25/06/2013

Da matéria de que são feitos os sonhos

Entre as discussões mais comuns nos meios cinematográficos, há uma questão básica que muitas vezes é obscurecida: por que fazer os filmes? Essa pergunta fundamental, no entanto, foi relembrada por Eduardo Escorel num debate realizado na Mostra de Tiradentes – o texto foi publicado no seu blog em seguida, com o título “Desabamento e batuque” (disponível em http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/desabamento-e-batuque). O viés de Escorel naquela ocasião pode ter sido excessivamente generalizante, a ponto de ter recebido - e publicado no mesmo blog - um reparo bastante incisivo de Alberto Flaksman, num texto intitulado “O descontentamento de Eduardo Escorel” (disponível em http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/o-descontentamento-de-eduardo-escorel). Mas essa questão em torno do que move os filmes a serem feitos, se não é justa para “o cinema brasileiro como um todo”, se me permitem o uso da expressão, é válida – sempre - para cada filme que é produzido. Ela existe para cada cineasta (e/ou equipe) que faz um novo filme e, mesmo que o propósito seja somente o sucesso financeiro, cada um deles terá uma resposta. Se muitas vezes esta resposta pode ser banal, em outros casos ela é determinante para o que vem a ser o resultado final do filme. Certas obras ganham sua força sobretudo por esse desejo básico, essa sua ambição fundamental. O homem que não dormia pretende encarar o universo espiritual do seu lugar, com todos os traumas e dores, para promover o ritual de uma libertação vital. O sucesso nessa empreitada é certamente um dos seus méritos mais notáveis.

Muitos já falaram do fundamento materialista do cinema, uma arte que nos mostra os corpos em movimento. Mas a vida das pessoas nunca se reduz apenas à matéria física, em maior ou menor grau: os sentimentos, as crenças, as ideias, os sonhos, tudo isso que nos motiva tem origens que não se reduzem a meras relações físicas ou biológicas. É disso que trata O homem que não dormia: os corpos estão lá, suando, rindo, se masturbando e mijando, mas não estão lá desprovidos de espírito. E o filme, de certa maneira, acaba sendo formado com a forte presença dos quatro elementos fundamentais: o fogo que, numa manifestação divina, queima uma cruz; a tempestade torrencial que apaga o fogo, inunda as covas e permite a chegada do sono; a terra em que se enroscam os personagens e se enterram os tesouros ignorados; e, finalmente, o ar. Não há filme que não registre o ar, mas são bem raros os que, como O homem que não dormia, fazem isso com plena consciência do seu gesto. Sendo uma obra que investiga espíritos, o filme de Edgard Navarro sabe que a transparência do ar que nos cerca é tão fundamental quanto enganosa. O homem que não dormia capta esse ar com consciência do seu lugar histórico – que, com as características locais, os cheiros e os espíritos da Bahia, é retratado com cores ao mesmo tempo fortes e complexas. O sincretismo, o coronelismo, os mitos, a sensualidade, a violência e a religiosidade estão lá, mas não se reduzem a um espetáculo de macumba para turistas

Tal como acontece com o velho tesouro do Barão, o filme desenterra uma Bahia mítica, ainda viva em pleno início do século XXI – mas essa Bahia mítica ainda existe justamente porque permanece no ar em meio a novidades novas e velhas: da internet às procissões, os fantasmas mostrados pelo filme não permanecem parados, estão sempre inquietos, em movimento, sem sossego. É, de certa maneira, uma ironia com o típico tom idílico usado para retratar a vida interiorana: embora o bangue-bangue pertença à memória do passado, a pequena cidade moderniza seus costumes no interior das casas, mas repete as tradições para se apresentar para turistas estrangeiros. E mesmo quando recria o ritual do grupo de meninos que, em torno de uma fogueira, escuta um homem mais velho contar histórias, ou quando mostra uma cena de conversa num bar, o filme sempre se mostra profundamente marcado pelo seu lugar e seu momento histórico. Não é por acaso que ele retrata a dor de se libertar do fantasma de um homem poderoso, do tipo que, apesar de ser um assassino, tem seu retrato pendurado com destaque na igreja local. Tampouco é apenas acaso que, no início do século XXI, um filme da Bahia possa fazer o ritual de libertação do fantasma do velho coronel local.

O cineasta Edgard Navarro já havia feito filmes baseados em personagens clássicas (no super-8 Alice no país das mil novilhas), no budismo (no curta Lin e Katazan), nos mitos históricos (no curta Porta de fogo), no delírio (no clássico média-metragem Superoutro) e na memória (em seu primeiro longa, Eu me lembro). Seus primeiros filmes, cada um à sua maneira, procuraram transgredir ou recusar os padrões sociais, fosse por um viés lisérgico, libertário, terrorista ou suicida. Eu me lembro, por sua vez, retratava esse confronto através de um percurso memorialista, já com o tom de um movimento de maturidade. Dessa vez, o seu O homem que não dormia pretende tratar de uma diversidade de manifestações de espírito: das relações com o divino, das relações com os fantasmas passados, presentes ou futuros. Como o longa anterior, não é mais um filme que se satisfaça com a atitude de confronto. Mas O homem que não dormia só existe porque encara sem medo este confronto com o mundo metafísico e com a memória da violência (tanto do coronelismo como do estado ditatorial); no fim das contas, trata-se de um verdadeiro descarrego, um gesto afirmativo, um ritual de purgação e celebração para encontrar paz com os espíritos ainda presentes e fortes.

Não são poucos os filmes que falam de fantasmas, de relações com os deuses ou de eventos sobrenaturais de base religiosa. E O homem que não dormia se insere conscientemente nessa tradição, como uma espécie de versão tropical para filmes de gênero como O exorcista – há mesmo algumas cenas nitidamente tomadas pela atmosfera dos filmes de horror. Por exemplo, aqueles instantes que, sem cores, contam a história do temível Barão assassino; mas sobretudo as cenas da exumação do seu tesouro enterrado. É quando o Barão chega ao limite do seu confronto com o divino - e o filme chega ao auge da sua consequente afirmação da fé, neste instante em que ocorre uma espécie de gesto de purificação por que passa toda a narrativa do filme. Até este momento em que o tesouro é desenterrado e ocorre a manifestação divina que queima a cruz, a narrativa do filme, mesmo cheia de humor, vinha marcada por um amargor tanto espiritual quanto físico: de um lado os fantasmas eram amaldiçoados e o padre não tinha fé, enquanto do outro lado a violência dos poderosos era fatal (como no caso da esposa do Barão) ou profundamente traumática (como no caso do louco profeta Prafrente Brasil) – e mesmo a atividade sexual só consegue ser um modo de liberdade na relação a três.

Depois do ritual climático em que terra e céu entram em conflito - quando o baú do tesouro é desenterrado das profundezas, o fantasma do Barão enfrenta os céus (tornando-se a única testemunha além de nós, espectadores, da manifestação divina) e, enfim, desfalece e dorme – o filme se vê livre do amargor, mostrando o fim do processo de libertação dos personagens centrais: Prafrente Brasil não mais se sente atingido pelas lembranças zombeteiras do passado autoritário; o padre Lucas consegue falar à cidade sobre a sua fragilidade espiritual; e mesmo Me Esqueci, o fantasma do Barão, retrato ainda vivo do coronelismo que vagava sem dormir, consegue encontrar a paz e o descanso espiritual. Assim, O homem que não dormia encara os espíritos para ao final registrar e comemorar uma verdadeira mudança de ar. Não é pouca coisa um filme conseguir mostrar isso.




Texto publicado na Filme Cultura nº 58, lançada em janeiro de 2013.