(Texto publicado no livro "Serras da Desordem" - Ed. Azougue, 2008, coletânea de ensaios+entrevista+filmografia sobre o filme homônimo)
Andrea Tonacci e
Rogério Sganzerla começaram a fazer cinema nos agitados anos 60. O início foi
em parceria: em 1966, Tonacci fez a direção de fotografia do primeiro curta de
Sganzerla, Documentário, e Sganzerla fez a montagem do primeiro curta de
Tonacci, Olho Por Olho – dois filmes produzidos numa empreitada coletiva
(juntamente com O Pedestre, de Otoniel Santos Pereira). E assim ambos os
realizadores começaram suas carreiras naquele momento crucial na trajetória da
criação em cinema: internacionalmente, as formas clássicas estavam sendo
confrontadas em diversos aspectos – no modelo de filmagem em grandes estúdios,
no formato de desenvolvimento de enredos, na tipificação de heróis e
psicologismo de personagens, no encadeamento visual e rítmico dos filmes etc;
e, no plano nacional, num movimento sintonizado com o que ocorria em outros
países, a produção de cinema no Brasil estava adquirindo um respeito inédito
junto à “opinião pública” e aos festivais internacionais a partir da aparição
de filmes que consolidaram naquele momento a posição central do grupo
cinemanovista, com cujo cinema os então jovens cineastas tiveram uma forte
relação de continuidade e negação. Algumas preocupações se tornaram explícitas
naquele contexto, sempre a partir de um questionamento primeiro que não tem
resposta definitiva: o da relação entre cinema e realidade. Em torno desta
relação aparecem determinadas questões interligadas entre si: quais são as
formas narrativas possíveis ao cinema; de que modos ele pode registrar a
realidade; em que aspectos o registro de cinema afeta o real; qual a relação de
compromisso se deve ter com esta realidade; enfim, qual a ambição que o cinema
deve ter como modo de expressão artística, seja ela derivada da realidade, da
imaginação ou de ambas. Havia ainda algo que logo se refletiu nos primeiros
longas-metragens de ambos os realizadores: um questionamento constante sobre a
condição cultural da produção brasileira. Todas estas questões marcantes para a
geração que surgiu nos anos 60 são fundamentais nas motivações e escolhas
determinantes nas narrativas tanto de Serras da Desordem quanto de O
Signo do Caos, as produções de Tonacci e Sganzerla realizadas na primeira
década do século XXI.
O processo de
modernização narrativa por que passou o cinema na metade do século XX teve nos
primeiros filmes de Orson Welles momentos decisivos. No entanto, a partir de
sua decadência em Hollywood o realizador foi posto à margem: se os filmes que
realizou, de Cidadão Kane a Badaladas À Meia-Noite,
caracterizavam-se pela engenhosidade dos enredos e pelo uso fortemente
expressivo de enquadramentos, cortes e sons em narrativas sobre o
desmoronamento da falsa grandeza de seus personagens, os estilos predominantes
nas correntes centrais do cinema moderno nasceram de outras ambições. Estas
correntes seguiram, de diversos modos, o caminho aberto pelos neo-realistas de
usar a arte como forma de apresentar a realidade – tenha sido pelo uso de
não-atores e de locações reais, pela desmistificação do espetáculo ou pela
busca de questões e sensações do cotidiano. Sganzerla retorna ao ponto trágico
de Welles na sua passagem pelo Brasil, justamente quando ele planejava uma obra
que, segundo sugere O Signo do Caos, anteciparia todo este caminho que
na Itália ganhou o nome de neo-realismo ao apresentar num filme as faces e
dramas do “povo brasileiro”. A história é bem conhecida: naquele momento Welles
estava sendo descartado pela Hollywood que havia lhe dado carta branca até
então. Seu primeiro filme representara uma aposta imensa da indústria de cinema
num jovem talento, mas o retorno imediato se deu mais em polêmicas do que em
bilheteria – e não era possível prever o culto que se formou com o tempo em
