e a da chuva. Mas, enfim, a história do Carapiru foi assim,
e em 2001 abriu concurso do B.O. [Baixo
Orçamento], que eu não tinha entrado em anos anteriores, porque o filme era
mais caro. Mas aí eu resolvi que ia ser B.O. mesmo, cortei os custos e pintou a
grana. O próprio José Álvaro Moisés puxou a Petrobras com o dinheiro a mais
para os projetos, porque ele ia sair e não queria deixar os projetos
incompletos. Para o dinheiro ser
liberado era preciso já ter 60% dos recursos, que era R$ 600mil, mas nenhum dos
projetos tinha isso, nenhum deles. Os projetos só tinham os R$ 400mil do prêmio
do B.O. E o Moisés ia sair, o governo estava terminando, e para garantir que os
filmes iam acontecer ele trouxe a Petrobras, com uma verba que aí sim permitiu
a liberação dos recursos. Então esse momento político, de troca de governo,
ajudou os projetos a irem adiante. Já a escolha do projeto dentro do concurso,
como foi que ele foi escolhido, aí eu prefiro crer que ele foi escolhido por
ter qualidades. Enfim, essa coisa da origem do filme é por aí, vem por uma
questão pessoal, que pega um lado emocional meu e me liga a uma história que
aconteceu, com personagens que existiam, uma história que se tornou pública.
E como foi a sua relação com eles, ao mesmo tempo como
personagens reais e do seu roteiro? Eles participaram?
Bem, a história é do
Carapiru, é só dele.
E do Sidnei também, não?
Sim, claro. Mas discussão de
roteiro com o Carapiru? Não, nunca teve. Na hora era só instrução ao ator, ele
não tinha a menos idéia de que tinha roteiro, de o que era um roteiro... Ele me
via andando com umas coisas na mão...
E nas cenas ele não
tentava mudar nada, não dizia que aconteceu de outro jeito?
Não, não.
E o Sidnei?
Olha, os índios se divertiam
muito com o que a gente planejava. Aquelas cenas do tiroteio que tem no início,
uma semana antes já eles estavam dando risada do que iam fazer, virou uma
história na aldeia: “Olha, no dia tal o Andrea vai matar a gente!”
(risos).
Se divertiam porque iam fingir ser mortos.
Se divertiam, davam risada e
iam embora, “vamos fazer”. Mas tinha todo um momento preparativo antes
de filmar, para definir o que eles iam fazer, uma discussão para saber como iam
se comportar. Tinha sempre o Geí ajudando na tradução, o meu assistente
indígena, e tinha a Dona Sueli, que também falava a língua deles, então a gente
ia aos poucos. Teve uma progressão até chegar naquilo – aquelas cenas do
tiroteio foram das últimas coisas que eu filmei. Está logo no início, mas foi
uma das últimas coisas: para chegar naquilo demorou bastante.
E vem logo em seguida àquela longa introdução do
cotidiano da família dele.
É, e essa primeira parte do
filme foi justamente a última a ser filmada. Toda essa primeira parte foi a
última coisa que a gente filmou.
Mas, voltando, então nenhum deles entrou na questão da
história que você estava contando, mesmo sabendo que algumas passagens estavam
sendo simplificadas, que não era possível fazer um filme que contasse cada
pequeno detalhe.
