18/11/2009

Dragão da Maldade e Santo Guerreiro

Luiz Carlos Barreto está sendo homenageado neste Festival do Rio, não exatamente por sua carreira completa, mas sim pela existência da sua histórica empresa, a L.C. Barreto, que foi criada há quarenta anos e produziu, de cara, O Assalto ao Trem Pagador. Que, aliás, não está na mostra, e eu acho muito significativo isso.

Na verdade, é evidente que é a carreira de Barreto que está sendo homenageada, mas o viés encontrado já mostra o perfil construído para sua imagem pública, imagem essa que, benéfica ou não para seus propósitos, acaba por diminuir de fato a figura histórica e a grandeza de Luiz Carlos Barreto.

Não? Pois, na verdade, O Assalto ao Trem Pagador é o primeiro trabalho de Barreto no cinema, já como produtor, mas, mais do que isso, também como roteirista. E não temos na mostra esse filme incrível. Da mesma maneira, o único filme em que Luiz Carlos Barreto assina a direção, Isto é Pelé, não está presente. E, pior ainda - aí sim chegamos ao ponto crucial –, os filmes fotografados por Luiz Carlos Barreto não estão na mostra. Vidas Secas e Terra em Transe.

A mostra daria conta, então, do trabalho de Barreto como produtor de cinema? Não, infelizmente não. Não há, por exemplo, a possibilidade de se ver lado a lado, no mesmo festival, O Padre e a Moça e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, que foram filmados na mesma época, em cidades próximas de Minas Gerais, ambos os filmes com a produção co-assinada por Barreto. Não temos também, por exemplo, Tudo Bem, de Arnaldo Jabor, e nem mesmo a cópia restaurada do maior sucesso de público da L.C. Barreto, Dona Flor e seus Dois Maridos. Só isso? Não. Mais sério que isso, a meu ver, é não termos também os filmes produzidos pela produtora Di Film, que foi uma empresa cooperativa de cinema, criada pelos sócios Barreto, Glauber Rocha, Nelson Pereira, Diegues, Roberto Santos, Leon Hirszman e outros, que pagou as contas de vários filmes – em grande parte dos casos através de empréstimos bancários. A L. C. Barreto decerto é uma empresa significativa, admirável e realmente mereceria uma mostra para que se entenda o que ela representa para o cinema brasileiro, mas acho evidente que a Di Film precisa desse tipo de revisão com mais urgência.

Se Luiz Carlos Barreto não se resume à sua empresa, como comentei antes, o problema grave dessa mostra é que, trazendo um retrato parcial de sua figura, acaba servindo apenas para sedimentar uma imagem limitadora, inclusive, de uma rediscussão dos rumos do cinema brasileiro. Pois, não tendo o Barreto roteirista e produtor de um filme urgente como O Assalto ao Trem Pagador, não tendo o Barreto produtor de filmes arriscados e sem concessões como O Padre e a Moça e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, não tendo o Barreto que assumia dívidas e mais dívidas em bancos para produzir seus filmes e, sobretudo, não tendo o Barreto fotógrafo que arriscou uma experiência revolucionária em Vidas Secas, nós não temos como perceber de fato o que é a dimensão histórica dele e terminaremos apenas relevando sua produção familiar recente, a meu ver a fase mais crítica de sua carreira.

E o que é essa carreira, senão uma das mais belas do cinema brasileiro?

E merece ela essa imagem, a do produtor de um filme eticamente problemático como O que é isso, companheiro?, um filme que busca traçar um perfil mais "humano" de um torturador e acaba por escolher como vilão do filme o líder comunista, um recalcado social de origem operária?

O que é isso, companheiro? e O Quatrilho são os dois filmes da L. C. Barreto que chegaram no tão discutível alvo, o de uma indicação ao prêmio de melhor filme estrangeiro no Oscar americano, e são provavelmente os filmes feitos por Barreto mais conhecidos por cinéfilos mais jovens ou mais esquecidos. E são os seus filmes representativos de uma fase de produção familiar – são dirigidos pelos seus filhos, e sua esposa cuida diretamente da produção – e intencionalmente comercial, são filmes feitos com a disposição assumida de "reconquistar o público", nas palavras do próprio Barreto. Se O Quatrilho tem o mérito de alcançar este intento – sem encontrar pressupostos maiores que um singelo elogio ao "jeitinho brasileiro" e ao acochambramento das situações e problemas estéticos mais graves que assumir sua herança televisiva –, O que é isso, companheiro? tem os problemas levantados no parágrafo acima apresentados de forma incômoda, até agressiva. Triste resultado de um olhar californiano (ou miamesco) sobre um período tão grave, pretendendo ser ambíguo (ou pretending to be...), o filme prefere observar as dualidades da classe média e vilanizar o lado que não pode mais se defender. Tornou-se o registro do uso da estrutura de melodrama popular para uma reconstrução de fatos históricos de forma, no mínimo, discutível – ora reinvindicando e ora renegando sua proximidade com a realidade retratada.

Sim, foi indicado ao Oscar, mas deveria ser esquecido, pelo bem de Barreto. Na verdade, Barreto é muito maior que qualquer prêmio que possa vir a receber, é muito maior que boa parte das pessoas já homenageadas com o Oscar, tão grande quanto o produtor italiano que recebeu um especialmente para si neste ano. Barreto fez filmes ruins? Ora, De Laurentiis também. E, se formos contar todos os filmes citados nesse artigos (excetuando-se os dois últimos) e somarmos à nata dessa mostra, temos um currículo de fazer inveja aos mais famosos produtores de cinema. Se ficou sem Oscar, talvez tanto melhor, assim podemos esquecer esta fase. Com bom-humor, Barreto mostrou sua inteligência ao se auto-ironizar e dizer que produziria uma comédia sobre um produtor louco para ganhar um Oscar. Deveria fazê-lo, e acho que eu estaria sendo impertinente se sugerisse cuidado na escolha do diretor.

