13/01/2012

A bravura trágica




É tentador observar O bravo guerreiro como uma reflexão premonitória de Gustavo Dahl sobre sua vocação e seu destino. Como se sabe, poucos anos após ter dirigido o filme Dahl se afastou da produção de filmes e embarcou de cabeça no trabalho de organização e gestão das atividades cinematográficas. De certo modo, o filme sinaliza como a sua empreitada em favor da estruturação do meio audiovisual – da distribuição de filmes durante os anos da Embrafilme à criação de um órgão de regulação e fomento, a Ancine – foi movida por uma consciência ao mesmo tempo pessimista e teimosa. Por uma boa briga, indica O bravo guerreiro, vale a pena lutar até o fim, por piores que sejam as dificuldades e consequências.

O bravo guerreiro abre com uma epígrafe tirada de Assim falava Zaratustra, de Nietzsche: “Eu amo o que quer criar algo melhor que si mesmo e dessa arte sucumbe”. Essa citação dá o tom: a melancolia diante dos fracassos da realidade não serve de desculpa para a falta de atitude. O bravo guerreiro foi um dos filmes da chamada fase urbana do cinemanovismo, movido sobretudo pela questão apresentada nos anos anteriores por O desafio, de Paulo Cezar Saraceni, e Terra em transe, de Glauber Rocha: como deveria reagir o ativista pertencente à elite intelectual diante das mazelas da sociedade como a ditadura e a desigualdade social? No entanto, se os filmes de Saraceni e Glauber Rocha instauravam climas vibrantes, o filme dirigido por Gustavo Dahl tem outro tempo, adequado para a clareza da reflexão. Seja pela firmeza do olhar da câmera, seja pela contenção dos atores, há algo de marcial e solene no percurso do filme, como se estivéssemos presenciando uma via crucis definidora do nosso sistema de representação política e social. Não é por acaso que, de todos os filmes do período, é um dos que permanecem mais atuais: poderíamos trocar as siglas dos partidos inventados pelo filme (Partido Radical, Partido Nacional e Partido Reformista) por siglas atuais como, por exemplo, PSOL, PMDB e PSB. Se assim considerarmos, o filme parecerá tratar dos problemas que existem no meio político brasileiro de 2011.

Esse panorama pessimista e militante, ao mesmo tempo descrente e voluntarioso, é apresentado em cenas criadas com sobriedade, sem espaço para excessos – até chegar o discurso final, que mostra como o tom reflexivo deve conduzir e se deixar tomar pela exortação, pelo desejo de ação. Esse tom melancólico e crescente é obtido não apenas pelos enquadramentos clássicos e pela duração dos planos, mas sobretudo por aquilo que esta conjunção permite: a forte relação cênica entre os personagens, apresentada pelos atores com uma notável força contida.

No início da trama do filme, o deputado Miguel Horta, o protagonista representado por Paulo César Pereio, está disposto a sair de um partido de esquerda radical para ser aceito por outro, governista, de feição mais conservadora e ambígua. Sua percepção é que, enquanto ficar solitário no pequeno partido de oposição, nunca terá força para fazer serem aprovados os seus projetos que visam promover maior justiça social; sua aposta é que, participando de negociações dentro do núcleo de governo, terá mais chance de “criar algo melhor que si mesmo”, para usar os termos da epígrafe já citada. A trajetória que percorre ao longo do filme traz um gosto de derrota para o seu projeto – porém, se no final ele “dessa arte sucumbe”, não sucumbe derrotado, mas combatente que usa a voz como arma e está disposto até à morte por isso.

Através desse percurso, tendo o ambiente político brasileiro como cena, o filme consegue representar uma questão que surgiu no século XIX e se mantém presente: a falência da chamada "superação dialética" e a alternativa trágica. Num regime em que as tensões sociais são enfraquecidas, o conservadorismo dos poderes que prevalecem acaba tornando todo o ambiente doentio - e a renovação só pode vir do confronto entre forças que não se conciliam. Não é por acaso que a epígrafe do filme vem de Nietzsche, o primeiro formulador dessa crítica à dialética. No entanto, essa questão filosófica não é representada abstratamente, mas de forma concreta – como se diz no filme, a sociedade não é uma abstração, é um coletivo formado por pessoas que existem de fato. Horta é alguém que procura o seu espaço através da dialética da negociação política: “Conceder é melhor que perder”, é o que ele ouve de um aliado; “ninguém faz nada sem sujar as mãos”, diz ele em certo momento, mas “é duro ser realista”, como conclui mais tarde. O primeiro plano do filme já deixa claro o lugar que ele busca: ao ser apresentado por Augusto, velho cacique do partido governista, ele está na margem do quadro, mas com a perspectiva imediata de tomar o centro da cena. Augusto - personagem interpretado por Mario Lago com contenção e uma força impressionante - é uma espécie de versão sombria da maturidade de Horta: alguém que se resignou a negociar e brigar apenas para se manter junto ao poder, com suas benesses. É com ele que Horta, depois de descobrir que seus planos deram errado e seu projeto foi traído pelo seu novo partido, tem um diálogo que explicita a natureza dialética das negociações políticas: “Não se vai para frente só com concessões”, diz ele; “E no entanto é só assim que se vai para frente”, responde Augusto, afirmando que “sem o poder não se serve ao povo, sem o poder não se faz nada – e o poder tem o seu preço”.

Mas a essa altura Horta já percebe que as concessões nem sempre significam avanços. Ele conversa com o antagonista de Augusto, o ambicioso político de oposição Conrado (interpretado pelo recém-falecido Italo Rossi) – e é Conrado quem o faz ver que a pretensão de chegar ao poder para estabelecer novos caminhos tem um preço maior e mais difícil do que o das negociações comezinhas da política governista. Nas negociações políticas, os grupos minoritários que concentram os recursos financeiros têm mais poder de pressão do que os outros. O governismo sempre é conservador, é sua forma de sobrevivência. A dialética da movimentação política sofre com a disparidade de forças: a síntese não apresenta o equilíbrio, mas o predomínio de quem domina o poder. Sendo assim, há momentos em que não existe margem para negociações: é preciso fazer escolhas e buscar a raiz dos objetivos. Massacrado pela negociação conciliatória e conservadora de Augusto e desprezado pelo populismo messiânico e arrogante de Conrado, Horta abandona a esperança melancólica que o fazia agir como um “pragmático”. A partir daí, faz a sua escolha: volta ao sindicato e, através de um discurso em que reconhece a falência do seu projeto de negociação, insufla os trabalhadores a partirem para o confronto através de uma greve geral. Até pouco antes ele apostava que, em nome das transformações, todas as negociações podem ser justificadas; no entanto, Horta acaba por ser render às evidências de que, quando as forças em jogo são diametralmente opostas, não há espaço para concessões em busca das dialéticas, somente é possível o bom combate. “Só a luta salva. Só a coragem, e até mesmo a coragem de morrer, faz de um homem homem”, diz ele, usando as palavras como armas à beira do suicídio. Filme de reflexão focado na ação, O bravo guerreiro aponta que certos combates são permanentes, não conseguem alcançar nenhuma síntese historicamente justa. Consciente disso, recusa-se a sucumbir.


artigo publicado na Filme Cultura nº 55, lançada em dezembro de 2011

A consciência do olho, da disposição e da cena

Embora o termo de origem francesa mise-en-scène seja muito usado por críticos e cinéfilos no Brasil e mundo afora, não é fácil precisar o seu sentido. O mais comum seria traduzi-lo como encenação, mas há um aspecto fundamental no verbo flexionado “mise”. A tradução literal, por-em-cena, nos ajuda a lembrar que há escolhas em jogo - mais do que encenar um texto previamente escrito, é preciso definir o que é apresentado - o que o filme permite ver e ouvir. A forma de apresentar a cena, a disposição das informações e a perspectiva do olhar tornam claras as intenções de cada filme, aquilo que move cada um deles - são os gestos que os definem, sejam filmes narrativos de ficção, documentais ou não-narrativos. Jacques Aumont, em certo ponto do seu livro “O cinema e a encenação”, nos relembra que a “cena” do cinema não se reduz à cena do texto teatral, mas à disposição visual e sonora dos elementos cinematográficos: trata-se de “por-na-tela”. À primeira vista uma ideia vaga o suficiente para valer ao gosto do freguês - é o que acontece, de certo modo, com a versão francesa (e é o problema que, no seu livro, Aumont consegue dimensionar).

Vista segundo uma certa tradição, a relação entre o olhar e isso que se costuma chamar de mise-en-scène é de oposição, uma oposição que diferencia o cinema documental do cinema ficcional: o documentarista é aquele que seleciona um objeto para observar, enquanto o ficcionista é aquele que cria uma cena, uma sucessão de acontecimentos articulados entre si. No entanto, os filmes feitos em nossos dias têm à disposição pontos de partida mais complexos, que compreendem os enlaces e paradoxos de ambas as posturas. Vários documentários tornam claro para quem os assiste que provocam cenas diante de si (como se vê por exemplo nos filmes de Eduardo Coutinho, mais claramente em Jogo de Cena e Moscou). E as ficções, por sua vez, podem explicitar determinados aspectos cênicos que não são inteiramente controlados (tanto os registros de pessoas e ambientes reais como o recurso ao improviso dos atores, por exemplo) ou podem criar dobras da cena, dando a impressão de registrarem cenas dentro de outras cenas - ou a partir de outras cenas, tornando claras determinadas referências históricas e estéticas. Se hoje alguém pode acusar o cinema de decadência, depois de um percurso de pouco mais de uma centena de anos, essa decadência certamente não ocorre por falta de conhecimento ou reflexão sobre a própria história do cinema, sobre as linguagens, os estilos, os enredos, os movimentos e os objetos que o compuseram. Há cerca de um século, a compreensão imediata que se podia ter do estatuto dos registros e construções de imagens em movimento ainda podia justificar alguns equívocos pueris. Talvez a lenda sobre o pavor que os primeiros espectadores sentiram diante do trem do filme de Lumière seja apenas uma lenda, mas todas as crianças que um dia descobriram vampiros e monstros projetados em salas escuras sabem que o engano cinematográfico é cheio de verdade.

Essa verdade não é a mera reprodução da realidade das coisas de fora da tela: qualquer coisa no mundo, seja uma pessoa ou uma pedra, uma vez filmada, não “está” propriamente no cinema, ela continua no mundo. Ao registrar a pedra e a pessoa, a câmera cria outras coisas: suas imagens. A imagem inventada ganha existência própria, torna-se algo em si - esse fundamento moderno das artes foi apontado primeiro pela pintura, ainda no século XIX por Cézanne, depois de uma forma bem explícita no célebre quadro “Isto não é um cachimbo” de René Magritte. No entanto, essa existência própria não apaga a dívida que as imagens têm das coisas do mundo. A clássica distinção proposta por André Bazin entre os cineastas “da imagem” (como os expressionistas) e os cineastas “da realidade” (como os neorrealistas) torna clara esta separação entre imagens e mundo, mas obscurece os pontos de fricção: um filme que pretenda retratar “a realidade” se vê instado a apresentar imagens “justas” do que filma (algo já ironizado por Jean-Luc Godard numa frase célebre: “não uma imagem justa, mas justamente uma imagem”); e um filme preocupado com a organização dos elementos audiovisuais, se não investir na pura abstração (como alguns exemplares da chamada vanguarda), estará sempre se remetendo a coisas e percepções do mundo, nem que seja como metáfora ou ironia, nos sentidos amplos que se podem dar ao velho conceito aristotélico de mimese.