Não, nem ele nem o Sidnei, os
dois confiaram inteiramente. Isso é normal, tem dezenas de coisas que não estão
no filme e poderiam ser narradas. Mas a gente tem que escolher, não tem como
pôr tudo. Algumas cenas tentam ser sintéticas, quando acontecem ao mesmo tempo
duas ou três coisas que aconteceram de verdade em momentos diferentes, até em
lugares separados. Existem coisas que aconteceram e não têm como estar lá,
porque se prolongariam narrativamente demais, ficaria explicativo. O que
importava era ficar na intenção, deixar o espectador querendo saber da história
– não precisava dos detalhes em si. Isso, essas coisas que aconteceram no
percurso dele, poderia ser narrado em depoimentos, então se houver um DVD com
extras, quem sabe? Tenho algumas idéias – se um dia der, vamos ver. E tinha
outras coisas que eram gravadas pelo caminho porque apareceram e eu nunca usei,
porque não era para o filme, mas coisa boa... Teve um dia em que a gente fez
uma coisa num plano só. Eu peguei um velho doido, que o Milo, que trabalhava na
produção, me chamou e mostrou: “Andrea, vem cá, pega a câmera e vamos gravar
um velho louco que não pára de falar, toca flauta e é dono de um depósito de
ferro-velho”. Fui lá conhecer a figura – o velho começou a falar e tocar
flauta, doido a valer, mas era aquele tipo de louco que tem uma coerência. Mas
aquilo era um trabalho pronto, e por quê? Porque aquele cara é um personagem
inteiro. E o Carapiru também é assim. Então, com o roteiro já pronto, eu sentei
com o Wellington e com o Sidnei umas duas ou três vezes, repassando o roteiro
inteiro. Mas isso antes de ele virar o filme que é hoje, porque quando a gente
vai filmar o roteiro muda - teve o acidente do Carapiru, que interrompeu as
filmagens, retomando depois de seis meses... Então essa fase pré-filmagem foi
bastante trabalhada mesmo, o Wellington veio aqui, ficou aqui uma semana e a
gente ficava sentado todo dia na mesa
discutindo cena a cena, discutindo o que era verossímil, o que era fato e o que
não era, como interpretar as coisas... Então teve um trabalho sim.
E então o Carapiru apenas deu o seu testemunho nessa
fase, contou a própria vida a vocês e não se preocupou mais com o jeito que
isso ia ser contado?
É, não participou dessa
construção, só contou as coisas que aconteceram com ele.
Mesmo sendo ao mesmo tempo a fonte e o ator do enredo.
É, foi a fonte e o ator. E
concordando em fazer as coisas pedidas a ele, mesmo contra a vontade. Porque
teve coisas que... é complicado explicar, mas teve coisas que eu consegui e
coisas que eu não consegui. Por exemplo: para fazer uma criança ser filmada
como se estivesse morta, a gente precisava do filho de alguém, e nenhuma mãe
permitiu. Então tem uma mãozinha, não sei se você se lembra, que aparece num
momento e que foi gerada digitalmente, foi tirada de uma boneca e enfiada na
imagem. Então teve coisas que eu não consegui. Já com o Carapiru... Bem, eu
precisava aproveitar algumas situações onde as coisas pudessem ficar visíveis.
Então, por exemplo, tem aquele momento do isolamento dele, quando a gente
percebe que ele ficou meio isolado na tribo, comendo separado, era um gancho
que a gente precisava. Então a gente filmou quando aquilo estava acontecendo
realmente, e não porque ele quisesse se
separar – essa é a história que eu estou querendo contar – e sim porque ele
estava com um diagnóstico de tuberculose. Então ele não podia misturar o prato
dele com o dos outros, e por isso a Sueli cozinhava para ele no posto, e ele
tinha que ir comer no posto indígena... Mas isso servia de gancho visual para a
história que eu queria narrar. Poxa, se eu já tenho ele isolado, então eu vou
documentar isso! “Documentar” entre aspas, claro...
E agora, com o filme pronto, ele está sendo bastante bem
recebido, ganhou o prêmio em Gramado... Mas os filmes brasileiros ainda ficam
bastante restritos, a maior parte deles fica restrita a pequenos grupos –
podendo mexer profundamente com algumas pessoas.
Exato, é essa a intenção. O
que vale, no caso, não é uma questão numérica, mas o quanto o filme consegue
intervir na realidade, mexer com as pessoas.
E nem faz sentido que os filmes tenham sempre a
expectativa de entrar numa dimensão maior de mídia.
Claro, não me interessa essa
dimensão de mídia. Mas quando eu falo em pessoas, é claro que eu estou
falando também de mim, porque é um
caminho de auto-conhecimento meu também, é um percurso de experiência pessoal
também. O filme não é apenas a experiência que vai provocar em outras pessoas –
é claro que existe a consciência disso e existe a intenção de falar de um
assunto, de intervir na realidade, mexer com as coisas. Ou no mínimo levantar
questões, o que é muito mais interessante do que ficar achando que tem as
soluções – levantar questões, mostrá-las vivas para sair da letargia, da
aceitação constante.
