18/12/2016

Entre o caos e a desordem

(Texto publicado no livro "Serras da Desordem" - Ed. Azougue, 2008, coletânea de ensaios+entrevista+filmografia sobre o filme homônimo)


Andrea Tonacci e Rogério Sganzerla começaram a fazer cinema nos agitados anos 60. O início foi em parceria: em 1966, Tonacci fez a direção de fotografia do primeiro curta de Sganzerla, Documentário, e Sganzerla fez a montagem do primeiro curta de Tonacci, Olho Por Olho – dois filmes produzidos numa empreitada coletiva (juntamente com O Pedestre, de Otoniel Santos Pereira). E assim ambos os realizadores começaram suas carreiras naquele momento crucial na trajetória da criação em cinema: internacionalmente, as formas clássicas estavam sendo confrontadas em diversos aspectos – no modelo de filmagem em grandes estúdios, no formato de desenvolvimento de enredos, na tipificação de heróis e psicologismo de personagens, no encadeamento visual e rítmico dos filmes etc; e, no plano nacional, num movimento sintonizado com o que ocorria em outros países, a produção de cinema no Brasil estava adquirindo um respeito inédito junto à “opinião pública” e aos festivais internacionais a partir da aparição de filmes que consolidaram naquele momento a posição central do grupo cinemanovista, com cujo cinema os então jovens cineastas tiveram uma forte relação de continuidade e negação. Algumas preocupações se tornaram explícitas naquele contexto, sempre a partir de um questionamento primeiro que não tem resposta definitiva: o da relação entre cinema e realidade. Em torno desta relação aparecem determinadas questões interligadas entre si: quais são as formas narrativas possíveis ao cinema; de que modos ele pode registrar a realidade; em que aspectos o registro de cinema afeta o real; qual a relação de compromisso se deve ter com esta realidade; enfim, qual a ambição que o cinema deve ter como modo de expressão artística, seja ela derivada da realidade, da imaginação ou de ambas. Havia ainda algo que logo se refletiu nos primeiros longas-metragens de ambos os realizadores: um questionamento constante sobre a condição cultural da produção brasileira. Todas estas questões marcantes para a geração que surgiu nos anos 60 são fundamentais nas motivações e escolhas determinantes nas narrativas tanto de Serras da Desordem quanto de O Signo do Caos, as produções de Tonacci e Sganzerla realizadas na primeira década do século XXI.

