29/11/2013

Um filme feérico

O enredo é simples: Amianto, a jovem sentimental que dá nome ao filme, interpretada pelo ator Deynne Augusto, é abandonada por seu amado e cai em desespero; nessa hora de sofrimento, ela é consolada por sua fada madrinha, fantasma de um amigo morto, que procura fazê-la ver que a perda de um amor não é o fim do mundo, seja contando fábulas ou convencendo-a a passear numa boate. No final da contas, Amianto tem nova chance de amar. Se assim apresentado o enredo parece simples, o filme sabe encontrar a potência desses sentimentos envolvidos, construindo uma atmosfera visual e sonora bastante elaborada, sem pudor de buscar o artificialismo, o efeito encantatório. Espécie de reinvenção estilizada dos contos de fadas, Doce Amianto (Brasil, 2013, 70 minutos), escrito, dirigido e montado em parceria por Guto Parente e Uirá dos Reis, é um filme surpreendente no cenário atual do cinema brasileiro. Mas é bem possível que continuasse sendo surpreendente em qualquer outro cenário pelo mundo afora. Essa talvez seja então a mais evidente qualidade que se apresenta: a capacidade de ser espantoso, raro. Em certo momento, torna-se inevitável tentar associá-lo a precursores imaginários, como uma maneira de tentar investigar como é que surgiu um fruto tão estranho lá pelas bandas do Ceará. A escolha que Amianto faz por um universo de paixão delirante é plenamente consciente e o filme apresenta isso de maneira bastante estilizada, com cores fortes e um ambiente sonoro que parece remeter a muitos lugares e nenhum específico. Esse conto de fadas hipercolorido e transformista assume a inspiração da literatura de Charles Bukowski, como revelam os créditos finais - e em certos instantes faz pensar num cruzamento tropical entre os filmes de Douglas Sirk e os de Kenneth Anger, ou o encontro possível entre os trabalhos mais marcantes de David Lynch e Pedro Almodóvar.

De toda maneira, uma trilha de supostas referências, embora possa ser justa e esclarecer certas origens, não dá conta da surpresa estética que o filme provoca. Por mais que se mostre constantemente disposto a ser ousado e debochado, ele faz uso dessa disposição como uma estratégia, um modo de proceder que serve diretamente à disposição de, pouco a pouco, dar veracidade afetiva àquele universo onírico. Não é por acaso que, marcado por um tom farsescamente romântico nas cenas da protagonista que lhe dá nome, a apaixonada Amianto, em certo momento o filme inclui uma fábula hiper-realista sobre marginalidade: é quando é apresentada a história da morte de uma pessoa que se vê expurgada da sociedade. A doçura de Amianto, princesa travesti, frágil e arrasada pela perda de um amor, consolada pela presença da sua fada-madrinha, é contraposta ali a um universo de medo, repulsa e violência. Assim, pouco a pouco torna-se claro para Amianto e para o filme que a escolha pelo universo de cores e ambientes estilizados representa um afastamento consciente de um mundo boçal, agressivo, ao qual a personagem procura contrapor uma existência gloriosa.

Comentei que este filme chega como um corpo estranho no panorama da produção contemporânea brasileira, mas isso é uma verdade parcial.  Já foi dito algumas vezes que a maior parte dos trabalhos mais juvenis e vigorosos da cinematografia brasileira recente é composta por produções dirigidas por cineastas veteranos. Já Doce Amianto, dirigido por dois cineastas da geração “novíssima” (Guto Parente, componente da produtora-coletivo Alumbramento, e Uirá dos Reis, poeta e músico que assina aqui seu primeiro longa metragem, em que trabalha também como ator), apresenta tanto na sua composição visual e sonora como na sua narrativa um grau de segurança e de consciência raro de se encontrar. E essas características mais raras do filme não impedem que ele sinalize - por sua própria existência (assim como ocorre com a sua protagonista) e graças ao desconcerto que provoca - novas trilhas para tornar mais complexo e interessante o cenário cinematográfico de que passa a fazer parte. Se o cinema esteticamente mais ambicioso feito no país, na maior parte das vezes, se caracterizou por um apelo ao realismo, em diversos graus, ou pelo menos a uma certa crueza desencantada e anti-romântica, Doce Amianto vem se juntar à parcela de filmes que, sem perder o encanto e a entrega sentimental, procura se construir em imagens e sons com um alto nível de elaboração e o uso escrachado de artifícios. Filme de personalidade forte, que marca seu lugar com estilo feérico, esse estranho Doce Amianto acaba abrindo um belo caminho para uma cinematografia que às vezes parece estar acomodada em sua alegada “diversidade”.


texto escrito para a edição 61 da revista Filme Cultura, lançada em dezembro de 2013