E quando a gente vê o que se diz e o que se cobra dos
filmes hoje em dia, a gente nota que essas preocupações não costumam ficar em primeiro plano.
Mas acho que a coisa vai
espontaneamente acontecendo. Espontaneamente talvez não seja a palavra
adequada, mas talvez a gente não tenha ainda a palavra - porque essa complexidade,
essa multiplicidade de pontos de vista, esse paradigma sendo alterado,
permitindo que você tenha hoje muitas perspectivas de uma realidade que começa
a ser “globalizada”, essas perspectivas criam subliminarmente a consciência de
que a gente não pode mais tomar partido de um jeito absoluto, porque sempre tem
algo a mais. Se você entende que não é mais uma foto fixa e sim um movimento,
você vai começar a olhar para o movimento, e não para a imagem fixa. E eu acho
que assim vai haver uma aceitação maior e uma necessidade maior desses filmes
que não estão agora em primeiro plano. Então, se existe uma cobrança de alguns
e uma frustração de outros, isso me lembra a pintura feita por alguns no século
retrasado e no século passado, quando movimentos inteiros foram criticados no
momento em que as pessoas estavam vivas e, um século depois, eles se revelam
mais fortes, como inovadores, antecipadores, visionários. Eu acho que o cinema
é muito novo, o cinema tem cem anos – mesmo que a fotografia seja de 1850...
A narração de enredos no cinema tem cerca de cem anos...
E se a gente pensar nessa
amplitude maior, tem cinqüenta anos, porque a televisão só tem cinqüenta anos.
Se a gente pensar nessa multiplicação mais recente, que é maior ainda, não tem
nem vinte e cinco anos – faz pouco tempo que aumentou o número de pessoas que
têm computador.
E o cinema que se fazia antes desses fenômenos era outro,
né? O cinema mudou com tudo isso.
Se você olhar o movimento, a
transformação faz parte disso. Se você ficar muito tempo no sol, vai começar a
usar sombrinha, e a pele fica morena... Enfim, eu estou tentando encontrar
palavras para falar do olhar que mantém a coisa em movimento, sem parecer fixa
em determinados pontos do tempo.
E como foi a sua relação com os filmes e a cinefilia ao
longo dos anos, entre esses períodos de afastamento mais longo?
Já tive épocas de ver tudo e
já fiquei períodos sem querer ver nada! Tinha dias em que ia ver tudo que era
possível...
Quando era mais novo?
É, depende do momento...
Na juventude, quando
começou a fazer filmes?
É, via muito filme, vivia
vendo filmes.
Seu primeiro curta foi feito junto do Rogério Sganzerla e
do Otoniel Serra. Eu imagino que vocês deviam discutir muito sobre os filmes em
geral, né?
A gente discutia mais era
como fazer os filmes, mais do que sobre a linguagem ou coisas assim. O Rogério
é que era o mais focado nas questões teóricas, e isso eu admirava muito.
Aprendi muito com o Rogério, com o Julio. O Rogério escrevia muito bem sobre
cinema e ele tinha, ainda bastante novo, um surpreendente distanciamento
crítico, com uma leitura inteligente sobre a cinematografia, então era um
aprendizado ler as coisas dele. Mas entre nós não havia muitas discussões
críticas sobre cinema. Claro, a gente falava, mas a gente discutia muito mais
os projetos que a gente tinha, como fazê-los, como iria filmar isto ou aquilo,
e íamos nos lugares para escolher locações de filmes que nunca saíram, coisas
assim...
Isso tem um pouco no curta dele, o Documentário, são os
caras falando de cinema, escolhendo que filmes iriam ver... Você falou no
distanciamento crítico, mas o Sganzerla também teve momentos de defender e
atacar filmes por conta de circunstâncias diversas, como aconteceu com os
filmes do grupo do Cinema Novo, que primeiro ele defendeu, depois atacou e, no
caso específico do Glauber Rocha, voltou a defender anos depois...