Esses pontos de fricção entre as imagens e o mundo deixam evidente qual é o laço que não permite que se afastem, no cinema, o olhar e a cena: é a propriedade que a imagem tem de apresentar os indícios evidentes do pedaço de mundo registrado. Como já se disse, tanto a cena inventada sempre faz uso de aspectos reais como o recorte de olhar gera mudanças na percepção das coisas e mesmo nelas próprias. Os usos possíveis do que se conceituou como dispositivos, os gestos estruturantes que definem conceito e procedimentos de um filme (e podem ser os mais variados, como duração determinada do plano ou modo de movimento da câmera, por exemplo), derivam de uma crise dessa separação, uma crise de desconfiança, desconfiança constante tanto nas ficções como nos documentários. Essa crise, de certo modo, provocou os temores tão falados sobre fim da cinefilia, fim da encenação ou fim do olhar - ainda hoje, numa época em que, graças a várias inovações tecnológicas, os filmes seguem sendo feitos em ritmo de produção e difusão contínuas e crescentes. Mas o indício claro dos filmes sendo feitos, para os mais temerosos, não comprova a sobrevivência da arte do cinema (ou, pelo menos, não daquela arte).

A atenção dada aos aspectos de organização a partir desses ditos dispositivos, sobretudo em filmes recentes, mas também nas estruturas de filmes anteriores ao uso do conceito, parece ser um indício da disposição em fazer um outro movimento para resolver essa crise de desconfiança e tornar indistintos olhar e mise-en-scène. Desse modo, a relação que cria entre o espectador e as imagens apresentadas se pretende mais explícita e consciente: o dispositivo dá a regra - que pode ser subvertida, mas é fundamentalmente clara. Desse modo, com regras visíveis estabelecidas para o registro audiovisual, o espectador pode acreditar que vê claramente naquilo que o filme apresenta quais são os aspectos previamente definidos e o que é real (e, é claro, ele também pode ser novamente enganado pelo jogo da ficção narrativa). Pode ser por essa razão que os filmes explicitamente orientados por dispositivos tenham parecido tão interessantes para críticos, estudiosos e novos realizadores nos últimos anos.

Esta preocupação, no entanto, de certo modo se marginaliza cada vez mais no universo da produção cinematográfica - talvez sem chance de opção, uma vez que o pólo de indústria rentável fica cada vez mais distante dos circuitos de “arte e ensaio”. É certo que ainda podem ser feitos grandes filmes a partir de olhares do mundo (vejam-se, por exemplo, os documentários recentes de Werner Herzog), a partir de encenações clássicas ou inovadoras (dos filmes de Spike Lee aos de Pedro Costa, talvez centenas de cineastas dos dias de hoje pudessem ser mencionados) e a partir de dispositivos rigorosos ou subvertidos. Há inclusive os filmes que conseguem compreender e somar esses gestos de invenção, unindo cenas planejadas a olhares históricos e dispositivos de registros (F for Fake, de Orson Welles, Close-up, de Abbas Kiarostami, e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, são alguns exemplos de casos notáveis). Mas, se antes a indústria garantia espaço amplo para a difusão e renovação dos modos de encenação cinematográfica, hoje isso parece se tornar raro. É certo que o uso de linguagem cinematográfica inteligente e sofisticada nunca foi de fato algo necessário para o sucesso comercial de um filme, mas a escala gigantesca de publicidade que o cinema do star system e dos blockbusters ganhou tem tornado a indústria, nos últimos anos, cada vez mais acomodada à reprodução descuidada e apressada de modelos de sucesso. Mas não vou fazer desse texto um alerta pessimista: tanto no centro da grande indústria como nas suas bordas mais visíveis eventualmente surgem filmes bastante fortes e alguns cineastas de talento conseguem se estabelecer.

O problema pode se tornar mais evidente, no entanto, nos meios em que se procuram desenvolver protótipos de indústria de filmes, tal como no Brasil das últimas décadas. Nesses casos, o esforço de reprodução de modelos industriais externos ainda provoca alguns resultados catastróficos de filmes pretensamente “de grande público”. O apuro técnico dos filmes recentes de grande porte parece tentar exorcizar o velho fantasma da precariedade que caracterizou tantos filmes desde as chanchadas, mas a disposição para imitar modelos com certa grosseria parece se repetir, se não por pobreza financeira, devido possivelmente ao receio ou preguiça de recriar os modelos. Isso é visível em boa parte das comédias e demais filmes de grande público recentes - excetuando-se os realizadores mais experientes, na maior parte dos casos, e o caso raro dos dois Tropa de Elite. Afora estes, nos melhores casos podem ser vistos filmes que surpreendem por sustentar suas opções com dignidade (como Nosso lar) e, noutros casos, piadistas parecem ter tomado o lugar dos atores de comédias. Ou os filmes parecem tratar atores como piadistas, o que não é diferente - e talvez seja esta uma definição possível para a disposição dominante nas comédias atuais. Trata-se, sobretudo, de um problema de ambição: a ambição de se adequar a um sistema de comércio não obriga necessariamente a abdicar de uma ambição de cinema. É uma escolha, uma disposição - que, com alguma competência nos aspectos ainda preponderantes, pode resultar em bom acordo com um público numeroso.

Seja como for, não se pode mais atribuir ao espectador das salas de cinema hoje, depois de mais de um século de história, a ingenuidade de não reconhecer olhares, encenações e construções nos filmes que assiste. No universo das salas de cinema dos dias de hoje, não seria justo dizer que as pessoas do público não sabem o que estão comprando, sejam coleções de efeitos especiais ou neochanchadas. Ninguém permanece acreditando por toda a vida nos vampiros e monstros que viu “de verdade” na infância. É uma teoria bastante defensável sugerir que o ensino das regras básicas da linguagem audiovisual para os jovens pode evitar vários usos de má-fé (tanto no jornalismo como na propaganda), mas chega a ser difícil acreditar que, por ignorância, uma pessoa do século XXI não sabe diferir o que é o mundo e o que é um filme. Nesse sentido, por mais que as bilheterias indiquem movimentos de manada, em que alguns poucos filmes são vistos por milhões, dentro dessas manadas há indivíduos que estão escolhendo o que vão fazer com seus tempos, suas atenções e percepções. Se o panorama genérico dos filmes nos sugere o desinteresse generalizado pelas artes da encenação, isso não indica que os espectadores não percebam (no mínimo de forma puramente intuitiva) as encenações e suas características.

A crença de que os espectadores têm conhecimento básico e capacidade intelectual para não confundir encenações e realidade é o que justifica o fim da censura. Isso se trata, antes de tudo, de compreender e respeitar o que é o espectador de um filme no início do século XXI. No entanto, como já foi dito no início desse texto, certos termos podem ser usados a gosto - e adquirem sentidos reveladores em outros contextos. Encenações políticas, gestos impeditivos e dispositivos jurídicos: para além de proibirem um filme péssimo como A Serbian Film (ironicamente, tão moralista e boçal quanto seus censores), estas tenebrosas movimentações sugerem que as relações de poder entre os espectadores e as imagens são menos livres e conscientes do que as relações de olhar.

Isso deixa evidente, mais uma vez, a forte conotação política que existe em reivindicar a consciência do olhar nos dias de hoje: a capacidade do espectador de, após mais de um século de cinema, poder observar e compreender as disposições e as cenas que compõem o seu universo audiovisual. Trata-se, a seu modo, de uma forma de alfabetização. Ninguém precisa conhecer amplamente a história e os estilos de cinema para compreender conscientemente o fluxo de imagens, assim como ninguém precisa escolher ser um leitor parnasiano ou modernista para aprender uma língua. E a censura a filmes de ficção (mesmo os ruins) não se justifica justamente porque é como tratar a todos como analfabetos.


artigo publicado na Filme Cultura nº 55, lançada em dezembro de 2011

E agora, Neville? - entrevista com Neville D'Almeida

Você já contou que o início da sua carreira não foi fácil. Você chegou a ir para os EUA antes de fazer seu primeiro filme, não?

Eu fui para os EUA no dia 13 de março de 1964, antes do golpe militar. Eu tinha 22 anos e tinha passado pelo CEC, o Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte, onde eu tinha sido membro fundador do Centro Mineiro de Cinema Experimental. Foi lá que eu conheci o cinema de vários países do mundo, havia críticos como Cyro Siqueira e Jacques do Prado Brandão, além de pessoas da minha geração, como Geraldo Veloso, Guará Rodrigues e Carlos Alberto Prates Correa. Então eu fui para os EUA e fiz um curso de direção de cinema no New York City College, mas era muito ruim: os professores davam aulas sobre questões técnicas, como decorar a nomenclatura de planos médios, gerais e em close-up. Aquilo não me satisfazia, eu perguntei a um professor sobre os grandes cineastas do mundo, como Eisenstein, Fellini e outros, e ele me disse que o único cinema realmente importante era o de Hollywood. Aí eu percebi que foi no CEC que eu aprendi tudo que eu sei sobre cinema. Enfim, no final desse curso em Nova York eu dirigi um curta, That night on the bowery, inspirado no Quincas Berro d'água, do Jorge Amado. A gente filmou e montou em 16mm, mas eu nem cheguei a ver a cópia final. Eu voltei para o Brasil e fiz um curta-metragem chamado O bem-aventurado, que inscrevi no festival JB/Mesbla. O presidente do júri era o Nelson Pereira dos Santos, eu ganhei um dos prêmios. Mas depois não aconteceu nada - e aí, passado um tempo, eu voltei para Nova York, onde trabalhei como garçom. Numa noite, uma pessoa me chamou para atender uma mesa de brasileiros. Eu fui e nela estava o Nelson. Ele foi muito gentil e me falou para nos encontrarmos no dia seguinte. Aí ele me disse: “Neville, eu vou fazer Fome de Amor, ia filmar na França, mas agora o personagem é um brasileiro que trabalha como garçom em Nova York. Você pode organizar a filmagem para mim aqui e ser meu assistente de direção.” Foi uma felicidade muito grande. No ano seguinte eu voltei ao Brasil e fiz meu primeiro longametragem, Jardim de Guerra. Que foi proibido e jamais foi exibido. Depois fiz um segundo filme, Piranhas do Asfalto, que também foi proibido. Entre 1966 e 1977 eu fiz cinco filmes e todos foram proibidos, nenhum deles passou. Isso só mudou quando eu fiz A dama do lotação. Mas nunca fiz um plano de cinema sequer para agradar a ditadura ou quem quer que seja. Me diziam: “Não faz esse nu com luz acesa, faz no escuro, assim não pode!” Mas eu dizia que a ditadura ia passar e eu ia ficar. Por causa disso, perdi muito dinheiro meu e de vários amigos.

E onde estão as cópias dos primeiros filmes?

Só sobraram Jardim de Guerra e Mangue Bangue, esse numa cópia encontrada recentemente em Nova York. Piranhas do asfalto tem uma cópia que foi para Paris e nunca mais voltou, e os negativos foram destruídos numa enchente que houve na Líder. No Brasil não existe política de preservação de verdade. O cineasta precisa morrer para que comecem a se preocupar em preservar os filmes.

Como você e Hélio Oiticica se aproximaram?

O Jardim de Guerra foi proibido, mas a gente fez uma sessão secreta no laboratório, aí o José Celso Martinez Correa e Wally Salomão foram e levaram o Hélio. No final ele veio me dizer que tinha adorado, que era a primeira vez que ele tinha visto projeção de slides num filme. Aí nós saímos todos juntos, ficamos a noite inteira conversando sobre arte, invenção, fazendo planos, sonhando... Naquela noite mesmo eu e o Hélio combinamos de fazer um trabalho juntos, uma união entre o cinema e as artes plásticas. Daí veio o Quasi-cinema e as Cosmococas. Isso é a arte contemporânea, quando ela sai da parede, da pintura e da escultura e se une a outras artes. Depois nós combinamos de fazer um filme juntos, chamado Mangue Bangue, mas o Hélio ganhou uma bolsa e foi para Nova York, aí eu dirigi o filme sozinho.


Seus filmes não amaciam - todos têm uma dose de agressividade que é fundamental para eles. O cenário de hoje dá espaço para isso?