            O processo de modernização narrativa por que passou o cinema na metade do século XX teve nos primeiros filmes de Orson Welles momentos decisivos. No entanto, a partir de sua decadência em Hollywood o realizador foi posto à margem: se os filmes que realizou, de Cidadão Kane a Badaladas À Meia-Noite, caracterizavam-se pela engenhosidade dos enredos e pelo uso fortemente expressivo de enquadramentos, cortes e sons em narrativas sobre o desmoronamento da falsa grandeza de seus personagens, os estilos predominantes nas correntes centrais do cinema moderno nasceram de outras ambições. Estas correntes seguiram, de diversos modos, o caminho aberto pelos neo-realistas de usar a arte como forma de apresentar a realidade – tenha sido pelo uso de não-atores e de locações reais, pela desmistificação do espetáculo ou pela busca de questões e sensações do cotidiano. Sganzerla retorna ao ponto trágico de Welles na sua passagem pelo Brasil, justamente quando ele planejava uma obra que, segundo sugere O Signo do Caos, anteciparia todo este caminho que na Itália ganhou o nome de neo-realismo ao apresentar num filme as faces e dramas do “povo brasileiro”. A história é bem conhecida: naquele momento Welles estava sendo descartado pela Hollywood que havia lhe dado carta branca até então. Seu primeiro filme representara uma aposta imensa da indústria de cinema num jovem talento, mas o retorno imediato se deu mais em polêmicas do que em bilheteria – e não era possível prever o culto que se formou com o tempo em torno de Cidadão Kane. Diversos lances do azar dificultaram suas relações com os produtores e, assim, ele acabou por perder o controle tanto sobre o filme que estava em fase de montagem (The Magnificent Ambersons) como sobre o filme que estava sendo rodado (It’s All True). Foi naquele instante - quando ele mal havia começado a mostrar as idéias que tinha para criar filmes, mas já mostrara que iria se caracterizar por uma imaginação inquieta e uma construção narrativa e visual barroca e complexa - que sua carreira chegou ao ponto de virada e entrou em permanente decadência no que concerne à continuidade de produção, sempre com dificuldades de produzir novos projetos. Dali em diante Orson Welles e seus filmes imaginativos e complexos se tornaram párias, exilados tanto pela indústria que o desprezou (e que entraria numa fase de crise) quanto pelo cinema moderno caracterizado pelo realismo. O fantasismo cinematográfico saiu de moda[1] - e, após muitos anos marginalizado e restrito ao trabalho de alguns realizadores ou pequenos espaços, voltou a ser hegemônico no final dos anos 70 justamente a partir da produção industrial, num movimento de infantilização e confortabilidade inteiramente contrário ao que caracterizava o cinema de Welles. Se Cidadão Kane e The Magnificent Ambersons têm estruturas fabulares que se diferem um bocado dos códigos de realismo que seriam adotados dali em breve (assim como os filmes seguintes de Welles, Macbeth, A Dama de Shanghai e Otelo), é evidente que o tom de seus enredos e personagens e a relação que estabelecem com o espectador é inteiramente diferente do que se veria a partir de Star Wars, Indiana Jones e o que se seguiu a eles. Triste ironia: poderia ter sido outro o percurso da imaginação no cinema se os projetos de Welles tivessem sido bem-sucedidos junto à indústria e seu público. Seu fracasso condenou a indústria à covardia.

O Signo do Caos trata do instante fatal da crise de It’s All True para denunciar este corte abrupto e definitivo no caminho da criação cinematográfica e, a seu modo, criar um novo caminho a partir deste beco sem saída que fora abandonado na década de 40. Assim, o filme de Sganzerla parece demonstrar que, retornando a este modo de narrativa abandonado décadas atrás, é possível fazer um cinema muito mais interessante - mais criativo, ousado e emocionado - do que aquele que se fez desde então e continua a ser feito hoje; e, desta forma, denunciar a gravidade daquele acontecimento, que pôs em jogo todo o caminho por que passaria o cinema no mundo. Não é por acaso que no filme se ouve uma frase dita por Welles numa entrevista: “É preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos!” No entanto, O Signo do Caos também mostra como este caminho da criatividade, uma vez tolhido, cortado, escondido e destruído, só pode renascer a partir de constantes revisões e recomeços – não por acaso, ele parece estar dividido em blocos, como se cada proposta de recomeço logo fosse encerrada e precisasse ser substituída por uma nova. Assim, temos uma metade inicial, em preto-e-branco fortemente contrastado, que também parece se dividir em dois momentos: primeiro, o de obter o material do filme maldito; em seguida, o de examiná-lo e decidir o seu destino, quando diversas falas indicam a analogia presente entre a criação de Welles e toda a criação cinematográfica, de modo geral - em que se inclui evidentemente a de Sganzerla (que também foi acusado ocasionalmente de não ter feito uma carreira à altura de seu primeiro filme, O Bandido da Luz Vermelha). Deste modo, O Signo do Caos se constrói motivado por uma “paixão crítica”, conforme a expressão de Octavio Paz sobre a poesia moderna[2]: ele recusa toda a banalidade cinematográfica do seu tempo e, para recriar sua arte, encontra um antepassado por ele descoberto (ou inventado).