Mas o Rogério era muito
político, muito estratégico. O Rogério era uma pessoa muito, muito inteligente,
e com uma... não sei se a palavra é “matemática”, mas com uma visão
estratégica, de raciocínio com a visão do próprio personagem de si próprio no
mundo real. Isso ele tinha muito claro, ele entendia o papel que cumpria. No
fundo, o Rogério tem uma importância muito grande para mim, porque eu fazia o
primeiro ano da universidade quando a gente se conheceu e, enfim, filmava umas
coisinhas, fazia fotografia, era uma época em que eu pintava, fazia gravuras,
coisas com imagem mesmo. E eu me lembro que a gente ficava assistindo a esses
filmes de viagem que eu tinha feito, já muito ligados.
Eram filmes em Super-8?
Ainda não tinha Super-8 nessa
época, eram filmes em 8mm. O Super-8 veio depois, antes veio o 16mm, mas isso
também só mais tarde, quando pintou uma Bolex e a gente usou, uma Bolex de
corda.... Acho que foi meu pai que tinha comprado, ele gostava de fazer uns
filminhos. Eu tenho guardadas essas coisas e adoraria poder... salvar,
entendeu? Mas isso é um projeto que custa grana e quem vai...? Porque é muito
material que vai se perdendo. Esse material com os índios de que a gente
falava, isso tudo está se perdendo, porque é tudo vídeo!
E de lá pra cá mudou completamente o suporte...
É, mudou totalmente, e nunca
tinha sido reproduzido. Horas e horas, quer dizer, se a gente fala de
frustração do trabalho por conta da
memória... Mas o que importa em fazer o trabalho é a vida que ele tem na hora.
O retorno, no caso desse investimento de vida tão grande, era o quê? Algumas
pessoas em aldeias que ficavam maravilhadas em se ver naquilo – esse era o
público. Essa história de grande público, isso é coisa de grana, é uma outra
história, de manipulação. Os filmes nascem não para objetivos externos,
estratégicos ou coisa parecida – não tem como, eles são simplesmente caminhos
de conhecimento, de descoberta, de revelação, um processo vivo. Isso me lembra
um pouco o Rosselini – “profissão: ser humano”. O Rogério tinha um espírito
assim, ele dizia: “Eu cometo filmes”. Num sentido de estar intervindo mesmo...
Lembro de uma imagem que você usou numa outra entrevista,
sobre os filmes não serem as pedras do riacho, e sim os espaços entre elas.
É... A gente usa muitas
palavras e na verdade estamos sempre tentando falar do movimento.
Da velha questão de saber
se relacionar com o permanente e o transitório, de como é que a gente lida de
forma criativa com as transformações.
Mas não há como fechar em raciocínios exclusivistas entre
“o que fica” e “o que vai”. O que eu estava falando sobre o movimento é que o
processo acaba por ensinar que não dá mais para ficar falando assim, não é esse
o único ângulo possível, que há uma hora em que ambas as coisas existem sim, e
isso a física já provou.
É transitório e permanente
ao mesmo tempo...?
Sim, e isso é escolha sua no
momento. Mas do quê que a gente sabe, não é?... E é interessante como os
silêncios falam da inércia e do rastro da potência desse tipo de percepção,
porque eles se prolongam com a reflexão. Isso acontece em cinema, na narrativa,
não apenas em conversas pessoais. É quando se abrem janelas, pequenas que
sejam, onde a gente pode dar uma viajada. Eu acredito nesses espaços, em criar
esses espaços intencionalmente, que sejam isentos o mais possível de símbolos
que te conduzam demais. Pode ser um instante de vazio – mas você sabe que a
rede está lá embaixo. Bem, aí eu já estou começando a interpretar... Mas é uma
sensação assim.
Mas há uma diferença de posturas, não é? Num certo
momento você filmou os índios deixando eles usarem a câmera, e no Serras da
Desordem existe uma narrativa.