torno de Cidadão Kane. Diversos lances do azar dificultaram suas
relações com os produtores e, assim, ele acabou por perder o controle tanto
sobre o filme que estava em fase de montagem (The Magnificent Ambersons)
como sobre o filme que estava sendo rodado (It’s All True). Foi naquele
instante - quando ele mal havia começado a mostrar as idéias que tinha para
criar filmes, mas já mostrara que iria se caracterizar por uma imaginação
inquieta e uma construção narrativa e visual barroca e complexa - que sua
carreira chegou ao ponto de virada e entrou em permanente decadência no que
concerne à continuidade de produção, sempre com dificuldades de produzir novos
projetos. Dali em diante Orson Welles e seus filmes imaginativos e complexos se
tornaram párias, exilados tanto pela indústria que o desprezou (e que
entraria numa fase de crise) quanto pelo cinema moderno caracterizado pelo
realismo. O fantasismo cinematográfico saiu de moda[1]
- e, após muitos anos marginalizado e restrito ao trabalho de alguns realizadores
ou pequenos espaços, voltou a ser hegemônico no final dos anos 70 justamente a
partir da produção industrial, num movimento de infantilização e confortabilidade
inteiramente contrário ao que caracterizava o cinema de Welles. Se Cidadão
Kane e The Magnificent Ambersons têm estruturas fabulares que se
diferem um bocado dos códigos de realismo que seriam adotados dali em breve
(assim como os filmes seguintes de Welles, Macbeth, A Dama de
Shanghai e Otelo), é evidente que o tom de seus enredos e personagens
e a relação que estabelecem com o espectador é inteiramente diferente do que se
veria a partir de Star Wars, Indiana Jones e o que se seguiu a eles.
Triste ironia: poderia ter sido outro o percurso da imaginação no cinema se os
projetos de Welles tivessem sido bem-sucedidos junto à indústria e seu público.
Seu fracasso condenou a indústria à covardia.
O Signo do
Caos trata do instante fatal da crise de It’s All True para
denunciar este corte abrupto e definitivo no caminho da criação cinematográfica
e, a seu modo, criar um novo caminho a partir deste beco sem saída que fora
abandonado na década de 40. Assim, o filme de Sganzerla parece demonstrar que,
retornando a este modo de narrativa abandonado décadas atrás, é possível fazer
um cinema muito mais interessante - mais criativo, ousado e emocionado - do que
aquele que se fez desde então e continua a ser feito hoje; e, desta forma,
denunciar a gravidade daquele acontecimento, que pôs em jogo todo o caminho por
que passaria o cinema no mundo. Não é por acaso que no filme se ouve uma frase
dita por Welles numa entrevista: “É preciso tirar o cinema do quarto de
brinquedos!” No entanto, O Signo do Caos também mostra como este
caminho da criatividade, uma vez tolhido, cortado, escondido e destruído, só
pode renascer a partir de constantes revisões e recomeços – não por acaso, ele
parece estar dividido em blocos, como se cada proposta de recomeço logo fosse
encerrada e precisasse ser substituída por uma nova. Assim, temos uma metade
inicial, em preto-e-branco fortemente contrastado, que também parece se dividir
em dois momentos: primeiro, o de obter o material do filme maldito; em seguida,
o de examiná-lo e decidir o seu destino, quando diversas falas indicam a
analogia presente entre a criação de Welles e toda a criação cinematográfica,
de modo geral - em que se inclui evidentemente a de Sganzerla (que também foi
acusado ocasionalmente de não ter feito uma carreira à altura de seu primeiro
filme, O Bandido da Luz Vermelha). Deste modo, O Signo do Caos se
constrói motivado por uma “paixão crítica”, conforme a expressão de Octavio Paz
sobre a poesia moderna[2]:
ele recusa toda a banalidade cinematográfica do seu tempo e, para recriar sua
arte, encontra um antepassado por ele descoberto (ou inventado).
