21/05/2012

Filme Demência



"Filme Demência" é a única fita de Carlos Reichenbach produzida pela Embrafilme, e é também a fita mais pessoal do autor. Uma bela obra, sofrida e instigante, resultado de um momento de crise e transição no país e em sua carreira.

O ano era 1985, o país via o primeiro governo civil em vinte anos tornar-se o mau administrador de uma crise que se agigantava. Enquanto isso, Carlos Reichenbach pela primeira vez via um projeto seu aprovado na empresa estatal que dominou o cenário cinematográfico por anos, a Embrafilme. O roteiro tinha o nome “Propriedade Privada”, havia sido escrito pelo autor juntamente com J. C. Ismael e Inácio Araújo, e a intenção era fazer um belo melodrama, com a presença de um astro italiano, cogitou-se inclusive a hipótese de contratar Ben Gazarra ou Adolfo Celi. No entanto, o projeto estacionou nas mãos da Embra, o dinheiro demorou a ser liberado, e quando o foi já não valia o mesmo. Sofrera dos males da inflação, e, naquela altura, o valor estipulado no orçamento original não estava de acordo com a realidade. Tudo bem, isso não era caso sério, Reichenbach já achava que aquele projeto envelhecera, e já tinha novas idéias. Devido às questões financeiras, não foi possível à Embrafilme resistir aos novos rumos, apesar das intenções de alguns burocratas. (Anos mais tarde, Carlão utilizaria o roteiro de “Propriedade Privada” em exercícios que criava em suas aulas na USP, quando passava sequências dialogadas para serem decupadas por seus alunos).

Carlão decide então filmar sua versão do “Fausto”, o homem que vende sua alma ao diabo, a partir da obra de Goethe, o que desde já é uma referência bastante forte. O cineasta esquisito das pornochanchadas do Galante, que tinha participado do dito cinema marginal, agora se filiava a uma tradição da pesada, criando a sua versão de um cânone do ocidente, o que já era um pouco uma referência a si próprio, oriundo de uma família de editores. Desde já o filme busca os valores da pessoa Reichenbach, para que o artista os reconheça e possa nortear seu caminho. Não há receio em fazer um filme pernóstico, o Fausto acaba sendo um espelho do autor do início ao fim. A conseqüência é que se evidenciarão dúvidas, medos e inseguranças. Reichenbach já disse que faz filmes porque lhes são necessários, e que seus prediletos são os que saem de suas tripas (contrapondo-se aos do coração, por exemplo). E de fato “Filme Demência” é no qual mais se percebe tal exposição, não por acaso Carlão costuma rotulá-lo sua melhor obra. Reichenbach, durante uma hora e meia, faz um filme para se encontrar, com a disposição de se exibir até se tornar uma presença clara para si mesmo. Refere-se à tradição ocidental com Goethe, mas também se refere a Godard e Sganzerla no título, que é um anagrama da expressão “Filme de Cinema”. Da mesma forma, o Fausto que protagoniza este filme em muito se remete ao protagonista do “Paraíso Perdido”, que por sua vez Reichenbach admite ser diretamente inspirado no protagonista do filme “A Primeira Noite de Tranquilidade”, de Valério Zurlini.

Terminado o período das pornochanchadas, estava vindo à tona um novo momento, e “Filme Demência” marca esta ruptura, como o projeto anterior nunca poderia fazer. Não há sedução ao público, a intenção é de instigar, mostrar conflitos às vezes pouco claros e quase nunca solucionáveis. Nosso Fausto não quer o Diabo, mas se vê enfadado pelos valores que o mundo lhe impõe, e o filme nos mostrará sua procura por uma alternativa. Seu dinheiro não vale mais nada, e das mulheres ele parece ter adquirido saturação, talvez asco, embora as notas e as beldades se multipliquem. O Fausto fugirá de Mefisto enquanto ele lhe parece nefasto, e perseguirá uma imagem de pureza redentora que vez por outra ele vislumbra. Isto o leva a deixar a cidade numa estrada sem rumo, ou melhor, no rumo de si mesmo. Não lhe adianta fugir do seu destino de encarar Mefisto, mas isto só se dará quando Mefisto lhe mostrar sua outra face, que é a sua própria redenção. Esta dualidade não é contínua, é uma parte natural do momento que se atravessa. No caso, seu carro atravessa mesmo, de fato, estilhaçando tudo e indo além.

Uma vez rompida a barreira, o caminho estava novamente livre. Carlos Reichenbach entra em nova fase de sua carreira, agora um artista mais consciente de si, que começa a se interessar cada vez mais pelo melodrama subvertido e pela memória afetiva auto-irônica, sem deixar de lado a preocupação social e a pregação libertária. Seu Mefisto se tornara palatável, no fim das contas Fausto terminou escapando, ou melhor, transcendendo a fase das dualidades e dos opostos.

“Filme Demência” só foi possível, como já afirmou Carlão, graças à entrega dos dois protagonistas, Ênio Gonçalves e Emílio de Biasi, atores excepcionais. O filme teve problemas de lançamento, pois se tratava de uma obra cinzenta demais para a época em que ficou pronta, o eufórico início do Plano Cruzado. A inflação, que tanto atrapalhou a produção e que foi tematizada no filme, adormeceu por alguns meses. Receosos da pouca receptividade do público, os distribuidores o engavetaram, e, quando o lançaram, o fizeram pessimamente. É pena. Reichenbach já reconheceu que se trata de um filme difícil, um Miúra, como se diz. Mas é um filme e tanto, bastante rico, e vale a pena ser visto.


Texto publicado em julho de 1999.