15/09/2008

A Direção do Olhar (Importante é a maneira de enxergar)

Esta certa ‘moda’ de documentários, muito comentada no Brasil, acontece em diversas cinematografias do mundo no momento (por razões já bastante discutidas, como as facilidades da tecnologia digital ou a aparição onipresente de uma figura midiática como Michael Moore), mas documentários têm provocado por aqui discussões inesperadas até alguns anos atrás. Um mestre comoEduardo Coutinho ganhou prestígio e notoriedade impensáveis há uma década, e diversos filmes enquadrados neste dito gênero vêm tendo boa recepção pelo público - coisa que, nos critérios do mercado, também seria inimaginável há alguns anos. Mas voltamos à velha questão: o dito mercado é um bom parâmetro para estabelecer critérios?

Meu amigo Felipe Bragança já pôs em questão num artigo recente na Revista Contracampo justamente este problema: até que ponto o documentário pode ser compreendido como gênero? Os filmes de ficção podem seguir gêneros de regras absolutamente diversas – que serão sempre compreendidos a partir da observação de suas características próprias. O cinema documental, por sua vez, arrisca-se sempre a ser compreendido apenas a partir da velha questão em torno de “o que é a verdade” – ou de formatos impostos e imitados ao infinito. Como se documentário fosse mais um gênero com regras específicas – quando se trata sobretudo de uma disposição dos filmes, de uma intenção de quem faz o filme. Não há menos maneiras de se fazer um filme documentário quanto as há de fazer um de ficção.

Há uma questão que surge para além destas pequenas limitações do olhar – o problema que se evidencia é para quem se dirige o panorama que se apresenta como filme. Para quem é dirigido o olhar. É este ponto que qualquer teoria geral dos formatos do gênero documentário não terá como dar conta. O olhar que se amplia para além do mero registro depende justamente da direção do olhar – e da compreensão de seu pano de fundo. Para quem se permite ver um documentário?

Para exemplificar: muito se falou sobre o circo de horrores que alguns viram em filmes recentes de Coutinho – especificamente em Edifício Master. Mas como saber de forma definitiva o que pode ser enxergado como humano e o que é bizarro por quem olha? Quem olha pode compreender de formas diversas o que vê, a partir de suas experiências pessoais– sobretudo quando se trata de um cinema baseado em um olhar documental, montadas a partir de situações diversas. Desta forma, cada filme precisa por natureza ter um ponto de partida e estratégias específicas de construir um olhar para os objetos e circunstâncias filmados. A regra é lidar com a realidade, não é? Como pretender estabelecer as estratégias e posturas corretamente definidas de um gênero de filmes então?

Um documentário dedicado a mostrar a natureza ou os animais, como alguns filmes franceses de sucesso nos últimos anos (Le Peuple Migrateur, Microcosmos) terá posturas e estratégias diferentes dos filmes de Michael Moore – não apenas pelo tema escolhido ser mais amplo, mas sobretudo porque o discurso escolhido não pretende se dirigir a uma população restrita. O documentário de Coutinho talvez se utilize de estratégias que serão compreendidas por parte dos espectadores de forma diversa da que pretendia quem fez – mas para quem se destinava o discurso do filme? Os espectadores não são pobres coitados– cada um é responsável pelo seu olhar. Torna-se cada vez mais evidente que, para compreender o cinema documentário, é preciso que, ao construir nossa visão crítica, tenhamos em mente a nossa própria perspectiva – já disseram por aí que toda crítica é autobiográfica, não? Esta compreensão e análise do público a que se destina um filme não é necessariamente um ponto negativo – ao contrário, a própria obra poderá se enriquecer a partir destes pressupostos de maneiras diversamente sofisticadas.

Num filme recente, o bastante comentado e nem tanto visto O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), de Paulo Sacramento, utiliza-se do recurso de entregar a câmera aos retratados – no caso, detentos do presídio Carandiru. Os ditos auto-retratos do subtítulo criam a possibilidade dos habitantes de um mundo escondido do resto da cidade retratarem seu cotidiano para os que nunca irão estar lá dentro. Assim como acontece em outros filmes que usam este mesmo procedimento - como Conversas do Maranhão, feito por Andrea Tonacci na década de 70 -, O Prisioneiro da Grade de Ferro pretende usar de forma positiva a tendência dos retratados quererem mostrar seus problemas para os olhares de fora - o filme assume-se como um relato para quem não está dentro do Carandiru. Sabe assim que atinge seu púbico possível, totalmente diverso daquele que irá conferir a ficção novelesca de Babenco - cujas intenções eram, justamente, criar retratos humanos dos presidiários para o grande público, e por isso fez uso de diversos recursos melodramáticos. Sacramento tinha noção da limitação mercadológica de seu filme (mesmo os documentários de sucesso são vistos sobretudo pela elite intelectual, queé majoritariamente também elite social – esse pequeno mundo dos públicos de cinema de arte das metrópoles), e seu filme não ignora esta questão. Já Babenco usou de tradicionais recursos narrativos da ficção para mirar em outro público, mais numeroso. Isto é o óbvio - os filmes têm estruturas que indicam a quem se dirigem. Conversas do Maranhão, o filme de Tonacci citado ali em cima para fazer uma breve comparação com O Prisioneiro da Grade de Ferro, pode ser retomado como exemplo: produzido pelo realizador junto a uma aldeia de índios, o expediente de entregar a câmera aos índios foi justificado junto à tribo pela intenção de fazer um filme que “mostrasse os problemas da aldeia para os poderosos de Brasília”, como Tonacci contou recentemente.