A realidade é brutal, então meu cinema é brutal e delicado, mas não tão brutal quanto a realidade. Hoje eu tenho mais de cem filmes rodados em digital e ainda não montados, muitos documentários sobre vários assuntos, como a Daspu, a Parada Gay e outros. Hoje as câmeras digitais permitem que a gente possa fazer filmes como o lema do Glauber, “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Mas é preciso ter idéias na cabeça, porque às vezes eu vejo algumas porcarias em documentários aplaudidos, como zooms e movimentos de câmera mal-feitos, aí eu pergunto por que fazem assim e me dizem que não tem problema porque é feito em vídeo. Mas é tudo a mesma coisa, do vídeo ao cinemascope: é preciso ter linguagem cinematográfica. Às vezes parece que os jovens cineastas estão preocupados com a lei de incentivo, o patrocínio, fazer filmes parecidos com os de Fulano ou Beltrano, o sucesso aqui ou ali... Isso poderia ser saudável, mas aí o cara acaba pensando só em histórias que se encaixam nisso tudo. Se o sujeito está disposto a fazer alguma coisa no filme para agradar o patrocinador, ou se deixar de mostrar alguma coisa no filme porque o público vai reagir e a burguesia vai ficar preocupada, é melhor ir para a televisão fazer novelas. Tem muito jovem fazendo filmes velhos e muito velho fazendo filmes jovens. Mas isso não acontece só no cinema, acontece em todas as artes atualmente.



Filmes-faróis:

- Rio Babilônia

Eu nunca vi nada como Rio Babilônia. O Rio de Janeiro sempre era filmado de forma tímida, e esse filme tem de tudo.

- O Encouraçado Potemkim

Pela força dramática e pela montagem paralela do Eisenstein. É uma coisa espetacular, de tirar o fôlego, e ao mesmo tempo é um filme político.

- Cidadão Kane

É um filme que me emociona muito por causa do Rosebud: é sobre a infância perdida.

- 8 e ½

É a história de um diretor louco, em crise e sem saber o que fazer. Acho que essa é a história de todos os diretores de cinema conscientes.

- A doce vida

É a vida que todo mundo queria viver naquela época: a Itália dos artistas, mulheres lindas, intelectuais, festas... O filme é ingênuo, bobinho: não tem droga, não tem crime, não tem travesti, não tem nada. Mas é genial.

- A dama do lotação

É um filme revolucionário. Foi um dos primeiros filmes no mundo a mostrar o desejo da mulher, apresentando uma personagem que é ativa no sexo.

- Un chant d'amour

Acho que é o maior de todos os filmes. A cena de um preso enviando uma rosa para o outro é maravilhosa.

- Terra em transe

Essa mistura que o Glauber fez da alma carnavalesca com Villa-Lobos foi uma coisa muito forte para todos nós que queríamos fazer cinema no Brasil naquela época.

- Ivan, o terrível

Aqui é o outro pólo do Eisenstein. A cena de multidão com trinta mil figurantes ainda é uma das mais impressionantes da história.

- Limite

O Mário Peixoto foi um inventor, é um absurdo que não tenham dado condições para ele fazer outros filmes. Limite é poesia em forma de filme.

- O anjo exterminador

É incrível a capacidade do Buñuel em fazer o filme todo dentro de uma casa. O Hitchcock já tinha feito isso em Festim Diabólico, mas o Buñuel vai além, porque traz uma dimensão existencial a essa reclusão. Ele trata das frustrações das pessoas, é fantástico.


publicada na Filme Cultura nº 54, publicada em maio de 2011

Os corpos e espíritos da época

Como já foi apontado em muitas análises sobre a pós modernidade, o ambiente cultural da nossa época tem como característica uma desconfiança com relação aos conceitos de originalidade e inovação. As transformações sociais e culturais não deixam de acontecer, nem modos novos de lidar com circunstâncias novas deixam de surgir e se instituir devido a essa descrença nas mudanças, mas estamos próximos demais da memória fantasma de uma época em que eram notáveis os movimentos de renovação - sobretudo como foram as décadas de 1920 e 1960, mas como começou a acontecer em meados do século XIX e teve diversas manifestações até algum momento dos anos 70. Daí em diante, as discussões sobre o que é este momento posterior à modernidade se difundiram por conta da mudança de ambiente cultural, devido aos sinais de esgotamento radical dos movimentos vanguardistas sinais; neste novo momento, as idéias, as discussões, as crenças e as obras - enfim, o espírito do tempo -, tudo isso é marcado pela presença de uma forte consciência histórica, tão presente que impede a possibilidade de ruptura. E os gestos de rompimento estético ainda precisam sobreviver à epidemia de historicismo, uma vez que correm o risco de serem vistos como “repetições” do que foi feito ou do que se faz em outros lugares, cabendo aos críticos buscar rótulos compatíveis em algum livro velho. Para mencionar um exemplo óbvio, qualquer forma narrativa que subverta a ordem lógica da natureza recebe a alcunha de “surrealista”, mesmo que não tenha nada a ver com os princípios da escrita automática de André Breton e seus comparsas.

O movimento de “liderança” que foi exercido pelas ditas vanguardas (já clássicas) do século XX foi a de romper com modelos estabelecidos. Para compreender por que isso não se mostra tão frequente no nosso tempo, pode ser de boa ajuda lembrar qual era o contexto histórico que as provocou. Os artistas da chamada vanguarda oscilaram entre o fascínio e o horror à modernidade, como já apontou Octavio Paz. Essas vanguardas ocorreram em seguida ao século em que se estabeleceram os modelos de uma arte burguesa - que em muitos casos se conciliava com seus precursores do período aristocrático (como nos casos de neoclassicismo), e em outros casos se opunha e radicalizava em vários níveis contra os modelos clássicos, até chegar às rupturas vanguardistas. Em um trecho da sua Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe diz que “a verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força incomum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Podemos desconfiar dos excessos do tom racionalista que caracteriza o texto de Poe, mas é certo que o gesto de ruptura precisa haja um ou mais modelos que possam ser confrontados.


Naturalmente, isso não aconteceu de forma idêntica em cada uma das artes. No teatro, os registros de ruptura com os modelos tradicionais acontecem somente no final do século XIX. O mesmo aconteceu com a música, em que as experimentações românticas eram cuidadosamente calculadas dentro do regime harmônico herdado do classicismo, conforme se percebe em casos modelares como os de compositores alemães e italianos. Já a pintura se manteve pretensamente realista até sofrer a concorrência dos registros fotográficos: o início do impressionismo acontece na década de 1870, quando tem início a era das vanguardas. É a literatura que se difere um pouco entre as artes: quando estavam se definindo as formas do romance burguês, ainda sobrevinham ruídos da crítica irônica às narrativas do período aristocrático feita pelo Marquês de Sade. Não é por acaso que Sade foi considerado por estudiosos como Michel Foucault como o primeiro escritor moderno, aparecendo antes mesmo de existir um modelo burguês a ser rompido. Na verdade, a paródia, crítica irônica aos modelos, podia ser percebida já em obras célebres do período barroco, como o Dom Quixote de Cervantes... Seja como for, a seu modo a literatura precisou ser moderna “antes da palavra”: para escrever, foi preciso criticar, romper e recriar os modelos, sem o empurrão de qualquer aparato de registro tecnológico (tal como aconteceu com a pintura e com a música). Isso no caso da escrita em prosa, pois a poesia foi talvez mais radical: os poetas da sociedade burguesa desde o princípio são poetas da ruptura, parente da revolução.

Se a literatura da era burguesa teve desde o princípio essa chama crítica e experimental, muito se deve às intuições dos precursores, mas algo também se deve a uma natureza específica do texto escrito: os letrados eram, em sua maior parte, pessoas mais abonadas. Sempre soará grosseiro afirmar que a produção artística mais experimental é destinada apenas a pessoas mais ricas e/ou eruditas - qualquer um pode ter sua sensibilidade provocada por obras inovadoras. No entanto, o ponto incômodo que não se pode negar é outro: não é qualquer um que pode se dedicar à vanguarda. A experimentação moderna não depende apenas da existência de modelos a serem criticados e reinventados - depende também de sustento financeiro dentro deste sistema de crítica e reinvenção. Um criador de talento pode ser levado pelas circunstâncias a querer agradar o público de todas as maneiras pela justa motivação de manter o seu ganha-pão. O recurso aos modelos já estabelecidos é comum nessas circunstâncias.

O cinema surgiu quando todas as outras artes viviam o calor dos movimentos de ruptura com seus modelos e convenções. As heranças que o cinema guardou de outras artes, como a literatura e a pintura, foram fontes fundamentais para a atitude experimental que existiu na sua base. Se parece hoje natural que se tenha estabelecido uma tradição dominante de linguagem narrativa (cujas convenções podem ser constantemente reformuladas), é preciso apontar que esses impulsos de crítica e experimentação tomaram parte de todos os períodos da produção cinematográfica, desde antes dos filmes de Griffith (vale mencionar o livro de Flávia Cesarino da Costa, O primeiro cinema - espetáculo, narração, domesticação, entre outros sobre o assunto). Já naquele princípio de século o ambiente de experimentação das outras artes era favorável a isso, e desde então o cinema intrigou a muitos daqueles que eram propensos a experimentações estéticas. Como apontou uma vez Alain Robbe-Grillet, já nos anos 60, “A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário”. Em vários momentos, o cinema foi visto como uma espécie de porta da esperança por quem pretendia fazer uma arte nova - algo que nem sempre vicejava, por razões financeiras ou logísticas.

O período agônico da arte de vanguarda fez-se ver sobretudo no final dos anos 60 e na década seguinte; chegou-se enfim a uma espécie de exaustão das rupturas. De repente, um outro ambiente se instalou. Não um “novo” ambiente, decerto, porque isso seria em si um paradoxo: como haveria um ambiente “novo” a partir da descrença em torno da idéia de originalidade? Seja como for, instaurou-se a fé na desconfiança.

A crença na experimentação de linguagem depende mais de uma espécie de confiança em si do que do conhecimento amplo das circunstâncias e tendências. Podendo ou não se basear em ampla erudição, e podendo se sair bem ou mal nas suas próprias pretensões, o experimentalismo é uma atitude que não depende senão de si. As conceituações formuladas pelos inúmeros manifestos vanguardistas nem sempre antecederam as obras - ao contrário, reduzir estas a aquelas é empobrecedor em diversas situações. Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determinada predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado das artes - e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.

Neste sentido, pode parecer natural falar do fim das vanguardas, uma vez que a idéia de vanguarda embute o conceito de progresso, de avanço - e, portanto, de ruptura consciente de um determinado contexto. No entanto, o que motiva a experimentação não é algo desta natureza. O próprio conceito de vanguarda é “clássico-narrativo” e racionalista demais, se for levado ao pé da letra. Mas a descrença na necessidade (e mesmo na possibilidade) de experimentação é um sentimento tão comum, nos dias de hoje, que pode ser diagnosticada como uma doença de muitos espíritos da nossa época.

Isto se torna mais grave (e, por outro lado, mais frágil) no espaço brasileiro. Nossa concepção de modernidade, como muitos já disseram, foi importada das agendas européias. O grupo do Modernismo de 22 - marco de um movimento vanguardista no Brasil - por falta de um imaginário prévio de país, precisou inventá-lo ao invés de rompê-lo. Nosso contexto de país gigante com formação colonial e socialmente desigual provocou paradoxos persistentes e intrigantes, definidos ao redor da “dialética entre o não-ser e o ser outro”, na expressão clássica de Paulo Emilio. Numa sociedade até então (e, em vários aspectos, até hoje) disposta a se enxergar a partir de modelos estrangeiros a serem imitados, Paulo Emilio apontou o dilema que moveu os dois pólos clássicos do dito modernismo: a busca mítica e antropológica por raízes a serem inventadas, em que a figura histórica de liderança foi Mário de Andrade, e a antropofagia oswaldiana, que se fortalecia devorando do outro seus modos (“só me interessa o que não é meu”, conforme o clássico Manifesto Antropofágico).