De todo jeito, vale a pena ver – ou rever – com atenção aos filmes da mostra. Decerto para notarmos o processo de familiarização da produção da L. C. Barreto, mas também para notarmos como os filmes feitos especificamente por esta empresa tiveram, ao longo da sua história, uma ambição de diálogo com o público, alcançando às vezes grandes momentos. E quais são esses momentos?

Garrincha, alegria do povo, o filme mais antigo sendo apresentado. Na idéia de Joaquim Pedro, como já se disse, não são as jogadas de Garrincha que trazem alegria ao povo, ao contrário, é a alegria do povo em ir ao Maracanã e ver Garrincha que possibilita a ele fazer suas jogadas. Barreto não só produziu como também participou das filmagens. Como ele mesmo contou numa entrevista que será em breve publicada na Contracampo, o fotógrafo Mário Carneiro entregou-lhe uma câmera num dia de filmagens de um jogo no Maracanã e mandou ele e Glauber Rocha para o alto do estádio, para filmarem o jogo visto de cima. Entra para o folclore do cinema brasileiro a situação relatada por Barreto nesta entrevista, em que ele e Glauber estão no alto do Maracanã com uma câmera de cinema e não sabem fazê-la funcionar.

Bye Bye Brasil, certamente um dos pontos altos da carreira de Diegues, uma representação do artista mambembe buscando – e perdendo – seu público Brasil afora, e, mais que uma representação, um filme de viagens por um país que estava se dando conta de que estava mudando, não sei se para melhor ou para pior, estava ficando maior e mais complexo, mas decerto não estava ficando mais justo.

Inocência, também um dos melhores momentos de um artesão admirável, Walter Lima Júnior, o filme é lindo, um canto para um amor infeliz.

E, sobretudo, Memórias do Cárcere. O projeto de uma nova adaptação de Graciliano, que Nelson Pereira vinha acalentando já havia décadas, enfim produzido graças ao esforço de Barreto e do diretor. É um filme especialmente significativo, sabido é que trata-se do retrato de uma prisão produzido no final de uma ditadura. Talvez a mise-en-scène mais clássica entre os filmes de Nelson, Memórias do Cárcere atingiu sua audiência em cheio e tornou-se um desses filmes-marcos de uma cinematografia. Revê-lo e re-entendê-lo com um novo olhar não seria tarefa a se dispensar.

Além destes, vale notar filmes como Lição de Amor, do diretor (e montador) Eduardo Escorel, e Menino do Rio, de Antonio Calmon, figura central, anos depois, na criação de uma certa linguagem na televisão. Ambos os filmes têm seu charme e merecem a revisão.

(Apesar do horário de onze da manhã, apresentação única, não ajudar... essa mostra será reprisada?)

De todo modo, é preciso elogiar Barreto no que ele teve de melhor, inclusive para podermos repensar trajetórias para o cinema brasileiro diferentes da que ele se filia e luta para proteger nos dias de hoje. Porque, mesmo tendo agora uma imagem pública de defesa de um formato de produção caro, familiar e pouco inovador, Barreto tem o vistoso trunfo da força da sua carreira, ele é simplesmente o mais destacado nome da produção de cinema no Brasil já há décadas. Acho que enriqueceria muito nossa compreensão da história da cinematografia nacional comparar sua importância neste determinado momento do cinema brasileiro com a de Adhemar Gonzaga na sua época. Gonzaga também era reconhecido por todos como o maior produtor de cinema brasileiro, mas o cinema de sua época era menor que ele – Gonzaga era figura central absoluta de um determinado período, em que a produção mais constante era dos estúdios da sua Cinédia, que ele bem quis que se inspirasse nos moldes hollywoodianos. Hoje, Barreto é grande, mas será o primeiro a reconhecer que o cinema brasileiro é muito maior que ele. Na época de Gonzaga, uma imensa parte dos que queriam fazer cinema entrou em contato com ele, fosse através da Cinédia ou, antes, através da sua revista Cinearte – inclusive Humberto Mauro e Mário Peixoto. Hoje, Barreto precisa lutar com unhas e dentes para manter seu quinhão diante daquilo que nosso caro Secretário do Audiovisual chamou de "canibalização dos recursos".

São, mesmo que às vezes não percebamos, figuras fundamentais, admiráveis na sua obstinação apaixonada de viver de fazer cinema. Barreto poderia viver de televisão com mais tranqüilidade e menos desgaste, assim como Gonzaga decerto teria outras maneiras de ficar (mais) rico, mas é cinema que quiseram sempre fazer.

Numa aula dada em Niterói, diante de um aluno que reclamava das complicações de produzir cinema e se revelava desanimado ante a hipótese de abrir empresa produtora e viver de fazer acontecer seus projetos, Nelson Pereira saiu um pouco da sua calma habitual e esbravejou: "Mas não interessa! Tem que ir lá e fazer! Senão não dá!...".

É isso aí. Barreto foi lá e fez. Fez e aconteceu. A gente não pode esquecer que a lição que a gente tem que aprender é essa.


Texto publicado em setembro de 2001, por ocasião de uma homenagem feita a Barreto no Festival do Rio