Noutro exemplo oposto, Nelson Pereira do Santos - que nos últimos anos tinha feito um curta e uma série de televisão, ambos documentários - lançou este ano seu retrato de Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, obra em dois atos que se utilizam de estratégias contrárias. Raízes do Brasil I apresenta-se como um filme de família, uma rememoração de um personagem pelos seus familiares - comentando a importância da obra apenas em função da composição afetiva da figura do pai estudioso. Desta forma, o ponto de partida do filme de família parece apontar de início para uma restrição absoluta do público a que se destina – terminando, no entanto, por obter um retrato afetivo que será fundamental para a compreensão do ato seguinte. Raízes do Brasil II adquire outro tom, de versão resumida e distante da história de vida intelectual do escritor e de sua geração, simultânea à leitura de trechos do livro homônimo ao filme. Sendo o olhar de Nelson Pereira sobre Sérgio Buarque e sua geração, o filme termina também por ser um olhar amplo de Nelson por todo o período da história do país - coisa que se pode notar por alguns detalhes, como pequenas ironias na escolha da trilha sonora ou dos trechos de Raízes do Brasil. Ligados, os filmes constróem um retrato do intelectual que não pretende explicá-lo – mas sugerir vias de compreensão e somar olhares de natureza diversa sobre uma pessoa. Nelson Pereira assume o caráter didático ao dizer que seu filme é “um estímulo à descoberta da obra de Sérgio Buarque” – o filme se destina a despertar a curiosidade em quem não conhece o retratado.

Por que insisto neste ponto? Porque a relação do público de cinema com os filmes nos dias de hoje me parece problemática para um possível cinema documental. Qual a relação de olhar para a realidade se pode buscar junto aos públicos de classe econômica média/alta que procuram entretenimento em finais de semana nos shopping centers? Esta relação pode ser construída de que formas e em que níveis? Como estes cinemas documentários podem e devem ser incômodos? E em que precisam ser conciliadores, simpáticos?

E como é preciso se construir a relação com esta platéia dos documentários do circuito de filmes de arte? O que pode trazer e provocar o filme documentário aos espectadores – para além de eventuais sentimentos de indignação distante e imóvel?

E, se escaparmos de discussões velhas sobre diferenças entre cinema e televisão e imaginarmos o cinema documentário invadindo a programação televisiva, as perguntas se repetirão em outro nível – como incomodar e ser visto? E até que ponto um filme documentário pode abrir mão de incomodar?

* * *

Esta questão me parece presente, sem dúvida, devido à grande discussão em torno do último filme de Michael Moore, Fahrenheit 9/11. Ainda que não duvide do valor que alguns podem ver na própria cinematografia do filme, continuo surpreso em notar como o filme pode realizar experiências tão opostas – não acerca de sua qualidade, mas do sentimento que desperta. Não me refiro diretamente, no caso, às opções políticas ou estéticas de nós que assistimos. Refiro-me à oposição entre o que pode provocar o filme naqueles a que ele se dirige – eleitores norte-americanos – e o que pode provocar naqueles a que ele não se dirige – todos os que não votam nos EUA. Se nos primeiros esta discussão, mais do que presente, pode ser mobilizadora – sem querer entrar no mérito propagandístico do filme– isto não ocorre com nosotros. E a euforia que o filme parece trazer a uns, somada à melancolia que traz a muitos outros, parece evidenciar seu aspecto catártico - mas qual é a questão moral que se encontra nesta catarse? Sim, é possível encontrar um grande vilão para o mundo. E o que fazemos a partir daí? Ao aplaudir um filme que não se pretende ser muito mais do que uma propaganda eleitoral – aqui no Brasil têm sido comuns os aplausos ao final das sessões – exorcizamos sonoramente nosso sentimento de impotência.

Texto publicado originalmente em agosto de 2004 na revista on-line argentina Otrocampo