19/05/2012

Don Carlone

O Gabriel me falou para escrever um depoimento sobre o Carlão. Achei que ia ser moleza, mas não é tão fácil não. O Carlão é uma figura central em muita coisa que aconteceu na cena cinéfila nos últimos anos. O papel que ele cumpriu foi fundamental na minha formação e na de mais uma cacetada de gente. Então eu acho que esse depoimento tem que falar desse aspecto importante, que precisa ser apontado, mas ele se envolveu em tanta coisa que eu já sei que o panorama fica incompleto. Então, pro depoimento pelo menos fazer jus à pessoa, vou tentar sintetizar a ideia numa frase curta: o Carlão Reichenbach é um cara do cacete.

Quando eu fui apresentado a ele pelo Fran/Chico Mosqueira, na época em que ele deu aulas na ECA, eu já tinha visto alguns filmes dele. Aproveitei a temporada que estava passando em SP para acompanhar o curso. Era um barato: numa aula ele podia passar horas explicando como filmar e revelar em super-8; noutra, fazia uma revisão crítica do cinema dos quarenta anos anteriores; na aula seguinte, botava a turma pra fazer um exercício de decupagem a partir de um roteiro que nunca saiu da gaveta; em seguida, a partir de uma discussão sobre a importância de uma narrativa que prescindisse de diálogos, ele exibia um filme japonês do Imamura sem legendas.

Alguns anos depois, o Festival de Cinema Universitário fez uma homenagem a ele, com mostra retrospectiva, trouxe ele pro Rio/Niterói. E nessa época ele estava começando a manter um blog no site Zaz, que depois migrou de provedor - e, como todo mundo sabe, está no ar até hoje num endereço independente, http://olhoslivres.zip.net/ , tendo sido um dos espaços mais influentes nas discussões de cinema por aí. Nessa época da mostra do FBCU, o Carlão topou dar uma entrevista à ainda muito jovem Contracampo, que dedicaria uma pauta aos filmes dele (era abril de 1999, cerca de seis meses depois de ela ter sido criada). Ao conhecer a revista, o Carlão foi muito generoso e divulgou ela bastante, tendo sido a primeira pessoa da área a fazer isso.

Essa atitude não é rara: ele fez o mesmo com todas as iniciativas semelhantes que pintaram na mesma época e desde então, do site Carcasse à Cinética, passando pela Paisà, pela Teorema, pela Zingu!, pela Filmes Polvo e por aí vai. E ele também participou de listas de discussão cinéfila - cujos temas algumas vezes naturalmente vazavam para o blog dele, como aconteceu com o que se chamaria de cinema extremo a partir da participação na Canibal Holocausto.

E, muito por conta disso, nos anos recentes ele criou essa fabulosa Sessão do Comodoro no Cinesesc, um horário em que a cinefilia paulistana tem acesso a filmes notáveis, pouco conhecidos e de difícil acesso.

Daria pra falar mais uma porção de coisas sobre o Carlão como cineasta. Mas isso não vou fazer agora, porque foi feito e segue sendo feito por um monte de gente boa, inclusive nessa edição aqui. Mas vou dizer uma coisa: tem muito valor o percurso que ele seguiu. O Carlão, como uns poucos outros cineastas da mesma época, participou de um momento da produção incluído na chamada contracultura e, quando esse esquema entrou em crise, não teve pudor de entrar no esquemão comercial que existia. Ao fazer isso, fez alguns filmes realmente incríveis dentro desse esquemão comercial, que tão comumente é visto com preconceito. Isso me interessava a tal ponto que foi algo determinante para a pesquisa que escolhi para seguir o doutorado - quero tentar discutir os filmes feitos dentro desse esquema “vulgar”, já desconfiando que uma boa parte da crítica não entendeu nada.

Como eu disse, isso foi feito por outros cineastas no Brasil (Neville, por exemplo) e noutros países. Pois quem conhece o Carlão já deve imaginar o imenso número de cineastas geniais de outros países que ele já mencionou e eu nunca tinha ouvido falar - e ele, com generosidade, me fez perceber que eu preciso conhecer. Qualquer pessoa que conversa com ele percebe essa generosidade, depois de ouvir sugestões de dezenas de filmes muito bons (e às vezes até ganhar a cópia, se ele tiver uma disponível).

Esse é o ponto fundamental que eu queria contar aqui. O Carlão se tornou essa figura de referência pra tanta gente por esse motivo: ele transmite uma paixão muito grande pelo cinema e um conhecimento considerável de um monte de carreiras de cineastas que o amigo leitor nunca deve ter ouvido falar. Com esse jeitão gentil que é bem conhecido pelos cinéfilos paulistanos (e não só por eles), ele ajudou bastante para que alguns filmes fossem vistos com menos preconceito e as discussões e papos sobre cinema não se tornassem caretas e tapadas demais.

O título desse texto foi um apelido que ele mesmo sugeriu para si. Isso aconteceu porque, quando o conheci, eu volta e meia chamava ele de “professor” (já que tinha assistido às aulas na ECA). Ele preferia algum apelido menos pomposo: Carlão, Carlito, Don Carlone... Mas, mesmo que ele não curta o nome solene, escrevi esse texto aqui para lembrar desse papel central que ele cumpriu (com todas as discordâncias e polêmicas, e até por causa delas) como mestre mesmo - não só pra mim, mas pra muita gente bacana que anda aprontado coisas boas por aí.


depoimento publicado em outubro de 2009 na Revista Zingu!, na edição dedicada a Reichenbach.