A segunda metade
do filme, de cores acentuadas, por sua vez também se divide em duas: primeiro,
o festejo pelo fim do projeto se junta a uma visão alegórica das belezas do
Brasil, encarnadas por Camila Pitanga; em seguida há um ritual funéreo para
queimar o filme maldito – e, quando novamente se explicita a consciência
moderna do diálogo que O Signo do Caos propõe com este cinema perdido,
agora ela tem um teor auto-reflexivo mais intenso e agônico. A acusação de
auto-boicote é enunciada pela personagem de Helena Ignez: “Ele descobriu seu
maior inimigo: ele mesmo.” Uma amarga auto-complacência se faz evidente na
resposta, feita por um defensor da obra: “Vocês não compreenderam, isto é o
Brasil. Com suas pequenezas, mas também suas belezas e suas grandezas”. O
cortejo é interrompido por uma fábula contada a uma criança – enquanto segue
por uma estrada cercada pela beleza esverdeada das plantas, ela ouve que o
mundo não possuía cores até os anos 1940 (como o cinema), mas os pintores de
então faziam quadros já prevendo as cores porque os artistas são uns loucos; no
entanto, as cores de fato só surgiram depois – as cores não eram visíveis no
tempo dos artistas, mas teriam se tornado notáveis com a passagem do tempo.
Esta fábula de razoável otimismo surge nos minutos finais de um filme que
apresentou até então somente perspectivas sombrias para a criação artística –
mas este momento de respiro não dura muito, pois em seguida nada resta senão a
perspectiva amarga de mostrar o filme maldito sendo queimado. Não é sem razão
que Sganzerla definiu a obra que dirigiu como um “anti-filme”: como uma
recriação amarga de um projeto de arte que não chegara a se realizar, O
Signo do Caos cria para si próprio a cilada em que se obriga a ser a
realização definitiva de uma imaginação maldita. Já se disse que a crise que
move a arte moderna é a consciência da morte[3]:
pois O Signo do Caos é a encarnação em cinema desta consciência, como um
fecho em que, por analogia, o próprio realizador se apresenta como personagem
trágico em defesa da sua arte; e, ao mesmo tempo, a obra também parece ser uma
tentativa última de salvamento desta arte ao menos através de sua própria
existência, de sua possibilidade de ser vista (nem que seja “na parede de um
mictório infecto”, conforme pragueja o personagem Dr. Amnésio) e assim
contagiar quem assiste. Talvez seja por isso que, em consonância com a amargura
de seu tema, o filme emita uma certa força radioativa, que sustenta sua colagem
visual e dá sentido ao seu lamento agônico.
Afirmei
acima que as principais correntes do cinema moderno, nos anos seguintes ao
declínio de Welles, seguiram caminhos de cunho mais realista, e me parece interessante notar que a crise
instaurada pela relação entre cinema e realidade - depois de gerar diversos
filmes que procuraram usar as câmeras para retratar o cotidiano (seja em
documentário ou ficção), após esse momento decisivo dos anos 40 abordado por O
Signo do Caos - poucos anos mais tarde gerou filmes que procuravam fazer o
público se questionar sobre o próprio espetáculo cinematográfico, justamente
por não crer que o cinema pode pretender ser fiel à realidade. Assim, depois de
um primeiro movimento em favor de um cinema que levasse o espectador a ver a
realidade das coisas, surgiu um movimento que apontava ao espectador a
realidade do seu próprio gesto de estar vendo um filme. O reconhecimento das
características de espetáculo próprias da narrativa cinematográfica, no
entanto, não esvazia o interesse em trazer as questões mais fortes do cotidiano
para a tela – sua conseqüência é o redimensionamento das possibilidades,
limites e formas de fazê-lo, implicando numa permanente posição crítica sobre
os procedimentos de abordagem, representação e narrativa (e, de certo modo,
este é um motor fundamental de Serras da Desordem). A crença na pretensa
capacidade de apresentar o real através do cinema esteve presente em muitas
outras obras, de dramas íntimos a épicos históricos, de enredos psicologizantes
a reproduções do cotidiano. O realismo, em suas diferentes facetas, tornou-se
uma ética amplamente difundida na criação cinematográfica (e para alguns talvez
tenha se tornado mesmo uma religião) ao mesmo tempo em que esteve