O paradoxo teve sua oportunidade de concretização em um determinado momento do que se poderia chamar contexto cultural brasileiro: se Oswald falava do “biscoito fino” que a massa experimentaria, a música fez acontecer esse fenômeno. Com a rádio e a modernização dos meios de difusão de música, consolidou-se uma era de ouro, uma forma modelar de “música brasileira”. A isso, sucedeu-se o biscoito fino que João Gilberto e seus parceiros de Bossa Nova prepararam: quebraram modelos e os reinventaram, fazendo uma arte moderna que, paradoxalmente, se caracterizava pelo rigor e pela contenção em pleno “país do carnaval”. Conforme já afirmaram tanto Caetano Veloso como Tom Zé, o sucesso de João Gilberto fez crer numa certa “vocação para a modernidade” do nosso país do futuro. Moderna, popular e massificada, a Bossa Nova sugeriu a uma nova geração que o caminho da negociação com a indústria poderia ser tão radical e inovador quanto o enfrentamento podia ser. Assim o tropicalismo fez um novo movimento na relação antropofágica: também “as massas” são um outro que provoca interesse. Nesta perspectiva, a inovação e a invenção são naturais em um espaço de circulação de obras e idéias que continua em processo de se consolidar em todo o país.

Isso não aconteceu com a produção de cinema. A modernidade era verde, a nova vanguarda amarela. As referências vanguardistas, sobretudo os cânones dos cinemanovistas e dos marginais, não têm a força fantasmática da Bossa Nova e da MPB que se seguiu. Talvez por isso o cenário musical, tão vigoroso, pareça ter dificuldades ainda maiores para indicar movimentos de renovação do que a produção de cinema. Esta, subvencionada pelo mecenato, ainda tem um quê de pré moderna, já que seus modelos mal se constituem - com a possível exceção de comédias de costumes, do ironicamente chamado favela movie e, claro, da chanchada. Chanchada cujos sinais mostram alguma permanência, seja nas sessões de humor na televisão, seja na “incapacidade de copiar” modelos externos que alguns filmes seguem a mostrar. O chanchadesco, por natureza, é um humor que produz constrangimento, e não é por acaso que, em certas ocasiões, essa herança foi e é reaproveitada e reinventada por alguns dos realizadores considerados mais experimentais, do “cinema de invenção”, conforme a expressão do Jairo Ferreira.

A relativa ausência de modelos estabelecidos e consistentes acaba provocando esse curioso paradoxo: o espaço para invenções e reinvenções que recriem e consolidem novos modelos parece existir (como sempre) e, ao mesmo tempo, ser inatingível (talvez por não ter modelo forte a confrontar). A consciência histórica não tem efeito apenas nos estilos das obras, mas também na recepção a elas. Mas, como circunstâncias sempre guardam diferenças entre si, os modos de inventar se apresentam: para isso, como já disse, é preciso uma certa confiança na capacidade de inventar algo que não foi feito até então. Trata-se de uma certa disposição do espírito, até natural, uma vez que a existência se marca pela diferença e a mera repetição parece se tornar um eco do que já foi feito. Essa disposição atualmente é perceptível em alguns filmes de realizadores de várias idades. Mesmo que eventualmente se mostre travada por alguns cacoetes expressivos, ela sugere a chance de que o ambiente esteja passando por mudanças e as possibilidades de inovação estética possam provocar menos ceticismo e mais interesse. Mas esse movimento ainda precisa se mostrar marcante e incontornável para não se parecer com andorinhas de verão, como em outras ocasiões da produção de cinema no Brasil.
O movimento de “liderança” que foi exercido pelas ditas vanguardas (já clássicas) do século XX foi o de romper com modelos estabelecidos. Para compreender por que isso não se mostra tão frequente no nosso tempo, pode ser de boa ajuda lembrar qual era o contexto histórico que as provocou. Os artistas da chamada vanguarda oscilaram entre o fascínio e o horror à modernidade, como já apontou Octavio Paz. Essas vanguardas ocorreram em seguida ao século em que se estabeleceram os modelos de uma arte burguesa - que em muitos casos se conciliava com seus precursores do período aristocrático (como nos casos de neoclassicismo), e em outros casos se opunha e radicalizava em vários níveis contra os modelos clássicos, até chegar às rupturas vanguardistas. Em um trecho da sua Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe diz que “a verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força incomum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Podemos desconfiar dos excessos do tom racionalista que caracteriza o texto de Poe, mas é certo que o gesto de ruptura precisa haja um ou mais modelos que possam ser confrontados.

Naturalmente, isso não aconteceu de forma idêntica em cada uma das artes. No teatro, os registros de ruptura com os modelos tradicionais acontecem somente no final do século XIX. O mesmo aconteceu com a música, em que as experimentações românticas eram cuidadosamente calculadas dentro do regime harmônico herdado do classicismo, conforme se percebe em casos modelares como os de compositores alemães e italianos. Já a pintura se manteve pretensamente realista até sofrer a concorrência dos registros fotográficos: o início do impressionismo acontece na década de 1870, quando tem início a era das vanguardas. É a literatura que se difere um pouco entre as artes: quando estavam se definindo as formas do romance burguês, ainda sobrevinham ruídos da crítica irônica às narrativas do período aristocrático feita pelo Marquês de Sade. Não é por acaso que Sade foi considerado por estudiosos como Michel Foucault como o primeiro escritor moderno, aparecendo antes mesmo de existir um modelo burguês a ser rompido. Na verdade, a paródia, crítica irônica aos modelos, podia ser percebida já em obras célebres do período barroco, como o Dom Quixote de Cervantes... Seja como for, a seu modo a literatura precisou ser moderna “antes da palavra”: para escrever, foi preciso criticar, romper e recriar os modelos, sem o empurrão de qualquer aparato de registro tecnológico (tal como aconteceu com a pintura e com a música). Isso no caso da escrita em prosa, pois a poesia foi talvez mais radical: os poetas da sociedade burguesa desde o princípio são poetas da ruptura, parente da revolução.

Se a literatura da era burguesa teve desde o princípio essa chama crítica e experimental, muito se deve às intuições dos precursores, mas algo também se deve a uma natureza específica do texto escrito: os letrados eram, em sua maior parte, pessoas mais abonadas. Sempre soará grosseiro afirmar que a produção artística mais experimental é destinada apenas a pessoas mais ricas e/ou eruditas – qualquer um pode ter sua sensibilidade provocada por obras inovadoras. No entanto, o ponto incômodo que não se pode negar é outro: não é qualquer um que pode se dedicar à vanguarda. A experimentação moderna não depende apenas da existência de modelos a serem criticados e reinventados - depende também de sustento financeiro dentro deste sistema de crítica e reinvenção. Um criador de talento pode ser levado pelas circunstâncias a querer agradar o público de todas as maneiras pela justa motivação de manter o seu ganha-pão. O recurso aos modelos já estabelecidos é comum nessas circunstâncias.

O cinema surgiu quando todas as outras artes viviam o calor dos movimentos de ruptura com seus modelos e convenções. As heranças que o cinema guardou de outras artes, como a literatura e a pintura, foram fontes fundamentais para a atitude experimental que existiu na sua base. Se parece hoje natural que se tenha estabelecido uma tradição dominante de linguagem narrativa (cujas convenções podem ser constantemente reformuladas), é preciso apontar que esses impulsos de crítica e experimentação tomaram parte de todos os períodos da produção cinematográfica, desde antes dos filmes de Griffith (vale mencionar o livro de Flávia Cesarino da Costa, O primeiro cinema – espetáculo, narração, domesticação, entre outros sobre o assunto). Já naquele princípio de século o ambiente de experimentação das outras artes era favorável a isso, e desde então o cinema intrigou a muitos daqueles que eram propensos a experimentações estéticas. Como apontou uma vez Alain Robbe-Grillet, já nos anos 60, “A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário”. Em vários momentos, o cinema foi visto como uma espécie de porta da esperança por quem pretendia fazer uma arte nova – algo que nem sempre vicejava, por razões financeiras ou logísticas.

O período agônico da arte de vanguarda fez-se ver sobretudo no final dos anos 60 e na década seguinte; chegou-se enfim a uma espécie de exaustão das rupturas. De repente, um outro ambiente se instalou. Não um “novo” ambiente, decerto, porque isso seria em si um paradoxo: como haveria um ambiente “novo” a partir da descrença em torno da idéia de originalidade? Seja como for, instaurou-se a fé na desconfiança.

Entretanto, a crença na experimentação de linguagem depende mais de uma espécie de confiança em si do que do conhecimento amplo das circunstâncias e tendências. Podendo ou não se basear em ampla erudição, e podendo se sair bem ou mal nas suas próprias pretensões, o experimentalismo é uma atitude que não depende senão de si, a partir do momento em que define a que deve se opor, conforme nos lembra o texto de Poe. As conceituações formuladas pelos inúmeros manifestos vanguardistas nem sempre antecederam as obras – ao contrário, reduzir estas a aquelas é empobrecedor em diversas situações. Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determinada predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado das artes - e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.

Sendo assim, hoje pode parecer natural falar do fim das vanguardas, uma vez que a idéia de vanguarda embute o conceito de progresso, de avanço – e, portanto, de ruptura consciente de um determinado contexto. No entanto, o que motiva a experimentação não é algo desta natureza. O próprio conceito de vanguarda é “clássico-narrativo” e racionalista demais, se for levado ao pé da letra. Mas a descrença na necessidade (e mesmo na possibilidade) de experimentação é um sentimento tão comum nos dias de hoje que pode ser diagnosticada como uma doença de muitos espíritos da nossa época.

Isto se torna mais grave (e, por outro lado, mais frágil) no espaço brasileiro. Nossa concepção de modernidade, como muitos já disseram, foi importada das agendas européias. O grupo do Modernismo de 22 - marco de um movimento vanguardista no Brasil - por falta de um imaginário prévio de país, precisou inventá-lo ao invés de rompê-lo. Nosso contexto de país gigante com formação colonial e socialmente desigual provocou paradoxos persistentes e intrigantes, definidos ao redor da “dialética entre o não-ser e o ser outro”, na expressão clássica de Paulo Emilio. Numa sociedade até então (e, em vários aspectos, até hoje) disposta a se enxergar a partir de modelos estrangeiros a serem imitados, Paulo Emilio apontou o dilema que moveu os dois pólos clássicos do dito modernismo: a busca mítica e antropológica por raízes a serem inventadas, em que a figura histórica de liderança foi Mário de Andrade, e a antropofagia oswaldiana, que se fortalecia devorando do outro seus modos (“só me interessa o que não é meu”, conforme o clássico Manifesto Antropofágico).

O paradoxo teve sua oportunidade de concretização em um determinado momento do que se poderia chamar contexto cultural brasileiro: se Oswald falava do “biscoito fino” que a massa experimentaria, a música fez acontecer esse fenômeno. Com a rádio e a modernização dos meios de difusão de música, consolidou-se uma era de ouro, uma forma modelar de “música brasileira”. A isso, sucedeu-se o biscoito fino que João Gilberto e seus parceiros de Bossa Nova prepararam: quebraram modelos e os reinventaram, fazendo uma arte moderna que, paradoxalmente, se caracterizava pelo rigor e pela contenção em pleno “país do carnaval”. Conforme já afirmaram tanto Caetano Veloso como Tom Zé, o sucesso de João Gilberto fez crer numa certa “vocação para a modernidade” do nosso país do futuro. Moderna, popular e massificada, a Bossa Nova sugeriu a uma nova geração que o caminho da negociação com a indústria poderia ser tão radical e inovador quanto o enfrentamento podia ser. Assim o tropicalismo fez um novo movimento na relação antropofágica: também “as massas” são um outro que provoca interesse. Nesta perspectiva, a inovação e a invenção são naturais em um espaço de circulação de obras e idéias que continua em processo de se consolidar em todo o país.

Isso não aconteceu com a produção de cinema. Digamos que a modernidade era verde, e a nova vanguarda amarela. As referências vanguardistas, sobretudo os cânones dos cinemanovistas e dos marginais, não têm a força fantasmática da Bossa Nova e da MPB que se seguiu. Talvez por isso o cenário musical, tão vigoroso, pareça ter dificuldades ainda maiores para indicar movimentos de renovação do que a produção de cinema. Esta, subvencionada pelo mecenato, ainda tem um quê de pré moderna, já que seus modelos mal se constituem – com a possível exceção de comédias de costumes, do ironicamente chamado favela movie e, claro, da chanchada. Chanchada cujas características mostram permanência, seja nas sessões de humor na televisão, seja na “incapacidade de copiar” modelos externos que alguns filmes seguem a mostrar. O chanchadesco, por natureza, é um humor que produz constrangimento, e não é por acaso que, em certas ocasiões, essa herança foi e é reaproveitada e reinventada por alguns dos realizadores considerados mais experimentais, os do “cinema de invenção”, conforme a expressão do Jairo Ferreira.