A segunda metade do filme, de cores acentuadas, por sua vez também se divide em duas: primeiro, o festejo pelo fim do projeto se junta a uma visão alegórica das belezas do Brasil, encarnadas por Camila Pitanga; em seguida há um ritual funéreo para queimar o filme maldito – e, quando novamente se explicita a consciência moderna do diálogo que O Signo do Caos propõe com este cinema perdido, agora ela tem um teor auto-reflexivo mais intenso e agônico. A acusação de auto-boicote é enunciada pela personagem de Helena Ignez: “Ele descobriu seu maior inimigo: ele mesmo.” Uma amarga auto-complacência se faz evidente na resposta, feita por um defensor da obra: “Vocês não compreenderam, isto é o Brasil. Com suas pequenezas, mas também suas belezas e suas grandezas”. O cortejo é interrompido por uma fábula contada a uma criança – enquanto segue por uma estrada cercada pela beleza esverdeada das plantas, ela ouve que o mundo não possuía cores até os anos 1940 (como o cinema), mas os pintores de então faziam quadros já prevendo as cores porque os artistas são uns loucos; no entanto, as cores de fato só surgiram depois – as cores não eram visíveis no tempo dos artistas, mas teriam se tornado notáveis com a passagem do tempo. Esta fábula de razoável otimismo surge nos minutos finais de um filme que apresentou até então somente perspectivas sombrias para a criação artística – mas este momento de respiro não dura muito, pois em seguida nada resta senão a perspectiva amarga de mostrar o filme maldito sendo queimado. Não é sem razão que Sganzerla definiu a obra que dirigiu como um “anti-filme”: como uma recriação amarga de um projeto de arte que não chegara a se realizar, O Signo do Caos cria para si próprio a cilada em que se obriga a ser a realização definitiva de uma imaginação maldita. Já se disse que a crise que move a arte moderna é a consciência da morte[3]: pois O Signo do Caos é a encarnação em cinema desta consciência, como um fecho em que, por analogia, o próprio realizador se apresenta como personagem trágico em defesa da sua arte; e, ao mesmo tempo, a obra também parece ser uma tentativa última de salvamento desta arte ao menos através de sua própria existência, de sua possibilidade de ser vista (nem que seja “na parede de um mictório infecto”, conforme pragueja o personagem Dr. Amnésio) e assim contagiar quem assiste. Talvez seja por isso que, em consonância com a amargura de seu tema, o filme emita uma certa força radioativa, que sustenta sua colagem visual e dá sentido ao seu lamento agônico.

            Afirmei acima que as principais correntes do cinema moderno, nos anos seguintes ao declínio de Welles, seguiram caminhos de cunho mais realista, e me parece interessante notar que a crise instaurada pela relação entre cinema e realidade - depois de gerar diversos filmes que procuraram usar as câmeras para retratar o cotidiano (seja em documentário ou ficção), após esse momento decisivo dos anos 40 abordado por O Signo do Caos - poucos anos mais tarde gerou filmes que procuravam fazer o público se questionar sobre o próprio espetáculo cinematográfico, justamente por não crer que o cinema pode pretender ser fiel à realidade. Assim, depois de um primeiro movimento em favor de um cinema que levasse o espectador a ver a realidade das coisas, surgiu um movimento que apontava ao espectador a realidade do seu próprio gesto de estar vendo um filme. O reconhecimento das características de espetáculo próprias da narrativa cinematográfica, no entanto, não esvazia o interesse em trazer as questões mais fortes do cotidiano para a tela – sua conseqüência é o redimensionamento das possibilidades, limites e formas de fazê-lo, implicando numa permanente posição crítica sobre os procedimentos de abordagem, representação e narrativa (e, de certo modo, este é um motor fundamental de Serras da Desordem). A crença na pretensa capacidade de apresentar o real através do cinema esteve presente em muitas outras obras, de dramas íntimos a épicos históricos, de enredos psicologizantes a reproduções do cotidiano. O realismo, em suas diferentes facetas, tornou-se uma ética amplamente difundida na criação cinematográfica (e para alguns talvez tenha se tornado mesmo uma religião) ao mesmo tempo em que esteve permanentemente em crise e sob ataque. Serras da Desordem não apenas se mostra consciente desta crise como se estrutura a partir dela e, deste modo, torna-a explícita: o filme com o próprio Carapiru mistura entrechos encenados com outros que parecem ser documentais, adicionando a esta narrativa a memória da construção de uma linguagem cinematográfica, a memória de uma imagem de nação e também a memória da relação com as tribos indígenas. Assim, o filme se constrói a partir da exibição de sua própria estrutura e deixa visível esta crise da representação pretensamente realista: é o próprio Carapiru diante da câmera, ora realizando encenações ditas “realistas” de fatos passados, ora sendo registrado em momentos que sugerem espontaneidade; além disso, a história de Carapiru é mostrada em conjunto com as imagens de arquivo que o filme apresenta. Estas imagens, que denotam toda a carga histórica de representações audiovisuais com que trabalha Serras da Desordem (como já apontou Luís Alberto Rocha Melo em outro texto deste livro), trazem ao filme a evidência que restava para findar com a herança realista: desta forma ele se assume como fábula. Não se trata de “mostrar tudo que ocorreu” a Carapiru, mas sim de representar a sua trajetória de forma crítica, tornando consciente o que significa relatar seu percurso através do cinema.