É, no Serras não tem essa,
não tem conversa, eu estou narrando um filme.
Assume o papel da narração de forma bem clara, e não
só por aparecer no fim.
É, a gente pode dizer que... Bem, a palavra “manipulação” é mais uma
dessas palavras não expressam um sentido correto, porque ainda está ligado às
mãos: manipular uma massa, manipular um corpo... Mas a consciência de que eles
todos representavam objetos da minha narrativa, isso eu tive, e é ficção por
isso. Mesmo os momentos mais documentais, momentos de observação. E isso tem a
ver com trabalhar em equipe e fazer as escolhas, tem a ver com as
características de cada pessoa mesmo. Lembro de momentos em que o Fernando
Coster filmava e eu orientava ele para fazer apenas uma determinada coisa e só
ela. Porque eu tinha que orientar para indicar o que a câmera tinha que olhar,
tinha que dirigir para o que eu estava querendo que ele olhasse. Quando é dada
essa indicação, aí o câmera já sabe o que você quer e como enquadrar a tua
intenção. Isso quando é um câmera bom,
que sabe ouvir, porque tem vezes em que você está com a pessoa do lado, você
fala de uma coisa e o cara está vendo uma outra história – na cabeça mesmo, ele
está narrando uma história diferente. E é sempre muito difícil entrar na
história do outro, mergulhar para poder acompanhar... O trabalho em equipe tem
muito isso.
E era complicado orientar
o Carapiru nesses sentidos?
Nada, rapaz...Com ele é
gratidão total. Ele é uma pessoa muito especial, afora tudo isso. Então mesmo
na pior das situações de maior dificuldade, elas nunca foram dificuldade,
sempre ficaram na palavra. Eu posso estar viajando ou ter pirado, mas se
realmente existe gente mais iluminada em termos de consciência, o Carapiru é
uma dessas pessoas, é um desses e está no Brasil - nós temos um Budão andando
por aí...
Você falou das orientações para a equipe, e acho
interessante que não tenha havido diferenças de sintonia com ele.
Sim, e ele aceitou os momentos mais difíceis. Uma vez eu
pedi para acordá-lo mais cedo, intencionalmente, para que ele tivesse um pouco
de mau-humor. Ele estava cansado, mas inteiro, porque sabia que eu ia chamá-lo.
Eu não pedi licença, tinha um sentido que eu queria criar, e era esse o sentido
da manipulação que eu falei, porque o resultado está na tela, e era o resultado
narrativo que nos interessava. Então acontece isso nessa hora: o Carapiru vem,
senta num canto, de bode, ele não quer saber da festa. Depois ele entra na
festa, mas era aquele momento isolado que era preciso para a narrativa –
narrativamente, a história conta que ele queria se isolar porque não se sentia
parte dali. Nesse sentido, Carapiru é Andrea, Carapiru é um alter ego da minha
leitura, como ser humano, das ameaças que existem no mundo. E botei aquele
aviãozão no fim porque é igual, tá na nossa cabeça, talvez mais do que na dele.
Aquele tipo de ameaça, mais na nossa do que na dele.
No filme, a imagem do trem chegando no início me parece
até mais agressiva do que o avião no final.
Bem, mas uma imagem de um
jatão carregado de bombas é um bocado agressiva. O Ismail fez uma interpretação
interessantíssima porque, desde o princípio, o filme narra em três blocos a
mesma coisa, ele se repete: são três famílias, três situações familiares, e são
três viagens... E desde o início vai sendo narrada a história do fogo, em que o
espectador está assistindo ela sem saber, vendo a criança cuidando do fogo, o
fogo sendo aceso, para ela só ser contada no final. E aparece o fogo no filme
fisicamente, tem as bombas... E o Ismail sugeriu que o jatão é a última
tecnologia do fogo, aquela coisa da turbina do jato mesmo. Aí foi mais longe do
que eu esperava!... Isso numa estória narrada no filme, a estorinha do fogo –
você apaga aquele fogo, que pode ter cem anos de preservação, e aí você apaga
uma história.
Mas o Carapiru é capaz de
fazer o fogo...