A relativa ausência de modelos estabelecidos e consistentes acaba provocando esse curioso paradoxo: o espaço para invenções e reinvenções que recriem e consolidem novos modelos parece existir (como sempre) e, ao mesmo tempo, ser inatingível (talvez por não ter modelo forte a confrontar). A consciência histórica não tem efeito apenas nos estilos das obras, mas também na recepção a elas. Mas, como circunstâncias sempre guardam diferenças entre si, os modos de inventar se apresentam: para isso, como já disse, é preciso uma certa confiança na capacidade de inventar algo que não foi feito até então. Trata-se de uma certa disposição do espírito, até natural, uma vez que a existência se marca pela diferença e a mera repetição parece se tornar um eco do que já foi feito. Essa disposição atualmente é perceptível em alguns filmes de realizadores de várias idades. Mesmo que eventualmente se mostre travada por alguns cacoetes expressivos, ela sugere a chance de que o ambiente esteja passando por mudanças e as possibilidades de inovação estética possam provocar menos ceticismo e mais interesse. Mas esse movimento ainda precisa se mostrar marcante e incontornável para não se parecer com andorinhas de verão, como em outras ocasiões da produção de cinema no Brasil.



artigo publicado na Filme Cultura nº 54, publicada em maio de 2011

A cinefilia canibal dos filmes de Carlos Reichenbach

É comum que se aponte a influência forte da cinefilia sobre os filmes que Carlos Reichenbach dirigiu. O próprio Carlão costuma fazer isso desde o início de cada processo de realização, reconhecendo e mencionando a origem de cada uma das muitas referências usadas para criar os elementos cênicos e narrativos. Por exemplo, num longo depoimento sobre sua carreira escrito para a edição nº 28 da Filme Cultura, o cineasta fala sobre os filmes que o fizeram decidir trabalhar com cinema (no texto, ele menciona A estrada, de Oswaldo Sampaio, O tigre da Índia, de Fritz Lang, Outubro, de Sergei Eisenstein, Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, e Barravento, de Glauber Rocha), para em seguida contar que seu primeiro filme, As libertinas (dirigido em parceria com João Callegaro), na verdade foi feito basicamente sob a inspiração de um filme chamado Sexy Gang, “um clássico do cinema cochon” em que se sucediam cenas de strip-tease. Neste mesmo depoimento, ele aponta a influência decisiva de O bandido da luz vermelha sobre seu filme seguinte, Audácia; conta que Corrida em busca do amor foi inspirado nas comédias de Frank Tashlin e nos filmes para jovens protagonizados por estrelas como Sandra Dee e Annette Funicello; e enumera nada menos que cinco filmes como fontes de inspiração para Lilian M, relatório confidencial. São eles: Segredos de uma esposa, de Shohei Imamura, Alucinação sensual, de Kon Ichikawa, Insinuante e pecadora, de Yasuzo Masumura, Naked Kiss, de Samuel Fuller, e Viver a Vida, de Jean-Luc Godard. Apenas observando a diversidade dos filmes citados neste parágrafo, torna-se evidente a voracidade cinéfila de Reichenbach. Esse referido texto foi escrito por ele em 1978, e desde então o diretor só aumentou a sua aposta nessa relação canibal com todo tipo de cinema.

Essa relação não se manifesta apenas no espírito que os filmes vistos somam à sua produção. Para além dos filmes que dirigiu, Carlão é um cinéfilo em atividade social constante, seja como programador de sessões - o CineSesc, em São Paulo, realizada mensalmente a sua “Sessão do Comodoro”, composta por filmes pouco conhecidos que se caracterizem por uma certa inquietação, alguma radicalidade; seja como participante de fóruns de discussão; seja como escritor de um blog em atividade há quase uma década, com algumas mudanças de nome e endereço (a versão atual se chama Olhos Livres e pode ser lida em http://olhoslivres2.zip.net/ ), onde fala sobre filmes e compartilha obras raras.

No entanto, é preciso apontar que, para além da imensa rede de referências comumente apontada nos seus filmes, a consciência crítica que a cinefilia traz aos seus filmes é uma espécie de corda bamba em que eles se atiram em busca do equilíbrio. De certa maneira, é isso que os torna originais. Esse paradoxo não é incomum no cinema ou em outras artes - ao contrário, é frequente em boa parte daquilo que se costuma chamar genericamente de pós-modernismo. De todo jeito, aproximar-se dos filmes do Carlão através do mero reconhecimento das citações pode não revelar o que eles trazem de mais forte da cinefilia, que é essa relação crítica com a imagem construída. Um caso exemplar é o de Corrida em busca do amor: reconhecer uma origem genealógica do estilo do filme não vai ser a perspectiva mais rica, porque deixa de lado o aspecto mais vital dele, o de uma produção fundada no convívio de algumas relações pessoais e criativas e produzida num esquema financeiro de custo zero. Se não abrem mão da narrativa, seus filmes tornam infrutífera qualquer discussão sobre “realismo”; antes disso, a preocupação fundamental é com a ambientação e as relações entre personagens: o astral, a atmosfera, em suma, o lugar dos sentimentos. Nesses filmes, essa elaboração de atmosferas toma o lugar da encenação naturalista, afastando-os de uma relação estrita e fiel com o cinema de gênero que frequentemente lhe serve como base e ponto de partida. Sob esse aspecto, o caso mais claro é o de Lilian M - relatório confidencial, com sua transição paródica entre gêneros diversos: a percepção e uso de referências é apenas um ponto de partida, uma espécie de mcguffin do filme (mcguffin era o termo usado por Hitchcock para os elementos narrativos que pareciam ser centrais ao espectador, mas serviam apenas para dar andamento aos filmes). Atravessando o humor referencial, o percurso da protagonista revela uma narrativa agressiva a ponto de ser desconcertante. É através da elaboração de ambientes essencialmente cinematográficos que, pouco a pouco, se revela o desenho que o filme faz de um determinado universo real.

Nesse sentido, talvez os dois filmes fundamentais para definir o lugar da cinefilia, da revisão e reconstrução do cinema no trabalho de Reichenbach são Alma Corsária, de 1994, e Falsa Loura, de 2008. Anos atrás, João Carlos Rodrigues apontou que os filmes de Reichenbach podem ser divididos em “masculinos” e “femininos”. Essa separação nos ajuda a ver que os dois filmes que mencionei representam, cada um, um destes pólos. Alma corsária é um filme jovial, descaralhado mesmo - como só outro filme “masculino” do Carlão conseguiu ser: Império do desejo. Como que ditando um ritmo próprio ao filme, algumas cenas e imagens insólitas se misturam à história dos dois amigos que lançam, juntos, um livro de poesia. Esse aspecto referencial e gozador fica explícito, por exemplo, quando a narrativa faz uma pausa para que seja entregue um Oscar a um ator representando o cineasta Samuel Fuller; vários trechos do filme também podem ser lembrados: outro exemplo claro é quando um personagem tem pesadelos com imagens de grandes pensadores. Antigamente se costumava dizer que nas chanchadas brasileiras havia os momentos “pára-pra-cantar”, ou seja, momentos em que a trama de humor parava para que se cantassem algumas canções. Com sua encenação expressiva e não realista, a seu modo Reichenbach é um cineasta de filmes musicais - e em Alma Corsária, como em alguns outros, isso se encaminha para uma relação bastante forte com a atitude recriativa das chanchadas. Esse mcguffin chanchadesco permite ao filme que construa vários panoramas afetivos entre seus personagens, existindo em função de dois sentimentos fundamentais: a amizade e o deslocamento no mundo.

Por sua vez, Falsa Loura, filme “feminino”, desde o princípio nos mostra a construção de imagem e movimento, com a trama em torno do embelezamento da personagem Briducha. Ao contrário do que acontecia com a Maria de Lilian M, que se via perdida no mundo, encarava a prostituição como uma parte do seu percurso e assumia o papel sem pudor, Silmara tem seu espaço social consolidado e a prostituição é um fantasma sombrio. Que, no entanto, vai se realizar justamente por ela acreditar num mundo de sonho e se entregar a ele, abandonando momentaneamente a consciência de seu lugar histórico. Nesse sentido, Falsa Loura se assume como a versão anti-romântica da Gata borralheira e de todas as suas versões em forma de divertimento feitas pelo cinema. A construção de um mundo artificial e encantado, que o filme apresenta a partir de certo ponto, termina por desmoronar e revelar à Cinderela decepcionada a que classe e a que lugar ela pertence.

Assim, neste filme se torna definitivamente claro, como já acontecia em Alma Corsária, que a atmosfera fortemente elaborada, construída, cinematográfica, torna-se um modo ao mesmo tempo anti-romântico e anti-naturalista de encontrar a verdade de certos sentimentos. São filmes que se fazem a partir da atitude canibal de um cinema que se alimenta criticamente dos imaginários alheios que lhe pertencem para ser realmente aquilo que é.


artigo publicado na Filme Cultura nº 53, lançada em janeiro de 2011

Crepúsculo de uma raça

500 almas nos apresenta os integrantes remanescentes da tribo dos Guatós, suas falas e o lugar onde vivem. Em resumo, esse é o desejo básico do filme: registrar estes índios, suas memórias e seu ambiente. Para fazer isso, no entanto, 500 almas precisa passar por algumas das questões fundamentais para a atividade de registro cinematográfico das etnias indígenas; seu próprio título já deixa bastante clara essa consciência histórica. Afinal de contas, o que um filme pode apresentar, inquestionavelmente, é aquilo que é perceptível pelos olhos e ouvidos dos espectadores, é a montagem do registro de sons e corpos em movimento - mas o título do filme não fala dos corpos ou dos sons dos índios que mantêm viva a etnia, e sim dos seus espíritos. Os cerca de quinhentos índios Guatós trazem a herança de um povo que perdeu o seu lugar e seu modo de vida por causa da grande superioridade tecnológica dos invasores de origem européia, mas também porque lhes foi negada socialmente a sua integridade humana. Os índios podiam ser dominados porque, na visão da sociedade que os subjugou, eles não eram seres humanos dignos de respeito, eles não tinham alma. Pois o que o filme de Joel Pizzini se propõe a registrar são justamente essas almas.

A falta de condições de vida levou a tribo a passar por uma constante diáspora, depois de décadas e mais décadas sem ter lugar na mata para viver conforme a sua tradição, nem ter condições financeiras para viver segundo os moldes da sociedade invasora. Estão presentes as várias questões comuns a registros etnográficos e esforços de preservação das identidades indígenas - a perda do espaço, a miscigenação, a memória de mitos poéticos, o uso de diversos objetos. O filme enfrenta a discussão relacionada à memória que se perde entre pessoas de origem miscigenada, filhos de índios com brancos ou negros. Não é simples definir quem é ou quem deixou de ser guató, o que é e o que não é Guató, e 500 almas tem consciência disso. O que o filme faz, então, é buscar pessoas. Ele nos mostra que entre estes remanescentes existem traços do que podemos considerar uma determinada memória coletiva - cada vez mais próxima da extinção. 500 almas se relaciona com a memória, tanto a das falas quanto a dos documentos, mas tira sua força sobretudo do que se vive no presente. A tribo já foi muito maior, mas é dos cerca de quinhentos remanescentes e do lugar em que eles vivem que o filme trata. 500 almas encontra essas pessoas que ainda vivem no ambiente dos Guatós (morando em casas bastante simples, entre a vegetação exuberante e as águas do Pantanal) e, com o registro das suas falas, dos seus objetos, seus rostos e lugares, o filme contrapõe à memória dessa diáspora uma beleza vital, solar.