            Desse modo, Serras da Desordem traz ao espectador uma ampla perspectiva de um imenso painel histórico audiovisual, ao mesmo tempo em que se mostra em sintonia com outras obras que puseram em questão a pretensão de realismo. Partindo do universo de construção de imagens que une o Nanook de Robert Flaherty aos filmes de Luiz Thomaz Reis, o documentarista responsável pelos registros cinematográficos de índios brasileiros feitos pela Comissão Rondon, e aos de Jean Rouch, o documentarista francês cujos filmes na África simultaneamente registram o cotidiano de seus habitantes e refletem a sua própria realização; recriando um imaginário de nação que revisa a tradição de imagens oficiais para o grande público, dos documentários de Jean Manzon às matérias do programa Globo Repórter; unindo as estratégias de representação e abordagem do mundo de Iracema, uma Transa Amazônica, o filme de ficção que se imbrica com documentário de Jorge Bodanzki e Orlando Senna, ao filme de Abbas Kiarostami Close-up, que usa como atores os próprios personagens do enredo que conta: é com a consciência destes predecessores que se monta Serras da Desordem. É através do encontro destes caminhos amplos - ao se organizar como uma sucessão de atmosferas e ambientações para retratar a odisséia de Carapiru e ao se formar a partir da soma de diversos gêneros de cinema - que o filme dirigido por Tonacci aponta para novas formas da velha tradição de narrar uma história. Através da justaposição de um discurso explicitamente narrativo com outro de apreensão do real (complementados por imagens de arquivo), o filme põe abaixo a crise entre teorias formalistas e realistas com a imagem constante do próprio Carapiru a validar seu traço de real e sua força fabular – a presença visual do próprio personagem-ator torna inviável qualquer separação definitiva entre o registro ficcional e a realidade deste registro. A aparição de Andrea Tonacci ao final do filme - assumindo seu papel como mediador desta narrativa sobre a trajetória de Carapiru, o índio desterritorializado, em eterna viagem desde a perda de seu espaço vital – gera uma crise revitalizadora ao questionar o espaço deste próprio filme na relação entre um homem que teve sua forma de vida atacada e a civilização que primeiro colonizou o seu espaço e posteriormente se apropriou de sua imagem e de sua história para poder refletir sobre si mesma. Com esse somatório de camadas de registro, que permite ampliar a perspectiva sobre o que é mostrar a trajetória de Carapiru, Serras da Desordem imbrica a percepção de real dentro de um projeto de fábula e, assim, pode dar conta do seu projeto ambicioso: relacionar a narrativa da vida de um homem a uma ampla revisão crítica das formas de representação em cinema e a um retrato da violência gerada pela expansão de uma sociedade na perspectiva de um personagem à margem desde sua origem.