permanentemente em crise e sob ataque. Serras da Desordem não apenas se
mostra consciente desta crise como se estrutura a partir dela e, deste modo,
torna-a explícita: o filme com o próprio Carapiru mistura entrechos encenados
com outros que parecem ser documentais, adicionando a esta narrativa a memória
da construção de uma linguagem cinematográfica, a memória de uma imagem de
nação e também a memória da relação com as tribos indígenas. Assim, o filme se
constrói a partir da exibição de sua própria estrutura e deixa visível esta
crise da representação pretensamente realista: é o próprio Carapiru diante da
câmera, ora realizando encenações ditas “realistas” de fatos passados, ora
sendo registrado em momentos que sugerem espontaneidade; além disso, a história
de Carapiru é mostrada em conjunto com as imagens de arquivo que o filme
apresenta. Estas imagens, que denotam toda a carga histórica de representações
audiovisuais com que trabalha Serras da Desordem (como já apontou Luís
Alberto Rocha Melo em outro texto deste livro), trazem ao filme a evidência que
restava para findar com a herança realista: desta forma ele se assume como
fábula. Não se trata de “mostrar tudo que ocorreu” a Carapiru, mas sim de
representar a sua trajetória de forma crítica, tornando consciente o que
significa relatar seu percurso através do cinema.
Desse
modo, Serras da Desordem traz ao espectador uma ampla perspectiva de um
imenso painel histórico audiovisual, ao mesmo tempo em que se mostra em
sintonia com outras obras que puseram em questão a pretensão de realismo.
Partindo do universo de construção de imagens que une o Nanook de Robert
Flaherty aos filmes de Luiz Thomaz Reis, o documentarista responsável pelos
registros cinematográficos de índios brasileiros feitos pela Comissão Rondon, e
aos de Jean Rouch, o documentarista francês cujos filmes na África
simultaneamente registram o cotidiano de seus habitantes e refletem a sua
própria realização; recriando um imaginário de nação que revisa a tradição de
imagens oficiais para o grande público, dos documentários de Jean Manzon às
matérias do programa Globo Repórter; unindo as estratégias de representação e
abordagem do mundo de Iracema, uma Transa Amazônica, o filme de ficção
que se imbrica com documentário de Jorge Bodanzki e Orlando Senna, ao filme de
Abbas Kiarostami Close-up, que usa como atores os próprios
personagens do enredo que conta: é com a consciência destes predecessores que
se monta Serras da Desordem. É através do encontro destes caminhos
amplos - ao se organizar como uma sucessão de atmosferas e ambientações para
retratar a odisséia de Carapiru e ao se formar a partir da soma de diversos
gêneros de cinema - que o filme dirigido por Tonacci aponta para novas formas
da velha tradição de narrar uma história. Através da justaposição de um
discurso explicitamente narrativo com outro de apreensão do real
(complementados por imagens de arquivo), o filme põe abaixo a crise entre
teorias formalistas e realistas com a imagem constante do próprio Carapiru a
validar seu traço de real e sua força fabular – a presença visual do próprio
personagem-ator torna inviável qualquer separação definitiva entre o registro
ficcional e a realidade deste registro. A aparição de Andrea Tonacci ao final
do filme - assumindo seu papel como mediador desta narrativa sobre a trajetória
de Carapiru, o índio desterritorializado, em eterna viagem desde a perda de seu
espaço vital – gera uma crise revitalizadora ao questionar o espaço deste
próprio filme na relação entre um homem que teve sua forma de vida atacada e a
civilização que primeiro colonizou o seu espaço e posteriormente se apropriou
de sua imagem e de sua história para poder refletir sobre si mesma. Com esse
somatório de camadas de registro, que permite ampliar a perspectiva sobre o que
é mostrar a trajetória de Carapiru, Serras da Desordem imbrica a
percepção de real dentro de um projeto de fábula e, assim, pode dar conta do
seu projeto ambicioso: relacionar a narrativa da vida de um homem a uma ampla
revisão crítica das formas de representação em cinema e a um retrato da
violência gerada pela expansão de uma sociedade na perspectiva de um personagem
à margem desde sua origem.