Essa beleza é buscada por 500 almas - é um gesto que tem método. Os Guatós têm barbas que os diferenciam das outras tribos indígenas, mas o filme não se atém às particularidades do grupo, e sim à relação deles com seu universo. O olhar poderia se tornar depressivo, devido ao risco de desaparecimento da etnia e sua cultura - mas a compreensão histórica que o filme apresenta não se esvazia numa denúncia melancólica. O poeta Manoel de Barros surge em alguns instantes para esclarecer o objetivo: de certa maneira, o filme apresenta a resistência da cultura Guató entre seus remanescentes como uma espécie de poética da existência, um certo espírito comum que é fundamental para cada um daqueles que vivem naquele lugar e carregam aquela memória. Nesse sentido, a tecnologia do cinema, que foi desenvolvida pela cultura colonizadora e é manejada por realizadores originários dessa cultura, acaba cumprindo um papel paradoxal (como já se podia perceber nas fotos e filmes feitos pela Comissão Rondon). Afinal de contas, ao mesmo tempo em que serve como instrumento de dominação, impondo uma lógica de documentação visual em comunidades que não tinham essa tradição até então - portanto, transformando em vários aspectos as relações dessas comunidades com a memória - a tecnologia audiovisual possibilita que o registro em filme não seja reduzido a um gesto de captura, um “roubo de imagens e sons”. Mais do que isso, ele pode representar um movimento de encontro, uma atitude de aproximação, de reconhecimento e de diálogo com o outro. O gesto de registro dessa comunidade indígena não pretende considerar este universo como algo mitificado, fechado a relações externas, pronto para ser reduzi-lo a notas de rodapé - ao contrário, a comunidade é composta por pessoas de verdade que, tendo em comum as características próprias de sua origem, percebem que este universo cultural, que sobrevive como parte deles, se encontra ameaçado pelas dificuldades de sobrevivência e pela diáspora. Essas pessoas sabem, como o filme, que o universo cultural dos Guatós está estruturado a partir do cotidiano junto aos rios, animais e plantas do Pantanal. Assim, 500 almas se deixar tomar pela forte relação entre os Guatós e seu lugar pantaneiro.

E o filme faz uso de uma certa estratégia visual para mostrar essa vivência - há um planejamento da luz, que é usada não apenas para que o filme crie diferenças entre seus ambientes, mas sobretudo para que ele consiga mostrar o lugar e as pessoas com verdade, uma vez que é essa verdade que lhe dá vitalidade. Isso é obtido graças a um trabalho bastante impressionante de uso da luz feito por Mario Carneiro. 500 almas foi um dos últimos trabalhos de Carneiro como diretor de fotografia, e o resultado obtido fez do filme um ponto alto na carreira do fotógrafo, responsável por alguns dos mais notáveis trabalhos de fotografia da história dos filmes brasileiros (como em Arraial do Cabo ou O padre e a moça) e parceiro de Pizzini em outros filmes. 500 almas apresenta uma cuidadosa diferença de iluminação entre cada um dos focos narrativos do filme. O discurso dos colonizadores, declamado por Paulo José (com rápida aparição de Matheus Nachtergaele no final), é filmado sob a luz de um espaço fechado. E os ambientes dos documentos e objetos recolhidos por europeus são retratados com luzes frias na maior parte das vezes. Já o universo pantaneiro dos Guatós é registrado quase que integralmente sob a luz do sol - ao longo de todo o filme, eles sempre são mostrados com luz natural.

A força das imagens é tão forte e chapante que, ao longo do filme, elas podem chegar a parecer dispersivas. De certo modo, isso faz parte de uma estratégia que se constrói pouco a pouco: o registro das pessoas e lugares é tão encantador que se torna mais forte do que poderia ser um mero arranjo narrativo que servisse para relatar de forma convencional a história da etnia. Tratando das almas, esse filme tem a ambição de mostrar que a identidade comum guardada por essas almas deriva da sua relação vital com o lugar físico, a natureza do Pantanal. Para mostrar isso, as falas nos dão uma percepção crítica do que é a cultura guató e do que foi a sua relação com a cultura invasora; as imagens nos fazem imergir naquele universo, elas conseguem transmitir o ambiente inebriante da natureza local. Desse modo, 500 almas obtém um efeito notável, essa forte presença que se instaura para nós do lugar e da memória dessas almas.



artigo publicado na Filme Cultura nº 53, lançada em janeiro de 2011

E agora, Paulo? - entrevista com Paulo Sacramento

- Sete anos depois de lançar O Prisioneiro da Grade de Ferro, que você dirigiu, e três anos depois de lançar A Encarnação do demônio, filme dirigido por José Mojica Marins que você produziu, quais são os seus próximos projetos?

No momento, não estou trabalhando na produção de filmes de outros diretores - estou concentrado em dois filmes que eu mesmo irei dirigir. Concilio esses projetos com o meu trabalho como montador, que me dá enorme prazer em fazer e é minha fonte principal de renda. Meu primeiro projeto de ficção como diretor chama-se Riocorrente, é uma ideia que eu tenho há muitos anos, um roteiro que já passou por vários tratamentos mas que apenas recentemente se revelou para mim, e foi muito forte. Será uma produção pequena, de baixo orçamento. O segundo chama-se O Olho e a Faca, é um projeto bem maior, que inclui muitas filmagens em uma plataforma marítima de petróleo e necessita de uma estrutura bem mais complexa. Este projeto eu estou fazendo em parceria com a Gullane Filmes, é um filme que demanda bastante planejamento, no qual é fundamental a estratégia, estrutura e logística de produção que eles dominam. Nós nos entendemos muito bem no filme do Mojica (Encarnação do Demônio) e vamos repetir a coprodução.

- Você pode falar um pouco dos enredos dos filmes?

Riocorrente trata de um triângulo amoroso que se encerra a partir de uma atitude voluntária de um personagem, uma renúncia social, digamos assim. O filme se passa inteiramente em SP e será filmado nos bairros que eu conheço em minúcias, frequento desde minha infância. Como eu disse, é um filme de produção pequena, em que faço o roteiro, produzo, dirijo, monto, assim como eu fiz nos meus outros filmes até agora. Já O Olho e a Faca conta uma história de um grupo de amigos muito unido que também se desfaz, e o filme passa a acompanhar de perto a derrocada pessoal de um deles, e sua tentativa de retomar os rumos de sua vida. Na verdade, acho que os dois projetos têm muitas semelhanças, embora seja difícil apontar nesse momento em que aspectos isso acontece. Talvez o que eles tenham em comum é que pretendem, cada um a seu modo, retratar a visão que eu tenho - a partir de minhas obsessões - de algumas questões que surgem nas relações entre as pessoas, em vários níveis. Não é simples explicar isso, já que os filmes não estão feitos, mas os projetos têm relação clara entre si e também têm muito a ver com os outros filmes que eu fiz. Por outro lado, acho também que eles são bastante diferentes dos filmes recentes que eu tenho visto, propõem coisas novas, ou pelo menos a retomada de procedimentos não tão comuns hoje em dia, em termos de linguagem. Claro que vejo os dois como filmes modernos, no sentido de incorporarem em sua carne, desde o princípio, a dúvida, a fragilidade, a incerteza. Eles não são absolutamente unívocos, embora sejam bastante simples e plenamente acessíveis.

- Você fez parte do grupo que, enquanto cursava a ECA-USP, abriu a produtora Paraísos Artificiais. Recentemente, três dos antigos sócios lançaram filmes: Christian Saaghard, com O fim da picada, e Paolo Gregori e Marcelo Toledo, com Corpo Presente. Esses filmes, assim como O prisioneiro da grade de ferro, guardam muito do clima da Paraísos Artificiais.

É verdade, a sociedade se desfez, mas nós continuamos mantendo o clima de estranheza em nossos filmes. Fico feliz em ver isso, mas sinto falta da Débora Waldman também dirigindo. A Débora sempre foi a mais gentil de nós, falava baixinho, mas não nos filmes que ela fez (vejam seus curtas Noite final menos cinco minutos e Kyrie ou O início do caos). De certo modo, naquela época a gente provocava ela a fazer os seus filmes, mas ela também nos provocava a fazer nossos trabalhos. Torço por sua volta como realizadora, ela tem um talento inegável.

- Você comentou que seus novos projetos não se parecem com os filmes que você tem visto recentemente. O que você tem achado do panorama das produções recentes?

Olha, me parece que as pessoas que trabalham com cinema estão angustiadas, e isso se reflete nos filmes. Nunca houve tantas formas de estímulo à produção, tantos concursos de apoio, leis de incentivo, enfim, tantos guichês para cada um apresentar o seu projeto e fazer um filme. Mas, como se sabe, praticamente nenhum desses filmes é visto pelo grande público, ficando restritos a poucos espectadores - com aquelas exceções que a gente conhece. Então os cineastas vivem o tempo todo esse dilema: tentar concessões ou fazer seus filmes com maior radicalidade? Qual seria a decisão correta, a curto e médio prazos? Vejo muitos tentando fazer filme de sucesso, mas quase todos fracassam, pois o projeto inicial não era exatamente "popular". E fica esquisito, frágil. Por outro lado, acredito que é fundamental existir relação dos filmes com o público, a visibilidade é fundamental para manter o cinema como algo relevante na sociedade. Existe um risco no horizonte que em breve o cinema seja como é a ópera hoje. Porque atualmente o cinema só sobrevive graças aos subsídios, e ainda bem que eles existem. Mas ainda bem que existe também a ópera, para a gente lembrar que há formas artísticas que só interessam a poucas pessoas, mas são importantes e precisam ser mantidas. Enfim, eu falo desse impasse, mas obviamente me incluo nele. Vamos ver o resultado desta angústia nos filmes que eu puder realizar, a minha maneira de reagir e propor dentro deste cenário.


Faróis


- O bandido da luz vermelha
(1967, direção de Rogério Sganzerla)

Essencial: o melhor filme já feito, dentro ou fora desse país.

- Filme demência (1985, direção de Carlos Reichenbach)

Eu assisti a esse filme na minha adolescência e decidi de vez por todas que queria fazer cinema.

- Blá blá blá
(1968, direção de Andrea Tonacci)

Esse filme eu só vi quando já estudava cinema na ECA, e me impressionou demais. É um média-metragem, mas sua força extrapola sua duração, ele é para mim tão importante quanto os longa-metragens que cito aqui.

- Ondas do destino (Breaking the waves, 1996, direção de Lars Von Trier)

É um filme arrebatador, lembro que me deixou completamente atordoado por seu discurso, ousadia, liberdade e precisão.

- A grande testemunha (Au hasard Balthazar, 1966, direção de Robert Bresson)

Por falar em precisão... Bresson é um divisor de águas.

- Teorema (1968, direção de Pier Paolo Pasolini)

É ver e se preparar para as mudanças, sempre.

- O bebê de Rosemary (Rosemary's baby, 1968, direção de Roman Polanski)

O filme mais aterrorizante que já vi. Os demônios atuam de fora para dentro ou de dentro para fora??

- Videodrome (1983, direção de David Croneberg)

A descoberta do prazer e do risco, para além de fronteiras.

- 2001, uma odisséia no espaço (1968, direção de Stanley Kubrick)

Não consegui dormir quando vi pela primeira vez. Aliás, assisti em VHS, como vários dos filmes dessa lista. Claro que no cinema é muito melhor, mas o que explode, explode e é perigoso em qualquer formato.

- Lições da escuridão (Lektionen in Finsternis, 1992, direção de Werner Herzog)

Esse curta do Herzog é impressionante, outro daqueles filmes que nos fazem calar a boca. Assisti uma única vez e posso contar o filme em detalhes. Ultimamente tenho para mim que o Herzog é o mais importante diretor em atividade do mundo.



publicada na Filme Cultura nº 52, lançada em outubro de 2010

Difusão é cultura

Quando falamos em difusão de filmes, alguns números podem ajudar a esclarecer determinadas questões. Note-se que, na década de 1970, o Brasil tinha cerca de cem milhões de habitantes e, nos anos em que os cinemas ficaram mais cheios, mais de 250 milhões de ingressos foram comprados. Desde então, a população brasileira aumentou bastante: a estimativa mais recente do IBGE indicou sermos mais de 190 milhões de brasileiros. No entanto, o número de espectadores caiu muito neste período (embora tenha aumentado um pouco em comparação com o início da década de 2000): têm sido comprados cerca de 100 milhões de ingressos anualmente. Se escolhermos o ano de 1975 como medida de comparação (naquela década, foi quando se chegou ao maior número de ingressos vendidos), a diferença na proporção é, aproximadamente, a seguinte:

- em 1975 => 2,75 bilhetes de cinema ao ano por habitante;

- em 2010 => 0,6 bilhete de cinema ao ano por habitante.