É, ele é capaz de fazer o
fogo. Mas na verdade ele sempre conserva o fogo, ele não deixa apagar. Não tem
por quê se dar ao trabalho de produzir o fogo de novo, se ele pode carregar.
E não domina a arma de
fogo...
Mas os índios usam, agora.
Lembra da cena dos macacos? Pois é, ela começa assim, com todos aqueles macacos
no chão e, de repente, vem um monte de tiros. E tem lá um índio com uma
espingardona na mão. Quer dizer, a arma já está lá, no final.
Nem tem como impedir...
E inclusive não há como
segurar. Você não tem que segurar nada, já está invadido, meu querido! Está
invadido, eu sou um invasor desse território e sou um invasor da alma do
Carapiru, da história dele. Só que a minha intenção é a melhor possível. Mas,
se eu olhar factualmente para as coisas, é assim que elas são: no fundo, é uma
apropriação. Com direitos ou não? Aí tem essa coisa, porque é uma história
real, mas tem roteiro registrado, tem um autor e essa porra toda. E é disso que
nós estamos falando...
Voltando ao assunto do cinema, a gente falava sobre a sua
relação com esse universo de cinefilia de modo geral. Você comentou que tinha
épocas em que via de tudo e outras em que não via nada...
Sim, circunstancialmente sim.
Quando fiquei meses no Pará eu não via filme nenhum, só botava na televisão, lá
em Altamira, as imagens que eu tinha gravado. Mas não havia nada, não tinha
cinema.
E nos últimos vinte anos,
houve momentos em que você acompanhou mais o que foi feito em cinema?
Sim, teve momentos. Agora, por exemplo – nessa semana
não, mas, percebendo que tinha um tempo com o filme pronto até lançar, um
momento meio vazio porque você não quer botar nenhum outro projeto para andar,
por conta disso eu aceitei alguns convites para fazer parte de júris, ler
roteiros... E vi, sei lá, cento e cinqüenta curtas-metragens, coisa que eu não
fazia há muito tempo. Li uns vinte roteiros... E eu achei interessante, achei
isso muito bom, é um momento em que eu posso fazer isso sem apego, com uma
percepção boa do que está rolando, do que está sendo feito. Agora, para ir ver,
só vou ver o que me interessa. A gente já tem informação suficiente para saber
o que é que está passando – quando é uma surpresa eu vou, quero ver e etcétera.
Mas os anos em que eu realmente fui muito ao cinema foram os anos que eu fiquei
fora do Brasil, os dois anos em que eu fiquei fora – lá era como se eu
conseguisse fazer isso como um padrão diário – e na época da juventude, das idas
à Cinemateca com o Rogério, quando era na Sete de Abril, e às aulas do Paulo
Emílio na USP, quando ele passava filmes. Mas essencialmente o meu aprendizado
de cinema era o que passava nas salas da Liberdade e da Cinemateca. Na
Cinemateca era diário – dois, três, quatro filmes por dia. Seria como, hoje,
você morar no Largo da Cinemateca, onde tem sessão todo dia, a tarde inteira e
a noite inteira. Se você começa a ficar lá dentro, acaba criando um padrão que
vira parte da sua vida, você passa a viver mergulhado naquilo.
É bom embarcar nesse
mundo.
Podendo, não é?
Claro, tem que ter
condições financeiras para isso.
É o mínimo possível, mas é
isso mesmo. Mais jovem, eu vivia nessa época na casa dos meus pais, ainda antes
da faculdade.
