21/11/2009

Os sentimentos mais vivos - sobre Hannah e suas irmãs




É comum que se diga que a carreira de Woody Allen como diretor tem vários pontos altos e baixos, frequentemente alternando uns e outros – e também não é raro que se afirme que o auge de sua carreira foi durante um certo período dos anos 1980. Eu concordo com isso: mesmo que muitos outros filmes bons não sejam dessa fase, foi nessa época que as criações dele pareceram ter chegado ao melhor ponto de harmonia e força. Foi também o período em que realizou uma sequência de produções que deu as características definitivas do seu estilo criativo no que ele tem de melhor. Entre Broadway Danny Rose (1984) e A era do rádio (Radio Days, 1987), ele não apenas consolidou e aprofundou seu já bastante conhecido personagem urbano-neurótico, como também mostrou-se o melhor cronista de sua sociedade – o que já era possível perceber em Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977) – e teve os melhores resultados na construção do universo de seus personagens: a classe média um tanto intelectual e liberal do leste dos Estados Unidos que compõe Hannah e suas irmãs (e, na verdade, já era o ambiente do mencionado Noivo neurótico, noiva nervosa); ou a classe média/baixa que sofre com as contas no final do mês, presente em Broadway Danny Rose, A rosa púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985) e na parte do núcleo familiar de A era do rádio.

Tem um trecho que eu acho bastante curioso em Hannah e suas irmãs, é o momento em que Holly, a irmã desajustada, resolve abandonar a carreira de atriz para se tornar escritora de romances e, no seu primeiro trabalho, cria uma trama que tem personagens inspirados na irmã Hannah e seu marido. Tendo como pano de fundo as consequências do relacionamento entre ele e sua cunhada Lee, essa subtrama apresenta um tema que viria a ser recorrente nos filmes de Allen: o questionamento do direito que o artista tem de usar como inspiração as histórias das pessoas que lhe são próximas. Mais tarde essa preocupação se tornou o motivo central de Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997) — neste caso, sendo resolvido de forma bizarramente efusiva, com uma salva de palmas dos personagens para o autor, que parecia assim redimido de sua falha de caráter graças ao talento artístico. Esse mesmo tema também levou Allen mais tarde a fazer um questionamento sobre o caráter duplo do artista — que era visto positivamente em Tiros na Broadway (Bullets Over Broadway, 1994), quando o gângster ignorante se revela um talentoso dramaturgo, e numa versão mais negativa em Poucas e boas (Sweet and Lowdown, 1999), em que o grande guitarrista ao final percebia que só tinha trazido sofrimento à pessoa que amava.

Com um desempenho admirável de todo o seu elenco, Hannah e suas irmãs mostra uma ciranda de amores dentro do núcleo familiar que o título explicita, num retrato em que os personagens apresentam bastante relevo. Todo o círculo gira em torno de Hannah, a irmã que é dominadora em todas as relações que estabelece, embora seja aparentemente frágil. É incrível como ela parece intimidar as pessoas com seu aspecto sofrido, humilde, sempre generoso. Talvez, entre os muitos papéis que Mia Farrow interpretou nos filmes de Allen, este seja o personagem que use mais claramente a sua fragilidade física e a força do seu olhar para impor um domínio em suas relações sociais – ela nunca foi tão assustadora quanto aqui. É por isso que seu marido, Elliot, sente a força desse domínio e age de forma covarde e resignada, preferindo o conforto ao confronto após a breve pulada de cerca com a irmã mais jovem e vital de Hannah, Lee. Esta, por sua vez, sabe fazer do momento de dor uma oportunidade de mudança e afirmação que lhe permite dar fim a uma relação já desgastada com um homem mais velho. Holly, a irmã mais instável e ao mesmo tempo mais livre e curiosa, com o passar dos anos aprende a domar o próprio temperamento e a insegurança. Ao final estabelece uma relação estável com Mickey, o ex-marido de Hannah que entrara numa profunda crise existencial, da qual só conseguiu sair ao se fascinar por um filme dos irmãos Marx. Esse personagem é o que traz ao filme seus melhores momentos de humor — não por acaso é interpretado pelo próprio Allen, que sempre foi um excelente comediante — e aprofunda de modo bastante interessante o seu personagem “neurótico” que já era conhecido do público desde os seus primeiros filmes e já ganhara contornos mais precisos em Noivo neurótico, noiva nervosa, Manhattan (1979) e Memórias (Stardust Memories, 1980).

Fechando o painel das relações, é no retrato das brigas de casal dos pais já idosos das três irmãs que fica clara a perspectiva que o filme constrói: a de um mundo em que as mulheres são forças devastadoras diante de homens imaturos; e que é um lugar em que, apesar de tudo, é possível apostar na permanência das relações amorosas, desde que haja paciência e compreensão com as falhas do outro. Este enredo familiar poderia ter se tornado um mero jogo de marionetes em outra ocasião, com personagens menos vivazes e atores menos sintonizados, mas Hannah e suas irmãs consegue delinear seus personagens com tanta força no seu tom agridoce que toda essa movimentação, de certo modo, parece ganhar vida. É assim que esse filme se torna uma das obras mais encantadoras da longa carreira de Woody Allen.


Texto publicado no catálogo da mostra A Elegância de Woody Allen, realizada em novembro de 2009 nos CCBBs de Rio de Janeiro e São Paulo.