Alguém poderia supor que hoje há menos gente interessada em ver filmes; e poderia acreditar também que, atualmente, até as pessoas com interesse por cinema vêem menos filmes do que acontecia em décadas passadas. No entanto, ambas as suposições são de difícil comprovação. O dado óbvio que ajuda a entender o que aconteceu é que as salas de cinema ganharam concorrentes, que permitem que os filmes sejam vistos nas casas dos espectadores: primeiro foram os aparelhos de TV; depois surgiu o sistema de vídeo; mais tarde, vieram os canais de TVs a cabo; em seguida, os DVDs; e, na última década, surgiu o compartilhamento de filmes através da internet. Fazem-se muito mais filmes hoje do que em décadas passadas (e não apenas filmes, como também toda sorte de produtos audiovisuais), e não é improvável que muito mais gente veja cada vez mais filmes; no entanto, nem todos os espectadores vão às salas de cinema. Por isso, embora a população tenha aumentado, o número de bilhetes vendidos caiu.

Devido a isso, já há vários anos que os filmes podem alcançar multidões, povoar a imaginação de milhões de pessoas e motivarem incontáveis conversas, sem que precisem passar pelas salas de cinema para conseguir isso. Esta lição as telenovelas brasileiras já conhecem há muito tempo. A televisão, principal suspeita pela decadência que conheceram as salas de cinema, ainda é uma forma de difusão sem equivalente no Brasil. Novamente, os números falam por si. Se pegarmos como exemplo o filme O homem que copiava, dirigido por Jorge Furtado, vamos descobrir que, tendo obtido cerca de 660 mil espectadores durante os meses em que foi exibido nas salas comerciais, ele alcançou cerca de 20 milhões de espectadores numa única transmissão à noite na televisão. O número de espectadores é de tal porte que, numa comparação direta, não torna diminuta apenas a bilheteria do mesmo filme em circuito. Este alcance supera por larga margem o melhor resultado de um filme brasileiro em salas de cinema até hoje, o de Dona Flor e seus dois maridos. Na verdade, ele supera a bilheteria de qualquer filme no Brasil, inclusive os recordistas de Hollywood. Mais: em uma única exibição na TV, O homem que copiava chegou a muito mais gente do que, somadas, todas as sessões de cinema de filmes brasileiros em 2009 (cerca de 16 milhões de ingressos vendidos). E este é apenas um caso entre muitos outros, um número que escolhi por ter sido medido por um instituto de pesquisas e comentado algumas vezes pelo próprio realizador, Jorge Furtado (por exemplo, no texto disponível em http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado/cinema-e-audiovisual).
No entanto, a difusão de filmes brasileiros na TV é relativamente pequena, acanhada. São poucos os exibidos em emissoras de TV aberta, menos da metade dos mais de 70 longas metragens feitos no país a cada ano. Embora a Constituição Federal garanta, no artigo 221, que emissoras de TV devem incluir a produção independente na sua programação, a falta de regulamentação deste artigo constitucional fez com que ele nunca tenha sido respeitado nas duas últimas décadas. Por conta disso, as emissoras privadas podem exibir somente a sua própria produção e, eventualmente, alguns filmes estrangeiros. O caso exemplar de O homem que copiava só pode se repetir num esquema específico: como se sabe, trata-se de um filme co-produzido pela Globofilmes, braço cinematográfico da organização detentora do maior canal privado do país. A Rede Globo promove em sua grade de programação, uma vez ao ano, a Semana do cinema nacional, exibindo um filme por dia, numa seleção feita a partir da cartela de co-produções da empresa. Cabe lembrar ainda que, se a presença de filmes brasileiros na Globo é tão pequena, nas demais emissoras privadas ela é praticamente inexistente.

As emissoras públicas, por sua vez, poderiam oferecer caminhos alternativos de difusão - e o fazem, mas numa escala também bastante pequena. Embora estas emissoras pertençam ao mesmo Estado que patrocina boa parte dos filmes, através de leis de incentivo e editais, elas exibem apenas uma parte pequena desta produção. Em 2009, a TV Brasil apresentou 84 longas brasileiros na sua programação, algo equivalente a três filmes exibidos a cada duas semanas. Com este número, foi a emissora de TV aberta que exibiu mais filmes brasileiros no ano, seguida pela Globo, que programou 75 filmes produzidos no Brasil. A TV Brasil também teve o mérito de exibir um número considerável de curtas e médias (cerca de 200 filmes exibidos em 2009). Sua maior dificuldade, como se sabe, é ter uma transmissão nacional com boa qualidade de imagem e som. Mas não é a única limitação: diante da grande quantidade de filmes produzidos regularmente no país, é evidente que o número de produções exibidas na emissora poderia ser bem maior do que é, seja por falta de verba para adquirir direitos ou por falta de horários na grade de programação.

A internet também já se tornou uma nova forma possível de ampla difusão, como ficou bastante evidente para os brasileiros em 2007, a partir do fenômeno em torno do filme Tropa de Elite. Na época, a aferição de um instituto de pesquisa indicou que a cópia pirata difundida pela rede de computadores pode ter sido vista por até onze milhões de pessoas, antes mesmo da estréia do filme em circuito. Embora esse meio de difusão às vezes seja tratado unicamente como algo que deve constar no código criminal, o uso da internet para difusão de filmes não se resume apenas a interessados em vender cópias de filmes nas ruas, nem a usuários de computadores pessoais que praticam o compartilhamento de filmes. O site Youtube acabou se tornando o grande marco em relação a este assunto, criando com frequência nos últimos anos alguns fenômenos próprios - da cantora Susan Boyle ao ator e humorista Marcelo Adnet, é grande a lista de celebridades instantâneas do Youtube, renovada a cada dia. Atualmente, muito do que se transmite pela web tem baixa qualidade técnica, mas a tecnologia disponível nos dias de hoje já permite que sejam transmitidos pela web arquivos de filmes com alto padrão de imagem e som. Isto permitiu que surgissem algumas iniciativas de distribuição de filmes através da transmissão pela web, como é o caso de algumas empresas de exibição com tecnologia digital (com resultados cuja qualidade ainda é bastante questionada, por diversos motivos).

Além disso, vários cineastas do mundo têm usado a web para divulgar novos trabalhos, que, em muitos casos, foram pensados para este formato (um caso notável, por exemplo, é o trabalho que David Lynch tem feito para seu site nos últimos anos). No Brasil, a possibilidade de difundir os filmes pela internet motivou alguns cineastas a liberarem oficialmente seus trabalhos para download. O carioca Bruno Vianna fez isso de maneira original ao pôr em um site na web o seu primeiro longametragem, Cafuné (antes mesmo de estreá-lo nas salas de cinema) com as cenas sem ordem obrigatoriamente determinada, permitindo que quem fizesse download alterasse a montagem final (oferecendo até mesmo dois desfechos diferentes). Vianna voltou a fazer coisa semelhante no seu trabalho mais recente, Ressaca, que, novamente em pedaços, está disponível na internet. Outros realizadores também têm usado o meio para difusão, como fizeram recentemente Carlos Gerbase, com 3 efes, e Guilherme de Almeida Prado, com Onde andará Dulce Veiga?.

Finalmente, é preciso considerar a difusão de filmes em exibições não-comerciais, sejam as de origem cultural, cineclubística ou acadêmica. São lugares que se beneficiaram de avanços técnicos - a exibição digital e a facilidade de envio de DVDs aumentaram um espectro que, décadas atrás, dependia de cópias e projetores custosos e pesados. Não é por acaso que houve um movimento de volta das atividades cineclubísticas ao longo da última década. Mas estes espaços já permitiram que acontecessem verdadeiros fenômenos regionais de difusão de filmes; os casos de realizadores ditos “primitivos” (como Afonso Brazza ou Talício Sirino) acabam se tornando célebres pelo aspecto folclórico, mas não são os únicos. É graças a exibições desta natureza que alguns filmes de longa, média e curta metragem se tornam peças marcantes para vários grupos das gerações atuais.

Estas formas de difusão, como muito já se falou, apresentam a tendência de convergir. Podemos imaginar que o acesso a filmes pela internet estará conectado ao aparelho de televisão; que usuários poderão fazer suas escolhas a partir das opções de uma grade de programação; que isto permitirá o acesso a clássicos e a filmes independentes mesmo nos lugares mais distantes, para exibições públicas ou privadas.

No entanto, a tradição de cultura patrimonialista indica que, sem organização e regras, a diversidade e o acesso são comprometidos. Afinal, com o perdão da insistência, hoje a maior parte dos filmes que são feitos no Brasil não fica disponível nem nas emissoras de TV pública, nem nas privadas, tampouco pela internet. A realidade da difusão de filmes brasileiros para a população do país, hoje, é a realidade de um fracasso.

Se atualmente as circunstâncias são desfavoráveis e muito do que se produz permanece inacessível a quase todos, algumas mudanças de regras poderiam alterar um pouco o panorama. É difícil nutrir esperanças acerca da regulamentação do artigo constitucional 221, então os espaços das emissoras privadas devem continuar sendo negociados como (não) acontece hoje; mas sempre se pode acreditar na ampliação do espaço para filmes nas emissoras públicas. Para isso, uma pequena mudança nos editais de concursos (e mesmo nas leis de incentivo) já poderia alterar a forma de negociação das exibições de filmes: basta que os termos dos editais determinem a obrigação de exibir os filmes que vierem a ser feitos em emissoras públicas de TV, após um determinado período de comercialização. A difusão pela internet também pode ser garantida de modo semelhante, determinando a disponibilidade dos filmes alguns anos depois de seu lançamento comercial. Isto poderia garantir espaços de difusão permanente no próprio domínio público (como já acontece com textos literários no site http://www.dominiopublico.gov.br). Uma vez que estes espaços existam, podem ser abertos inclusive às produções feitas sem o apoio estatal (conjunto que costuma incluir alguns longas e boa parte dos curtas produzidos).

Depois de um longo período, hoje parece fora de moda falar em diversidade de filmes. No entanto, esta “diversidade” é enganosa somente para esforços de visão total de um panorama: na prática, ela reflete a complexidade do conjunto composto por filmes produzidos por grupos de diversos lugares e origens sociais. Ao contrário do que alguém poderia supor se observasse a produção apenas com os dados da venda de ingressos, hoje são produzidos muito mais filmes do que há quatro décadas. E isto não é algo ruim. Sendo assim, por mais estranha que possa soar a ideia de disponibilizar para download, no próprio site do MinC, todos os filmes feitos através de editais (além de outros feitos de forma independente), ela indica apenas um caminho para fazer algo urgente à cinematografia brasileira: garantir a difusão do maior número possível de filmes.



artigo publicado na Filme Cultura nº 52, lançada em outubro de 2010

Carapiru e Orson Welles: A melhor defesa é o ataque

Definir personagens e o modo de apresentar suas trajetórias é o gesto que dá início a um filme narrativo. Embora reflitam o nosso meio social (cada um a seu modo), os filmes brasileiros dos últimos anos se dividem na relação com seus personagens. Muitos se colam às suas trajetórias e personalidades, como Madame Satã, que se cola numa figura socialmente marginalizada, Cinema, aspirina e urubus, que acompanha dois viajantes, Jean Charles, que focaliza um brasileiro emigrado, ou Se nada mais der certo, que acompanha alguns personagens que sobrevivem como podem. Mas nem sempre esta estratégia de se filiar aos protagonistas chega a bons resultados: veja-se Nossa vida não cabe num Opala, com sua degradação dos laços afetivos, ou Lula, o filho do Brasil e seu mito materno. Outros filmes preservam a distância crítica ao retratarem seus universos - isto pode ser visto naqueles pautados por figuras de mediadores (como Carandiru), assim como também se vê nos documentários de João Moreira Salles, como Nelson Freire e Santiago, e mesmo no olhar pessimista de Bens Confiscados e Falsa Loura. Há também filmes que reinventam os universos dos seus personagens, como acontece em Cleópatra, Um lobisomem na Amazônia e Onde andará Dulce Veiga. Por fim, alguns apresentam os seus personagens como parte de perspectivas discursivas, de teses a defender, como se vê nos filmes de José Padilha (Ônibus 174, Tropa de Elite) ou em Estamira, produzido por ele e dirigido pelo sócio Marcos Prado.