Esse procedimento de usar material documental em
narrativa ficcional tem uma tradição, dá para lembrar até do Welles no It’s All
True, mas sobretudo no final dos 80 e início dos 90 isso se torna uma
incidência constante em vários filmes. E o uso dos próprios Carandiru e Sidnei,
o uso da reportagem da Globo, isso tem uma antenação com esse espírito. Minha
curiosidade era saber como foi que isso se antenou, se é pensado ou se é algo
intuitivo, como nas sintonias intergalácticas que o Jairo Ferreira falava
É, não sei se... Bem, no
filme está tudo aí – o que eu tento é tirar um pouco a divisão e deixar isso
mais ambíguo. É o estado em que eu queria que ficasse indefinido: “Não sei
se é, será que é?... É? Não é?”. É isso, esse é o trajeto: é nesse espaço
de indefinição que o sentimento possível pode transitar, porque é onde a gente
fica um pouco menos ancorado a definições, à segurança das coisas. Agora, se a
gente pegar como exemplo a televisão, outro dia eu estava passeando pelos
canais, eu e a Cristina [Amaral], e, naquele vai-e-vem dos canais, em
determinado momento eu fiquei confuso, achando que estava vendo coisas
repetidas em canais diferentes. Aí a gente foi, voltou e eu entendi: estava
passando um filme sobre a Guerra do Iraque no canal da Warner e, ao mesmo
tempo, uma reportagem sobre a Guerra do Iraque na CNN.
Um filme e uma reportagem
sobre o mesmo assunto...
E a narrativa era igual. Eu
fiquei, por um instante, na dúvida entre qual era a ficção e qual não era. E a
Cristina também percebeu a semelhança: “É verdade, a gente está olhando a mesma
história nos dois canais”. Mas a gente insistiu no vai-e-vem e aí dava para ver
o discurso jornalístico num e o discurso moralista no outro. Nesse discurso
moralista, o soldado americano ficava indignado com a tortura e as injustiças,
se perguntando por quê a ONU não agia... E, ao mesmo tempo, o torturador está
com a mesma roupa que ele, norte-americana, mas quando ele abre a boca a gente
vê que é um latino-americano, que está lá arrebentando o iraquiano, torturando
o iraquiano para obter as informações. Então, a ideologia se revela claramente
na narrativa ficcional, e a outra versão, jornalística, te traz a narrativa de
condicionamento, digamos assim. Só que a imagem é a mesma. É a mesma história
que eu acho que acontece com a imagem digital, porque assim você pode criar
imagens e outras realidades, pode fazer aparecer uma pessoa - não por meio de
trucagem ou superposição, mas no próprio relevo. Então a partir daí a
credibilidade da imagem é nula, já acabou esse negócio de dizer que a imagem
corresponde à realidade. A imagem é uma realidade que a gente quiser construir,
uma outra coisa, uma representação. E você sabe que mesmo a forma que só
reproduz já é uma representação do real, porque depende do olhar, de todos os
sentidos que permitem construir uma imagem. Enfim, a gente pode divagar... Se a
gente seguir falando, acaba sempre pensando nisso: “o que eu sei, afinal?”...
Mas é nessas divagações que as idéias vão se
transmitindo.
É, claro. De alguma maneira,
é falar de algo que eu estou tentando olhar, perceber.
Um dos filmes a que o Serras
da Desordem faz referência é o Iracema,
uma Transa Amazônica.
É, eu uso a cena do Pereio
com a garota.
É um filme aparentado?
É um antecessor, ou um
antecedente, digamos assim. É um antecedente na passagem por esse tipo de
situação que permite gerar um trânsito do olhar, que transforma o documental em
ficcional e revela o que existe de ficcional no documental. Porque aquilo está
lá e você pode ajudar a construir a situação – eu fiz isso e o filme do
Bodanzki fez isso. O Pereio é uma interferência ao vivo como ator dentro da
história – mas, se você não souber quem é o Pereio, o filme cumpre mesmo assim
a sua função. E não é só uma citação cinematográfica que eu quis pôr não. Por
uma sintonia de imagem e de situação, que é esse percurso na realidade
brasileira, tem uma cena do filmes deles no meio da seqüência de madeiras sendo
derrubadas – tanto que é a única imagem de um filme de ficção que entre no meio
de imagens de documentário, todo o resto é composto por imagens de documentação
de arquivo. E ela passa como parte da narrativa – é ela que dá, para quem vê
cinema e conhece, aquela sensação de que tudo é uma ficção, em meio a um monte
de imagens jornalísticas montadas para ter um certo significado de tempo e de
transformação, de violência...