Não
são poucas as oposições que, como reversos de uma moeda, parecem ligar os
personagens principais de O Signo do Caos e Serras da Desordem.
Orson Welles e Carapiru: se no primeiro filme a figura central é invisível, no
segundo filme a câmera mostra seu protagonista em diferentes ambientes e
registros (incluindo fotos e reportagens). O primeiro fala inglês, a língua que
permite o contato com muitas tribos mundo afora - e, além disso, produz cinema,
a arte que pode reunir múltiplas formas de expressão; o segundo fala somente a
língua dos Awa-Guajá, “tupi arcaico” que nenhuma outra tribo domina com
fluência. O primeiro vem de seu país para o Brasil como participante de um
programa político colonialista (a política da boa vizinhança) e, uma vez
aqui, é impedido de criar sua arte por ações do Estado brasileiro; o segundo
faz parte de uma etnia que habita um pedaço da terra chamada Brasil há mais
tempo que a sociedade que aqui se estruturou como nação (portanto, neste caso
nós outros somos os colonizadores) – e teve o seu espaço invadido e sua família
dizimada por grileiros. O primeiro, Orson Welles, que não se vê e cujo nome
quase não se menciona, parece ser uma máscara em que se identifica o realizador
do filme, Rogério Sganzerla; o segundo, Carapiru, que está sempre visível e
ganha mais de um nome ao longo do filme, encontra-se ao final da narrativa com
o realizador que construiu aquele retrato, Andrea Tonacci. Ao final, ambos
foram levados a retornar para os respectivos lugares de origem sem levar nada
herdado do período de trânsito pelo Brasil a não ser suas lembranças. São duas
trajetórias simbolicamente significativas e em ambos os filmes há um
questionamento silencioso mas sempre presente: qual a medida das conseqüências
que estes homens sofreram em suas vidas por conta destas trajetórias, Welles em
sua empreitada milionária fracassada e Carapiru em sua odisséia marginal? Ambos
os filmes partem dos momentos decisivos em que eles foram impedidos de levar
adiante seus projetos: Welles o de fazer a sua arte com liberdade; Carapiru o
de viver a sua vida em paz. Já lembrei que Welles produzia cinema – e cabe
contrapor que Carapiru sabe produzir o fogo.
Cada um dos dois
filmes faz uma nova trilha, a seu modo, a partir de um dos caminhos definidos
por realizadores fundamentais na renovação que a criação de cinema teve entre
os anos 40 e 60. Em O Signo do Caos revemos o universo da imaginação
barroca e moderna de Welles que nasce em Cidadão Kane: todo o filme se
estrutura como um lamento pela trajetória que esta arte teria a partir do
momento decisivo em que um filme foi interditado e massacrado – é um lamento
sobre o futuro que foi reservado ao cinema, uma vez constatada a destruição dos
espaços para a livre imaginação criadora. Já a obra de Tonacci, embaralhando o
processo ficcional com entrechos documentais, revê todo o histórico de
construção do verismo cinematográfico a partir do relato da trajetória de um
homem que poderia representar uma outra humanidade – e faz isso numa
perspectiva ampla das relações que o cinema teceu com a realidade cotidiana de
seus personagens, uma tradição que reúne
de Luiz Thomaz Reis a Roberto Rosselini (realizador que usou atores
não-profissionais para representarem personagens da mesma origem), passando por
Jean Rouch e muitos outros mais. Serras da Desordem amalgama esta
perspectiva numa narrativa sobre sociedade, história e humanidade que, através
dessa colagem de registros, memórias e ambientes, parece tornar possível a
criação de um novo cinema. É isso que cada filme põe em jogo: num, o futuro do
cinema; noutro, o cinema do futuro. O Signo do Caos lamenta a censura a
um cinema da imaginação, representado por Orson Welles e seu filme
(ironicamente, intitulado É Tudo Verdade); Serras da Desordem gera
um novo cinema de apreensão do real, a partir de Carapiru e de toda a produção
audiovisual que pode ser referida a ele (ou seja, a partir de toda a produção
audiovisual visível). O Signo do Caos recria Welles e procura ir além
num terreno abandonado da criação para encontrar o caminho da arte mais pura em
sua inventividade - enquanto Serras da Desordem parece seguidamente
dinamitar e reconstruir criticamente o caminho cimentado da história do
realismo cinematográfico para refletir sobre o que significa apontar a câmera
para um homem, que sempre será outro.