Filmes não se reduzem à escolha de seus personagens; mas, sendo o ponto de partida, essa escolha pode denotar com clareza as questões e as ambições de cada obra. Podemos entender um bocado de cada período de uma cinematografia ao relembrar seus heróis e coadjuvantes. Nos filmes brasileiros dos anos 50, houve viajantes, produtores de cinema, maridos infiéis, professores de cultura grega, maestros, compositores, ricos enfadados, pescadores - quase todos marcados por alguma espécie de fracasso. No início dos 60, é fácil lembrar de bandidos, cangaceiros, mulheres oprimidas. Nos filmes produzidos no início dos anos 70, encontramos machões, torturadores, loucos, pais de família degradados, mulheres insatisfeitas, governantes corruptos... A lista poderia prosseguir por outras décadas, mas esses exemplos mostram que os tipos de cinema dizem muito sobre suas épocas - ao mesmo tempo em que certos temas e sentimentos são recorrentes. Em certa medida, é constante um sentimento de falha, de falta, de algo que não se cumpre plenamente. Isto talvez possa se dever à própria natureza das narrativas, que se justificam por ter personagens com problemas a resolver. Por outro lado, é notável que, embora seja possível criar narrativas positivas, que narram trajetórias de vitoriosos, elas são raras no panorama de filmes brasileiros em qualquer época. Há e sempre houve exceções, sobretudo nas produções documentais (dos antigos filmes de cavação feitos por encomenda de políticos às eventuais produções sobre times ou jogadores de futebol). Mas é isso que são: exceções.

Este sentimento de falha está presente também entre quase todos os filmes que mencionei no primeiro parágrafo. De todos, o único que apresenta um personagem bem-sucedido é aquele que narra a vida do atual presidente da república - e podemos relembrar de alguns outros casos, como Dois filhos de Francisco, que exerceu influência evidente sobre o filme produzido por Luiz Carlos Barreto. Os filmes mencionados de Ivan Cardoso e de Guilherme de Almeida Prado também terminam de forma positiva: curiosamente, ambos o fazem quando dão por satisfeita a tarefa de recriar personagens e ambientes de outras épocas - quando reinventam estilos que parecem perdidos no tempo. Eles resolvem a falha através de uma reinvenção do passado.

Fiz essa rememoração para chegar a Carapiru e a Orson Welles, personagens que definem os percursos dos dois filmes mais significativos da produção brasileira desta década: são eles, respectivamente, Serras da desordem, dirigido por Andrea Tonacci, e O Signo do caos, dirigido por Rogério Sganzerla. Escrevi há alguns anos um texto, intitulado “Entre o Caos e a Desordem”, em que notava como estes dois personagens viajantes eram, de certo modo, complementares; finda a década, me parece que eles marcam este período como dois pólos extremos. As trajetórias que mais expuseram nossa condição cultural foram as de duas figuras de fora da nação brasileira. Uma destas figuras se torna significativa sem sequer ser vista (Welles não aparece em O Signo do caos) e a outra o faz falando apenas numa língua que não compreendemos (como faz Carapiru em Serras da desordem).

Orson Welles era cidadão do país mais poderoso do mundo e veio ao Brasil dentro do programa de alianças da Segunda Guerra Mundial. Carapiru nasceu no território brasileiro, mas não é cidadão neste território: faz parte de uma tribo de índios dizimada. Welles fala inglês, a língua internacional, e realiza filmes, uma linguagem universal - é capaz de se comunicar com todos, mas suas relações caminham para o rompimento. Carapiru fala um dialeto que parece indecifrável - não consegue se comunicar plenamente, mas consegue estabelecer relações duradouras. Welles domina a câmera; Carapiru sabe produzir fogo. Welles, um enviado do império, poderia promover a ruptura da cultura brasileira com o seu provincianismo, ligando-a à modernidade mais arrojada. Carapiru, que tem seu espaço vital invadido por homens armados, evidencia a violência destruidora de uma sociedade que se pauta por uma pretensa modernização. O fracasso de Welles no Brasil, conforme nos sugere O Signo do Caos, é um indício de que a cultura brasileira queimou seu filme e perdeu o bonde da modernidade, o bonde da capacidade de invenção. Já a perseguição a Carapiru é uma prova de que o bonde do movimento civilizatório foi destruidor ao se confrontar com a vida de pessoas que estavam no seu caminho.

Embora nunca se revele, o criador de O signo do caos tem um discurso próprio e direto, a começar por definir a obra como um “anti-filme”. Não aparecendo, ele indica se identificar com Welles (que também foi considerado genial por seu primeiro filme e depois sempre foi cobrado por isso). O signo do caos recria o universo wellesiano para apresentar a tese de que a vanguarda moderna chegou a um beco sem saída e brecou num ponto em que não se escuta nada além de eco - e que o Brasil, “país do futuro”, permaneceu atolado do mesmo modo que a pretensa arte do futuro, o cinema. Mas o filme tem uma chave de esperança: embora os sonhos de uma arte ao mesmo tempo realista e inventiva (tal como Welles teria feito em It's all true) tenham sido queimados ou atirados ao mar, uma criança ainda pode enxergar e pode acreditar que as cores foram inventadas no seu tempo - que as coisas nunca serão vistas como eram no passado. Welles/Sganzerla recria o mundo em preto e branco para mostrar a falha e a destruição (do filme, da arte, da utopia etc); no entanto, ele crê que os mais novos podem sobreviver ao passado que se perdeu.

Ao se fazer ver, no final do filme, o diretor de Serras da Desordem constrói seu discurso de forma complexa, multifacetada, composta por fragmentos alheios. Mostrando-se junto a Carapiru, ele aponta que o filme é fruto do encontro entre o personagem com uma trajetória única, irreproduzível, e o diretor com sua visão das circunstâncias históricas. Dessa forma, o filme se cola a Carapiru tanto na revisita aos velhos amigos quanto na encenação de um percurso marcado por separações. A cada passo, ele amplia a perspectiva crítica: uma civilização invade, joga pessoas à margem, expande-se sem se preocupar com as consequências. E, ao registrar a decadência que provoca, não apenas ela é incapaz de reverter a decadência através do registro audiovisual como este próprio registro se torna uma nova invasão, um espetáculo da decadência.

Ainda que sejam praticamente opostos entre si, os filmes retratam seus personagens usando a mesma estratégia: indicando as falhas, metendo os dedos nas feridas. Orson Welles é incapaz de finalizar seu filme e revolucionar sua arte, enquanto Carapiru é incapaz de viver em paz com a família na sua região. Assim, tanto O signo do caos como Serras da desordem mostram que os conflitos que se apresentam aos seus personagens não dizem respeito somente a eles, mas a uma certa condição cultural que destrói as alteridades que se ponham fora do seu espectro. O primeiro filme é amargurado e trágico, enquanto o segundo é instigado e reflexivo, mas a soma dos dois retrata uma sociedade tosca a ponto de impedir Welles de criar e Carapiru de viver em paz. Ambos tornam claro quais personagens, cinemas e mundos querem defender e a quais se opõem; é deste gesto que tiram força, como filmes de invenção, ou seja, capazes de nos fazer reinventar nosso cinema, nosso lugar cultural, enfim, a nós mesmos espectadores.



artigo publicado na Filme Cultura nº 51, lançada em julho de 2010

Um filme com dramas reais de personagens da segunda divisão

Nos seus instantes iniciais, Fora de Campo nos apresenta algumas informações que contextualizam os personagens retratados no filme: de cerca de quinhentos clubes de futebol existentes país afora, somente quarenta fazem parte das primeiras divisões nacionais. Apenas 8% dos jogadores que atuam profissionalmente fazem parte desta elite de clubes. Os demais jogam em times considerados “pequenos”, onde não têm boas condições financeiras nem direitos trabalhistas. O filme procura nos mostrar um pouco da vida de pessoas que viveram essa situação. São quase todos já aposentados dos campos, exceto Paulinho da Grécia, ex-jogador que se tornou juiz, e Maninho, o único retratado que ainda atua profissionalmente como jogador de futebol. Naturalmente, ele acaba se tornando figura central do filme, por permitir que acompanhemos alguns meses da sua trajetória profissional.

Os outros personagens falam do passado. Foram considerados bons jogadores quando atuaram profissionalmente nestes clubes “pequenos”, chegaram a ter algum prestígio e a expectativa de serem bem-sucedidos financeiramente. Ao encerrarem esse ciclo, precisaram encontrar novas profissões - e esta dificuldade é um tema constante nos depoimentos. Um se torna enfermeiro, o outro é comerciante. Paulinho é o único a continuar trabalhando com futebol, agora cuidando da arbitragem com o conhecimento de quem já esteve noutro papel. O ex-artilheiro Bé, que atualmente trabalha como guarda de segurança, mostra-nos em sua casa um videotape para comprovar que tinha um estilo comparável ao de Romário; quando vai ao estádio, Bé, que já foi ídolo do Vila Nova, ainda é reconhecido pelos torcedores e dá autógrafos.
Para eles, o filme acaba se tornando a maneira de registrarem a memória de suas trajetórias. Já estão aposentados como jogadores, mas podem mostrar as provas dos seus feitos de juventude: troféus, fotos, recortes de jornal. O tema mais forte, então, é a passagem do tempo e o fim das ilusões: acabada a carreira, o saldo é ínfimo e cada um tem que se virar para sobreviver.
Maninho é a exceção: o único em atividade entre os personagens do filme, ele já tem 32 anos de idade na época de produção. Já passou por muitos clubes e teve dezenas de oportunidades em jogos contra times “grandes”. Ao longo da produção de Fora de Campo, ele se torna campeão da segunda divisão do campeonato brasiliense e, em seguida, é contratado pelo São Pedro, um time que disputa a Copa do Brasil com os maiores do país. Em seus depoimentos, Maninho deixa clara sua consciência de classe e sua percepção do difícil ambiente que escolheu para trabalhar. No entanto, apesar de nos esclarecer, junto com os depoimentos dos outros personagens, sobre a dificuldade de sobrevivência dos atletas desse ambiente de trabalho, ele ainda mantém, aos 32 anos de idade, o sonho de assinar um grande contrato e “arrebentar”.

Assim como os outros personagens, Maninho se apresenta para a câmera, consciente da imagem que está construindo para ela - mas este registro, ao contrário dos outros, trata do seu momento presente. Ele não se faz de rogado em atuar para a câmera (retratando cenas cotidianas em pontos de ônibus, pedindo caronas etc), mas sua atuação é pautada pelas vitórias e derrotas nos jogos. Por conta disso, o filme acompanha ele em momentos de alegria e outros de tristeza. Com seu silêncio final, Maninho permite que Fora de campo registre a amargura que sente ao ver as oportunidades perseguidas ao longo da carreira não se concretizarem. É um retrato cruel desse ambiente de sonhos e desilusões.

Este notável Fora de Campo é um documentário de 50 minutos, realizado com o apoio do programa DocTV. Não é por acaso que o filme revela tanta intimidade com o universo que retrata: o diretor Adirley Queirós (que já havia realizado o curta Rap, o canto da Ceilândia) é ele também um ex-jogador e torcedor do Atlético Ceilandense, clube de Brasília em que jogaram alguns dos personagens do seu filme.


artigo publicado na Filme Cultura nº 52, lançada em outubro de 2010