Mas também é um filme
muito sintonizado com o tempo, já que essa relação entre real e ficcional é
algo cada vez mais constante. Eu me lembrei bastante do Close-Up, do
Kiarostami. O filme me parece ligado a um caminho para criar novas formas de
dramaturgia...
Certo... Bem, isso que você
falou sobre tempo é com relação ao nosso período histórico, não é? Com certeza
o filme tem uma maneira de falar, mas isso não é uma busca consciente de, para
usar as suas palavras, criar uma nova dramaturgia. Talvez ele seja o espelho do
que é a reflexão sobre essa busca por uma outra forma de conhecer as coisas.
Mas, se existe uma forma, eu tenho certeza de que ela vem de um movimento
interior. Existem cenas que eu sei que vêm totalmente do meu imaginário. A cena
da matança é do tipo que é criado com olho fechado, só na imaginação. Essas
imagens vêm, não sei por que raio de coisa que role, mas elas vêm da imaginação
– não vou dizer que são sonhadas, porque nunca pensei em imagens de sonho como
algo que pudesse contribuir, mas foram como se sonhadas conscientemente,
durante o dia. Por exemplo, a cena do aparecimento dos matadores, no meio da
mata, cheios de folhas – você vê a mata e ela fica viva num instante... No dia
da filmagem eu cheguei ali e fiquei duas horas parado, sentado num canto,
olhando as coisas para visualizar os acontecimentos, antes mesmo de montar o
acampamento para filmar.. E teve um instante assim mesmo, quando eu estava
olhando para aquela mata fechada, ela ficou viva e eu pensei: ‘Ah, eles vão
sair armados dali de dentro e vêem na direção da câmera”. Depois eu uso umas
imagens da memória do filho e imagens reais. Mas a cena é imaginada nessa soma
que resulta de estar na locação, vivendo no espaço do filme. Não é uma cena de
roteiro, apesar do roteiro descrever um ataque - ela aparece nesse momento.
Para isso, é preciso olhar internamente para a situação narrativa, digamos. E
lá ela se compõe, os elementos se materializam – quando você escolhe a locação,
ela se apresenta e bota os personagens em movimento.
Já o depoimento do Sidnei parece ser documental mesmo.
O depoimento do Sidnei é
anterior à filmagem, e o Sidnei foi uma das primeiras coisas a serem filmadas.
Agora que você falou, lembro que foi a primeira coisa a ser filmada, o
depoimento do Sidnei. Que foi feito a caminho do Maranhão, quando eu estava
subindo de carro, eu parei em Brasília e tudo foi gravado no terraço da casa do
André Luiz de Oliveira. Nós sentamos lá uma manhã e gravamos várias coisas –
passamos o dia lá, com ele contando histórias e eu questionando detalhes.
Ali é a verdade dele...
E foi já tendo essa história
que nós fomos ao Maranhão, que foi quando eu conheci o Carapiru. Foi gravado
antes de eu conhecer o Carapiru, e está no filme.
É, tem toda aquela parte em off, no momento em que o
Carapiru vai para a casa dele, quando o Sidnei conta como a coisa foi - ali tem
um estatuto de verdade própria do Sidnei, intervindo na narrativa.
Sim, e ele é personagem da
história. Quando eu gravei, eu não tinha nem idéia do formato que o filme viria
a ter e nem imaginava que iria usar aquilo. Em certo momento aquilo esteve
excluído – quando nós começamos a montar o filme, nada disso iria entrar.
A criação é fluida, vai acontecendo... Quando se fala em
narrativa e manipulação, parece que tudo é arquitetado previamente, mas não é
assim que acontece.
Claro que não. O que existe é
aprender a nadar dentro disso.
“Aprender a nadar” é uma boa expressão - é o nome de um
disco do Jards Macalé... Mas de fato a coisa vai se construindo pouco a pouco,
não é?
Eu acho que, se tem alguma
verdade, se existe alguma vida na obra, ela vem desse processo. Se isso
consegue ser impregnado na narrativa, mantém o frescor para quem vê e tem a
descoberta. É isso que me interessa.