A criação cinematográfica sempre se supôs dividida entre estes dois pólos: imaginação e realidade. Parece-me que a comparação desta dupla de filmes realizados no Brasil dos primeiros anos do século XXI nos deixa perceber toda a imensa história de conflitos e conciliações travadas entre filmes, realizadores e espectadores a partir destes dois conceitos. O que me parece mais intrigante, no entanto, é o diagnóstico que estas duas realizações de uma dupla de amigos de adolescência trazem sobre o seu próprio lugar histórico - e, por extensão, tanto do cinema brasileiro como da própria condição cultural da sociedade em que se encontram - ao apontar a falência do espaço para a imaginação, no caso de O Signo do Caos, e a necessidade de reinvenção a partir da própria realidade que se dá em múltiplos movimentos e registros, no caso de Serras da Desordem. Entre a agonia e a diáspora, o imenso panorama cinematográfico que se constrói na relação entre os dois filmes traz à luz um novo cinema, inicialmente marginal, periférico - e, ao fim de tudo, vitalmente afirmativo: ambos os filmes se mostram conscientes de que se justificam por sua própria existência; e apenas por existir tornam mais complexos e ambiciosos tanto a arte quanto o mundo de que tomam parte. Do encontro entre cinema e realidade, O Signo do Caos traz uma revisão mortífera do passado censor; em contrapartida, Serras da Desordem tira deste encontro a pulsão vital diante de um futuro incerto. Como duas faces de uma moeda cujo valor é nítido e luminoso: o cinema, uma arte agora renovada.
[1] É comum a lembrança da
decadência por que passaram gêneros clássicos como musicais, filmes épicos e
faroestes; mesmo no caso de desenhos animados, o coelho Pernalonga deu lugar ao
núcleo familiar dos Flintstones. É claro que várias exceções podem ser apontadas
em vários países – diversas na Itália, na Espanha, no México e na União
Soviética, por exemplo. Mas eu pretendi apontar aqui que na indústria de
Hollywood os filmes de fantasia estiveram restritos à produção de baixo custo
ou a poucos nomes significativos como Hitchcock. Do mesmo modo, ainda que haja
exceções como, por exemplo, os filmes de Fellini, o dito cinema moderno era
realista, fosse pela vertente social ou psicologista.
[2] “Desde seu nascimento,
a modernidade é uma paixão crítica e é, assim, uma dupla negação, como crítica
e como paixão, tanto das geometrias clássicas como dos labirintos barrocos.
Paixão vertiginosa, pois culmina com a negação de si mesma: a modernidade é uma
espécie de autodestruição criadora.” PAZ, Octavio, Os Filhos do Barro,
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Estas palavras indicam que, segundo Paz,
uma obra moderna, caracterizada pela ruptura com seu passado imediato,
origina-se de uma atitude crítica apaixonada pelo seu próprio meio. Mais à
frente, ele aponta que “uma das máscaras que a modernidade ostenta” é a
descoberta de produtos artísticos antigos como forma de romper com seu tempo,
exatamente como O Signo do Caos procede com It’s All True: “A
tradição moderna apaga as oposições entre o antigo e contemporâneo e entre o
distante e o próximo. O ácido que dissolve todas essas oposições é a crítica.”
[3] “A imagem poética
configura uma realidade rival da visão do revolucionário e da visão do
religioso. A poesia é a outra coerência, não constituída de razões, mas de
ritmos. Não obstante, há um momento em que se rompe a correspondência; há uma
dissonância que se chama, no poema, ironia e, na vida, mortalidade. A poesia
moderna é a consciência dessa dissonância dentro da analogia.” Novamente
estou citando Os Filhos do Barro, de Octavio Paz.