            Não são poucas as oposições que, como reversos de uma moeda, parecem ligar os personagens principais de O Signo do Caos e Serras da Desordem. Orson Welles e Carapiru: se no primeiro filme a figura central é invisível, no segundo filme a câmera mostra seu protagonista em diferentes ambientes e registros (incluindo fotos e reportagens). O primeiro fala inglês, a língua que permite o contato com muitas tribos mundo afora - e, além disso, produz cinema, a arte que pode reunir múltiplas formas de expressão; o segundo fala somente a língua dos Awa-Guajá, “tupi arcaico” que nenhuma outra tribo domina com fluência. O primeiro vem de seu país para o Brasil como participante de um programa político colonialista (a política da boa vizinhança) e, uma vez aqui, é impedido de criar sua arte por ações do Estado brasileiro; o segundo faz parte de uma etnia que habita um pedaço da terra chamada Brasil há mais tempo que a sociedade que aqui se estruturou como nação (portanto, neste caso nós outros somos os colonizadores) – e teve o seu espaço invadido e sua família dizimada por grileiros. O primeiro, Orson Welles, que não se vê e cujo nome quase não se menciona, parece ser uma máscara em que se identifica o realizador do filme, Rogério Sganzerla; o segundo, Carapiru, que está sempre visível e ganha mais de um nome ao longo do filme, encontra-se ao final da narrativa com o realizador que construiu aquele retrato, Andrea Tonacci. Ao final, ambos foram levados a retornar para os respectivos lugares de origem sem levar nada herdado do período de trânsito pelo Brasil a não ser suas lembranças. São duas trajetórias simbolicamente significativas e em ambos os filmes há um questionamento silencioso mas sempre presente: qual a medida das conseqüências que estes homens sofreram em suas vidas por conta destas trajetórias, Welles em sua empreitada milionária fracassada e Carapiru em sua odisséia marginal? Ambos os filmes partem dos momentos decisivos em que eles foram impedidos de levar adiante seus projetos: Welles o de fazer a sua arte com liberdade; Carapiru o de viver a sua vida em paz. Já lembrei que Welles produzia cinema – e cabe contrapor que Carapiru sabe produzir o fogo.

Cada um dos dois filmes faz uma nova trilha, a seu modo, a partir de um dos caminhos definidos por realizadores fundamentais na renovação que a criação de cinema teve entre os anos 40 e 60. Em O Signo do Caos revemos o universo da imaginação barroca e moderna de Welles que nasce em Cidadão Kane: todo o filme se estrutura como um lamento pela trajetória que esta arte teria a partir do momento decisivo em que um filme foi interditado e massacrado – é um lamento sobre o futuro que foi reservado ao cinema, uma vez constatada a destruição dos espaços para a livre imaginação criadora. Já a obra de Tonacci, embaralhando o processo ficcional com entrechos documentais, revê todo o histórico de construção do verismo cinematográfico a partir do relato da trajetória de um homem que poderia representar uma outra humanidade – e faz isso numa perspectiva ampla das relações que o cinema teceu com a realidade cotidiana de seus personagens, uma tradição que reúne  de Luiz Thomaz Reis a Roberto Rosselini (realizador que usou atores não-profissionais para representarem personagens da mesma origem), passando por Jean Rouch e muitos outros mais. Serras da Desordem amalgama esta perspectiva numa narrativa sobre sociedade, história e humanidade que, através dessa colagem de registros, memórias e ambientes, parece tornar possível a criação de um novo cinema. É isso que cada filme põe em jogo: num, o futuro do cinema; noutro, o cinema do futuro. O Signo do Caos lamenta a censura a um cinema da imaginação, representado por Orson Welles e seu filme (ironicamente, intitulado É Tudo Verdade); Serras da Desordem gera um novo cinema de apreensão do real, a partir de Carapiru e de toda a produção audiovisual que pode ser referida a ele (ou seja, a partir de toda a produção audiovisual visível). O Signo do Caos recria Welles e procura ir além num terreno abandonado da criação para encontrar o caminho da arte mais pura em sua inventividade - enquanto Serras da Desordem parece seguidamente dinamitar e reconstruir criticamente o caminho cimentado da história do realismo cinematográfico para refletir sobre o que significa apontar a câmera para um homem, que sempre será outro.

A criação cinematográfica sempre se supôs dividida entre estes dois pólos: imaginação e realidade. Parece-me que a comparação desta dupla de filmes realizados no Brasil dos primeiros anos do século XXI nos deixa perceber toda a imensa história de conflitos e conciliações travadas entre filmes, realizadores e espectadores a partir destes dois conceitos. O que me parece mais intrigante, no entanto, é o diagnóstico que estas duas realizações de uma dupla de amigos de adolescência trazem sobre o seu próprio lugar histórico - e, por extensão, tanto do cinema brasileiro como da própria condição cultural da sociedade em que se encontram - ao apontar a falência do espaço para a imaginação, no caso de O Signo do Caos, e a necessidade de reinvenção a partir da própria realidade que se dá em múltiplos movimentos e registros, no caso de Serras da Desordem. Entre a agonia e a diáspora, o imenso panorama cinematográfico que se constrói na relação entre os dois filmes traz à luz um novo cinema, inicialmente marginal, periférico - e, ao fim de tudo, vitalmente afirmativo: ambos os filmes se mostram conscientes de que se justificam por sua própria existência; e apenas por existir tornam mais complexos e ambiciosos tanto a arte quanto o mundo de que tomam parte. Do encontro entre cinema e realidade, O Signo do Caos traz uma revisão mortífera do passado censor; em contrapartida, Serras da Desordem tira deste encontro a pulsão vital diante de um futuro incerto. Como duas faces de uma moeda cujo valor é nítido e luminoso: o cinema, uma arte agora renovada.





[1] É comum a lembrança da decadência por que passaram gêneros clássicos como musicais, filmes épicos e faroestes; mesmo no caso de desenhos animados, o coelho Pernalonga deu lugar ao núcleo familiar dos Flintstones. É claro que várias exceções podem ser apontadas em vários países – diversas na Itália, na Espanha, no México e na União Soviética, por exemplo. Mas eu pretendi apontar aqui que na indústria de Hollywood os filmes de fantasia estiveram restritos à produção de baixo custo ou a poucos nomes significativos como Hitchcock. Do mesmo modo, ainda que haja exceções como, por exemplo, os filmes de Fellini, o dito cinema moderno era realista, fosse pela vertente social ou psicologista.
[2]Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixão crítica e é, assim, uma dupla negação, como crítica e como paixão, tanto das geometrias clássicas como dos labirintos barrocos. Paixão vertiginosa, pois culmina com a negação de si mesma: a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora.” PAZ, Octavio, Os Filhos do Barro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Estas palavras indicam que, segundo Paz, uma obra moderna, caracterizada pela ruptura com seu passado imediato, origina-se de uma atitude crítica apaixonada pelo seu próprio meio. Mais à frente, ele aponta que “uma das máscaras que a modernidade ostenta” é a descoberta de produtos artísticos antigos como forma de romper com seu tempo, exatamente como O Signo do Caos procede com It’s All True: “A tradição moderna apaga as oposições entre o antigo e contemporâneo e entre o distante e o próximo. O ácido que dissolve todas essas oposições é a crítica.
[3]A imagem poética configura uma realidade rival da visão do revolucionário e da visão do religioso. A poesia é a outra coerência, não constituída de razões, mas de ritmos. Não obstante, há um momento em que se rompe a correspondência; há uma dissonância que se chama, no poema, ironia e, na vida, mortalidade. A poesia moderna é a consciência dessa dissonância dentro da analogia.” Novamente estou citando Os Filhos do Barro, de Octavio Paz.